Reinaldo Azevedo

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Opinião

Carnaval sem fantasia: Bolsonaro tentou golpe de Estado. É crime! É cana!

Ah, lá vou eu em pleno ziriguidum escrever sobre política, golpismo, STF, o "Coiso", as burrices dos que resolveram normalizar discursos fascistoides como uma das formas de ser da liberdade de expressão... Hein??? Ainda não há provas dos malfeitos de Bolsonaro? Estão apenas no terreno das suposições? É precipitado, na análise política, lhe imputar a tentativa de dar golpe e de pôr fim ao Estado de direito? Já que tudo deu errado para eles, então se zomba dos que apontam os crimes, minimizando-os? Tivesse dado certo, zombariam de quem? Dos mortos?

"VAI PRO BLOQUINHO, REINALDO!"
"Ah, vai pro bloquinho, Reinaldo! Isso é hora de tocar nesses assuntos?" Quem disse que não danço, ainda que a meu modo? A propósito: fui lá em "Carnaval" (1919), segundo livro de Manuel Bandeira, de onde extraio os versos abaixo, do melhor poema, segundo entendo -- "Sonho de uma Terça-feira Gorda":
"Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negro, negros...
mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
-- A profunda, a silenciosa alegria..."

Em certa dimensão, a alegria sempre estará dentro de nós. Ou não, como em "Tabacaria", de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): "Vivi, estudei, amei e até cri,/ E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu." Conhecem o poema "Spleen", de Baudelaire? "Eu sou como o rei de um país chuvoso/ rico, mas incapaz/ jovem e, no entanto, muito velho". Não sou eu esse aí, caras e caros, mas o "eu" do poema, embora dado a algumas melancolias, que expresso com economia porque evito que certa tristeza e algum pessimismo prudenciais possam aspirar à condição de categoria superior de pensamento. Em qualquer caso, viva a benfazeja alegria!

Pronto! Prestei o tributo que posso ao Carnaval, do jeito que consigo fazer. A trilha sonora poderia ser a belíssima "Eu não sei Dançar", que fez sucesso na voz de Marina, em 1991. Li certa feita que o autor, Alvin L., não dá muita bola para a própria criação e não entende por que gostam tanto dos versos "E tudo o que eu posso te dar/ é solidão com vista pro mar". Ele pode não saber, mas eu sei. Nem sempre o autor é o melhor leitor do que produz. Viva o Carnaval, mas abaixo a fantasia dos editoriais normalizadores de violência institucional! Adiante.

DÚVIDA? QUE DÚVIDA?
A banalização do ataque às instituições protagonizado por Jair Bolsonaro de 2018 a esta data deu à luz, especialmente na imprensa, um relativismo cínico, tendente a normalizá-lo como expressão legítima de uma visão de mundo -- ainda que, observa-se, errada. Não se trata de erro, mas de crime.

Não se deve, com efeito. chamar o ex-presidente de "condenado" por tentativa de golpe e de abolição do estado de direito e por organização criminosa. Condenar e absolver são atribuições da Justiça. Por ora, ele é investigado por esses crimes e nem réu é ainda. Dada a sua obra autoral, a trilha será essa; no ponto de chegada, está a cadeia.

Ocorre que jornalismo não é tribunal. Se um de nós assiste a um homicídio, ao reportar o episódio, pode e deve chamar o autor de assassino ou homicida. "Acusado de homicídio" ele será perante a Justiça, enquanto não houver a condenação. Existe alguma dúvida razoável de que Bolsonaro atentou contra a democracia? Nós vimos ou não? Indago: os que pretendem tratar a realidade como hipótese apenas, com dedos tão leves como plumas, estão, de verdade, preocupados com o devido processo legal — e isso seria um bem em si — ou se entregam a maquinações de outra ordem, temerosos com o que possa advir da derrocada do extremista de direita?

Parece-me evidente que alguns que se fantasiam de prudentes receiam que a eventual debacle do bolsonarismo implique uma duradoura hegemonia petista, e a devoção ao legalismo é só a fachada do embate contra os inimigos que consideram verdadeiramente perigosos: Lula e o PT. E isso nos diz que, sob muitos aspectos, um fascistoide lhes era mais palatável.

TODOS FOMOS TESTEMUNHAS
Nós todos formos testemunhas.

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Vêm-me à mente, sem que precise recorrer a mecanismos de busca, "flashes" de um presidente da República a discursar em frente ao QG do Exército em Brasília, onde bate-paus se concentravam para pedir o fechamento do STF, convocados pelas milícias digitais que serviam ao mandatário. E lá estava ele a tonitruar que as Forças Armadas, sob seu comando, não declinariam de seu dever. O que era aquilo?

E o dia do "Acabou, porra!", disparado contra o tribunal porque a PF investigava aliados seus? E a promessa no Sete de Setembro de 2021 de não mais cumprir decisões judiciais?

Vejam que coisa: antes de 1º de setembro de 2021, tais comportamentos poderiam ser punidos pela Lei de Segurança Nacional. Depois de tal data, com a aprovação da Lei 14.197, encarrega-se da fazê-lo o próprio Código Penal, particularmente nos Artigos 359-L (tentativa de abolição do estado de direito) e 359-M (tentativa de golpe de estado). Não há como o biltre responder por crimes de responsabilidade. Mas os comuns sobrevivem ao fim do mandato.

Não é preciso que o Judiciário nos diga se tais crimes foram cometidos. Assistimos a tudo. A ele caberá punir ou não; fazer justiça ou cobrir o país com o manto da impunidade e da vergonha. Não condenamos ninguém, é certo. Ocorre que afirmar que "Bolsonaro ameaçou o país com um golpe" é a "Vovó viu a uva" da alfabetização política. Não é uma opinião.

A REUNIÃO
A reunião ministerial (e com agregados) de 5 de julho de 2022 não deve ser tomada como um mero elemento adicional a demonstrar que Bolsonaro pretendia dar "um soco na mesa", na expressão do general Augusto Heleno. Ali se definiram tarefas. Da boca do chefe, saíram ordens, determinações.

Quando o então presidente pede que as pessoas de sua confiança que integram a Comissão de Transparência do TSE assinem um manifesto acusando a fragilidade do sistema eleitoral -- e, diz ele!, a OAB estaria no papo --, o objetivo não era ver atendida uma reivindicação, mas criar as condições para chamar a soldadesca. Nas palavras do chefe:
"Nós sabemos que, se nós reagirmos depois das eleições, vai ter um caos no Brasil; vai virar uma guerrilha, uma grande fogueira no Brasil. Agora, alguém tem dúvida de que a esquerda, como está indo, vai ganhar as eleições? Não adianta eu ter 80% dos votos. Eles vão ganhar as eleições".

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Nota rápida: também as pesquisas encomendadas pelo PL apontavam, em julho de 2022, a vitória folgada de Lula; algumas no primeiro turno — um vagabundo ou outro fabricavam números para animar as milícias digitais.

A reunião, entendam, não se resumiu a um mero destampatório contra o TSE e as esquerdas. Ali se distribuíram atribuições e competências para tornar viável a quartelada preventiva. Ou me apontem uma só intervenção que não atendesse a esse propósito. Ninguém tinha a esperança de que o tribunal eleitoral lhes faria as vontades, até porque, nas palavras do general Paulo Sergio Nogueira, então ministro da Defesa, o ente já estava marcado como o inimigo a ser abatido. Ele chega a recorrer a um vocabulário de guerra para se referir à corte.

MAIS INVESTIGAÇÃO
"Então os inquéritos já podem ser concluídos e encaminhados ao Ministério Público Federal para que avalie se há elementos para oferecer a denúncia?" A resposta é "não". Faltam ainda eventos e atores que possam explicar com mais clareza a trama. Mas como negar o que todos vimos e esconder evidências em expressões como "supostos crimes" e no pavoroso futuro do pretérito composto: "Bolsonaro teria defendido um golpe", "teria ameaçado as eleições", "teria pressionado as Forças Armadas"? Ah, não! Nada contra palavras e tempos verbais em si, desde que empregados com propriedade. Ocorre que esse "futurismo do preterismo" está para os idiotas ou covardes como o gerundismo está para o telemarketing.

A patuscada do dia 5 de julho de 2022, de resto, ilumina os quatro anos de Bolsonaro à frente da Presidência da República. Duvidasse alguém de suas intenções, lá estava ele a confessar que tudo era mesmo verdade. Se foi incompetente — e é o tipo de incompetência que devemos aplaudir, a despeito de sua vontade —, isso não o absolve de seus crimes, até porque eles tiveram e têm um custo político altíssimo.

ALEXANDRE COMO VÍTIMA E COMO JUIZ?
Logo depois da Operação "Tempus Veritatis", Rogério Marinho (RN), líder do PL no Senado, reuniu uma turminha da pesada para pedir a suspeição de Alexandre de Moraes porque, disse, ele não poderia ser a um só tempo "vítima" -- afinal, uma das intenções dos criminosos era prendê-lo, e ele chegou a ser monitorado -- e juiz do caso.

Com aquele seu jeitinho manso de dizer coisas horríveis, afirmou:
"Qualquer estudante de direito sabe que quem é vítima não pode investigar; não tem imparcialidade porque não tem isenção para estar à frente de um inquérito".

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Grande jurisconsulto! Os estudantes de direito não caíram no seu papo-furado, mas a "reacionarada" de plantão, com seus textos de aparência vetusta, mas corroídos pela má-fé, passaram a repetir sua ladainha, especialmente porque a operação se deu no âmbito do Inquérito 4.781, aquele aberto de ofício em março de 2019 por Dias Toffoli, como autoriza o Regimento Interno do STF e que sempre chamei aqui e em toda parte de "absolutamente legal". E é.

A argumentação é porca de vários modos. O parlamentar reconhece que Moraes é vítima, e o valente, como se vê, dá uma declaração que interessa aos algozes. Que naufrágio! Segundo o Inciso I do Artigo 254 do Código de Processo Penal, deve-se dar por suspeito o magistrado que "for amigo íntimo ou inimigo capital" de qualquer das partes. Vá lá: em certa medida, Marinho tem mesmo razão, e Moraes poder ser considerado um "inimigo capital" daqueles bandidos. Seria o senador o "amigo íntimo"?

Sabe por que os "estudante de direito" o mandaram plantar batatas e ignoraram o seu chororô, que só fez sucesso em alguns editoriais? Porque existe o Artigo 256 do mesmo Código de Processo Penal. E ele diz o seguinte:
"Art. 256. A suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la."

Moraes só é a "vítima", como diz o "amigo íntimo", porque os inconformados com a sua atuação resolveram persegui-lo e o transformaram num de seus alvos. Se delinquência intelectual como essa fosse levada a sério, bastaria a um investigado ou a um réu injuriar um juiz ou provocar situações que denotassem inimizade ou hostilidade, e o magistrado teria de deixar a causa. Nesse caso, o criminoso escolheria, quando menos, o juiz que não quer.

CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
Está na hora de os isentos entre a estado de direito e "as tropas na rua" tirarem os fantasmas petistas que têm embaixo da cama e que lhes povoam os pesadelos em febris pavores noturnos. Tampouco Moraes vai lhes arrombar a porta da "liberdade de expressão".

É fácil, agora que os conspiradores foram vencidos, ironizar o assalto malsucedido às instituições, tentando baratear o perigo para, no fundo, fabricar impunidade. E a prova maior de que assim é, convenham, está no fato de que não se poderia expressar a gravidade e a fealdade da tramoia se ela tivesse sido bem-sucedida. Afinal, os dispostos a fazê-lo estariam ou silenciados ou sob vara. Assalta-me aqui uma hipótese: quantos dos que agora tentam subestimar a gravidade dos atos de Bolsonaro não estariam dispostos a negociar com ele um amaciamento da ditadura, buscando abrandá-la — e ainda se julgando muito sábios por isso?

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Não tenho isenção nenhuma entre ditadura e democracia. Sou sempre democracia. Nem entre a corda e o pescoço. Sou sempre pescoço.

É por isso que, neste Carnaval, comemoro a derrota dos vagabundos com barulhenta alegria.

Se o golpe tivesse vencido, nós, os democratas, estaríamos arcando com o peso do arbítrio. Como a democracia venceu, os golpistas estão arcando com o peso da Constituição e do Código Penal. Ponto.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.