Reinaldo Azevedo

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Opinião

Salta-pocinhas com golpistas pela impunidade! Gonet e a ditadura com Mozart

Experimento um misto de melancolia e estupefação quando leio certos salta-pocinhas, que se querem independentes como as flores — cuja única razão é existir no equilíbrio geral da natureza —, a afirmar que, "oh, oh, atos preparatórios para um golpe não são exatamente uma tentativa de golpe". Um chefe de Estado, o ministro da Defesa e o ministro da Justiça tomando providências para obstar as eleições, e eles todos se dedicariam a meros folguedos "preparatórios"?

A sensação incômoda logo passa. Então vamos ao enfrentamento. Ocorre-me que esses tipinhos que atuam como serviçais de tiranos e candidatos a tanto sempre existiram, em qualquer tempo, em qualquer situação em que é necessário fazer escolhas entre as dificuldades da política, algumas até traumáticas, e o precipício. Escolhem invariavelmente o precipício. Preferem vendar os olhos, mas não porque aspiram à neutralidade da Justiça. Busca o ponto de equilíbrio entre a democracia e o golpe.

OS REACIONÁRIOS SINCEROS
A extrema-direita -- truculenta, golpista, antidemocrática -- não esconde ao menos o que quer. Organiza um ato para o fim do mês com justificativas que sabe falaciosas. Diz ser apenas uma manifestação em defesa da liberdade e dos direitos supostamente violados de Jair Bolsonaro. Falso. É só o exercício de sempre do golpismo, e tanto os organizadores como o público que adere a espetáculo grotesco do gênero sabem muito bem o que querem. O propósito continua a ser o de solapar o Judiciário. Enfrentar essa horda é a motivação que está na raiz do Inquérito 4.781, de 14 de março de 2019.

Bolsonaro não havia concluído, então, seu terceiro mês de governo, e o STF já estava na mira. A primeira patuscada contra o tribunal data de 26 de maio daquele ano. E que se reconheça a estratégia, digamos, "racional" dos fascistoides: Lula estava preso, o PT ainda era anátema, e "um porra de um deputado", "escrotizado dentro da Câmara", havia ganhado a eleição, no que foi uma "uma cagada". Assim Bolsonaro referiu-se a si mesmo na reunião golpista de 5 de julho de 2022.

O que isso a que chamamos "bolsonarismo" percebeu de cara? A oposição — a miríade de progressistas, sem a liderança de Lula — estava na lona, e o Congresso poderia ser comprado, como foi. Havia um só "inimigo" a ser abatido: o STF, aquele que Eduardo Bolsonaro já ameaçava em plena campanha. Para fechar as suas portas, disse, bastaram um soldado e um cabo, sem nem um jipe...

Vale, a titulo de informação adicional, lembrar a íntegra da fala de Bolsonaro ao se definir:
"Essa cadeira [da Presidência] aqui é uma cagada, e vou explicar a cagada. Não vai ter outra cagada dessa no Brasil; cagada do bem, deixar bem claro. Como é que eu ganho uma eleição? Fodido, um fodido como eu, um deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado, uma porra de um deputado, entre 513!!! Não consigo entender como alguns não entendem o que está acontecendo."

Há, claro, um tanto de verdade no que diz. Ele mesmo considera surpreendente que uma personagem com o seu perfil tenha chegado à Presidência. Huuummm... Só aconteceu porque a Lava Jato havia destruído o meio ambiente político. O cara chama a atenção dos aliados para a necessidade de uma atuação preventiva que atropele o processo eleitoral para que continue na Presidência. Está certo de que, dentro do ordenamento legal, o evento jamais se repetirá.

AGIR ANTES
Não há um só minuto, no encontro dos conspiradores, em que se aceita que vale o resultado das urnas e ponto final. E todos chegam a uma conclusão: é preciso agir antes. E se distribuem, então, tarefas. O general Paulo Sérgio Nogueira assegura que está em contato permanente com as Forças Armadas, num trabalho evidente de agitação e propaganda, e também deixa claro que manterá o cerco ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral). O próprio Bolsonaro anuncia que a reunião com os embaixadores será uma espécie de advertência ao mundo de que algo acontecerá com o processo eleitoral.

Afinal, ele asseverou, a esquerda iria vencer porque os números já estariam nos computadores do TSE. Em nenhum momento os valentes contam com a possibilidade de que conseguirão mudar as regras do jogo. Estão lá para tratar o modo de torná-las sem efeito.

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UMA ENTREVISTA DE GONET
A diferença entre os salta-pocinhas -- que vestem agora a fantasia do legalismo e, na prática, servem de esbirros ao golpismo -- e a extrema-direita arreganhada está só na sinceridade. Afinal, esta última não esconde o que quer.

O homem comum, nos botecos e churrascadas da vida, pode incidir em quantos delírios golpistas quiser e anunciar que vai assaltar os Palácios, o Céu, o inferno, o que lhe der na telha. Pergunto: pode fazer o mesmo a figura pública, o governante, os que exercem funções de estado? O exercício da liberdade de expressão do José, da Maria, da Tereza e do João é igual ao de um Jair Bolsonaro e de seus ministros? Carregam o mesmo peso, a mesma responsabilidade e as mesmas implicações?

Debatemos, eu e o advogado Walfrido Warde, o binômio "liberdade de expressão-crime" com Paulo Gonet, procurador-geral da República, em entrevista ao podcast "Reconversa", que foi ao ar no dia 30 de janeiro. Ele não opinou sobre nenhum caso em particular. Falou em tese:
"O extremista não aceita o outro. (...) E o Outro é a personagem da democracia, a quem eu levo o meu ponto de vista, levo as minhas perspectivas, as minhas mundividências, mas eu troco com esse Outro, levo as minhas pré-compreensões da realidade, do que é justo, do que é belo, e vou verificar com os outros o que pensam sobre isso para, depois, a gente construir alguma coisa de mais sólido. A gente tem de ter essa abertura para o diálogo. (...) O que é que tem o Ministério Público com isso? Quando o extremista não aceita o Outro, ele só quer a si mesmo, mas está na dele, está em casa, no máximo animando um jantar familiar de domingo -- ou destruindo --, vá lá, né? Mas quando isso começa a incitar movimentos de ruptura da ordem; quando isso se coloca como uma engrenagem para o propósito de ruptura com a ordem, de destruição dos pilares da convivência democrática, aí a gente entra no plano penal. Porque existe um limite para a tolerância. E o limite da tolerância é que o outro seja tolerante como eu sou".

SORTE E "MALA SUERTE"
Que sorte tem a democracia quando há um procurador-geral da República -- e reitero que a entrevista antecede a operação "Tempus Veritatis" -- que faz a devida distinção entre a mera paralogem disruptiva e o "incitamento a movimentos de ruptura"; entre o papo-furado e "uma engrenagem para o propósito de ruptura da ordem"; entre a conversa de botequim e a "destruição dos pilares da convivência democrática". Que "mala suerte" haver uma imprensa que, sob o pretexto de abrigar a diversidade de pensamento, dá voz aos que defendem a inimputabilidade de práticas que ensejam... o fim da diversidade.

Que sorte haver na titularidade da PGR alguém que nos lembra do "Paradoxo da Tolerância", nos termos de Karl Popper ("A Sociedade Aberta e Seus Inimigos") e que "mala suerte" ter o debate se rebaixado de tal forma que se tenta, dados os atores em questão, fazer a distinção impossível entre "atos preparatórios" para um golpe e "tentativa de golpe", mesmo que os meros "preparadores" sejam, entre outros, o presidente da República, o ministro da Defesa e o ministro da Justiça.

Se eu reunir os meus amigos para tomar de assalto o poder e instituir uma ditadura em que só se ouvirão Bach, Beethoven, Mozart, Mahler — jamais "O Bolero" de Ravel — e Tião Carreiro e Pardinho, bem... Mesmo distribuindo tarefas a cada um, e ninguém mexendo uma palha, nada pode nos acontecer ainda que descobertos. Mas quem diabos somos eu e meus amigos? Quais consequências adviriam de nossa determinação de impor o bom-gostismo (destacando que só emplacaria Tião Carreiro e Pardinho porque sou meio mandão; eles torceriam o nariz), além de nenhuma?

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Mas é assim com o chefe de governo, de estado e comandante das Forças Armadas? É assim com ministros de Estado? Eles falaram por falar, e o fruto daquela conspiração evidente foi irrelevante? A tese é ridícula. Mais do que ridícula: é golpista mesmo.

DEFESA DA IMPUNIDADE
O que querem Bolsonaro e a extrema-direita? Simples: a impunidade. Acham que nada fizeram de mal. O agora ex-presidente diz que apenas exercitava a sua liberdade de expressão e que se limitou a fazer pressões dentro das quatro linhas. Bem, já se contra-argumentou o suficiente.

Mas atenção! O que querem esses a que chamo salta-pocinhas, fantasiados de independentes? A impunidade também. Inexistem os tipos penais "Atos preparatórios para a abolição do Estado de direito" e "em favor de um golpe de Estado".

Nota: a Lei Antiterrorismo (13.260) é dos poucos textos legais que punem os tais "atos preparatórios" (Art. 5º). Adiante.

Assim, tudo o que fez Bolsonaro ao longo de quatro anos e o conteúdo da reunião de 5 de julho de 2022 seriam, pois, comportamentos admissíveis no orbital em que transitam os valores democráticos. Imagino o que não teriam dito e escrito se Dilma Rousseff tivesse organizado algo semelhante quando o impeachment batia à sua porta. As ruas se inflamaram por causa do tal documento de posse que teria sido antecipado para blindar Lula da PF — a Vaza Jato revelou depois que se tratava de mais uma farsa criada pela Lava Jato.

ENCERRO
O país não passou pelos quatro anos de desastre bolsonarista por acaso. A histórica tolerância com um biltre golpista, que afrontava desde sempre os valores civilizatórios, preservou seu mandato e sua elegibilidade. Quando veio a Lava Jato, produziu-se a terra devastada que foi a seiva maligna de muitas flores do mal.

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Pouco mais de um ano depois do assalto inédito às respectivas sedes dos Três Poderes, ainda que como ato final e grotesco — e isso não é sinônimo de mero improviso — de um golpe malogrado, aí estão aqueles de sempre, a exercitar o discurso de sempre, com a covardia de sempre, a defender, na prática, impunidade ou anistia para supostos "arruaceiros irrelevantes de cervejaria".

Bolsonaro percebeu que pode contar com eles. E já convocou mais uma arruaça — sem cartazes com ofensas, ele pede... Vale dizer: o líder do golpismo conclama os seus a que mascarem seus intentos conhecidos. E os salta-pocinhas pulam as pocinhas e indagam, isentos como as flores: "O que há de mal nisso? Democracia é assim mesmo".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.