Reinaldo Azevedo

Reinaldo Azevedo

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

A habilidade de Lula ao falar sobre Bolsonaro na Paulista e golpe de 1964

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu uma entrevista ao programa "É Notícia", da Rede TV, conduzido por Kennedy Alencar, também colunista do UOL. Somou pragmatismo e cálculo em vários momentos, evidenciando que, nesse ofício, ainda é o melhor do país. Em qual "ofício"? O da política. Sobre o ato liderado por Jair Bolsonaro na Paulista? "Foi grande", afirma, acrescentando à avaliação um alerta. E o golpe de 1964? "É história", e ele se diz mais preocupado com o ataque de 2023. Vamos ver.

Sobre o ato na Paulista, afirmou:
"Não é possível você negar um fato. Eles fizeram uma manifestação grande em São Paulo. Mesmo quem não quiser acreditar é só ver a imagem. Como as pessoas chegam lá é (sic) outros quinhentos. O dado concreto é que foi uma manifestação em defesa do golpe. Eles todos com muito medo, com muito... Acho que havia até um teleprompter para não falar nenhuma palavra que pudesse confundi-los. (...) Mas, de qualquer forma, é importante a gente ficar atento: essa gente está demonstrando que eles não estão para brincadeira. Eles querem continuar muito forte. Não é só no Brasil, não. É no Brasil, é na América Latina, na Europa inteira (...). Negando o quê? Negando a democracia, negando as instituições e falando as maiores barbaridades."

É claro que havia muita gente na Paulista. Seriam 750 mil pessoas? Isso é delírio megalômano. Dez Maracanãs lotados ou 15 Itaquerões? É uma piada. Fossem 50 mil, como acho que eram, e já seria um feito (do mal) e tanto, depois de tudo. Contestar o poder de mobilização do bolsonarismo nestes tempos, sob a liderança inequívoca do ex-presidente, seria uma burrice de dois modos distintos e combinados.

IGNORAR A REALIDADE É ESCOLHER MAL
Seria tolo porque "não é possível negar um fato". Aquele que ignora a realidade tende a fazer escolhas erradas. Quando fala, o líder político também passa orientações a seu partido e aos progressistas de maneira mais ampla. Está fazendo um alerta: "Convém não considerar que o adversário está definitivamente vencido porque a patuscada golpista de domingo evidencia o contrário. Não fosse assim, haveria lá meia dúzia de gatos pingados.

Com acerto, destaca, adicionalmente, que a extrema direita está bastante organizada no mundo inteiro. Fazendo o quê? Negando a democracia e as instituições. E, convenham, a literatura a respeito já é bastante ampla. Em aula inaugural, na segunda, na São Francisco, a Faculdade de Direito da USP, o ministro Alexandre de Moraes abordou o assunto:

"É uma verdadeira lavagem cerebral que é realizada. Isso com um método de ataque à democracia. Isso teve método a partir de estudos feitos e aprimorados pela extrema direita norte-americana. [Decidem]: 'Vamos cativar o eleitorado. E agora vamos corroer a democracia por dentro. Como corroer a democracia por dentro? Sem um discurso tradicional de golpe, de acabar com a democracia. Nós vamos dizer que a democracia está falida, está desvirtuada, não representa mais os anseios populares. E nós, salvadores da pátria, vamos precisar substituí-la. Não por outros motivos, a palavra 'liberdade' é a mais utilizada pelos extremistas. Liberdade deles! Mas é a palavra mais utilizada nas redes sociais".

A verdade, caras e caros, é que conhecemos o diagnóstico e podemos descrever o método a que recorrem. Até hoje, no entanto, não se chegou a um meio eficaz de conter a voragem contra valores civilizatórios fundamentais. A própria imprensa tem confundido, com alguma frequência, crime com liberdade de expressão.

Lula evidencia que domina perfeitamente o debate. Tanto é assim que, na sequência dessa resposta, falou sobre a necessidade de o Brasil e o mundo — e hoje esse debate está em todo canto — regularem as redes sociais. Mas que se insista: conhecer o problema não é sinônimo de ter uma resposta.

NÃO É BRINCADEIRA
Em sua fala, o presidente afirma um "eles não estão para brincadeira". E isso também é fato. Quem assistiu ao 8 de janeiro de 2023 tem a obrigação de saber disso. Mais: a cada dia, vêm à luz evidências novas da urdidura golpista liderada por Bolsonaro, e ela foi composta com fios das Forças Armadas também. E isso pode ser tudo, menos engraçado. O fato de o biltre ter sido malsucedido e ter se escafedido do país não anula a sua obra -- razão por que não haverá borracha nenhuma.

Continua após a publicidade

O petista venceu a eleição, mas o mal batido nas urnas é renitente e lidera a oposição. Até agora, são poucos os que, dizendo-se liderais, conservadores e direitistas democráticos, têm coragem de enfrentar a máquina bolsonarista.

SERIA UMA JOGADA?
3, 2, 1... para que apareça um texto enfezado no colunismo -- se é que já não está por aí -- a sustentar que Lula sabe muito bem o que faz quando reconhece a força de oponente. Seriam duelistas que se sustentam e se justificam, de modo a que o petista escolheria um adversário forte, mas inelegível, e este, por seu turno, contaria com essa condição como eventual elemento de dissuasão no STF: "Teriam eles coragem de condenar alguém com a minha popularidade?" Respondo: teriam.

O problema desse raciocínio aparentemente bem-arranjado é atribuir a um e outro o controle de vontades alheias. Vivo a cobrar que o tal "centro" compareça ao debate, mas não para reivindicar o barco "nem-nem", que já naufragou em 2022. Indago: a política se tornou refém da polarização, como querem alguns, ou lideranças conservadoras, mas não autoritárias, se deixaram capturar por fascistoides e têm receio de afrontá-los?

GOLPE DE 64
Lula foi indagado sobre os 60 anos do golpe de 31 de março de 1964. Haverá ou não Ordem do Dia? Que se saiba, não. Afirmou:
"Eu, sinceramente, vou tratar da forma mais tranquila possível. Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou. O povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda. O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente".

É possível que haja uma zanga ou outra em setores de esquerda, mas a resposta é boa quando se tem a responsabilidade de governar um pouco mais do que o teclado ou um grupo de amigos. O governo demitiu quem devia ser demitido, incluindo militares. Tem de exigir disciplina, deixando que os historiadores e a sociedade civil disputem um passado — que, sei bem, ainda é presente.

O foco do governo, nesse particular, consiste em consertar os estragos produzidos pela politização da caserna. Mais importante do que Lula ser judicioso sobre 1964 é salgar os quartéis contra o golpismo em 2024. E acho que isso está sendo feito.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes