Reinaldo Azevedo

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Opinião

Lula apanha todo dia há 14 meses. Cuidado, gente, com Teocracia da Pistola!

O presidente Lula passou 14 meses levando porrada dia sim, dia também, dos "analistas independentes", enquanto os índices da economia, sem exceção, melhoravam para todos os estratos sociais, não apenas para os pobres. Ou a coisa era tratada como nota de rodapé ou se atrelava a boa notícia a supostos catastrofismos vindouros.

A popularidade do governo e a de Lula tiveram uma queda significativa, e, finalmente, os mesmos "independentes" reconhecem que quase tudo melhorou. Esse ou aquele dados das contas públicas tiveram uma pequena e inescapável deterioração, mas não é sentida no bolso. É claro que, sem correção, a conta chega um dia. Mas ela está em curso. Uma coisa é certa: não se explica o mau humor em razão de uma piora da economia que não houve. Ao contrário: a renda do trabalho no ano passado teve o maior salto desde o Plano Real.

Então por que a queda? Ora, concluem os valentes, por culpa de Lula! Assim, tem-se a notável construção mental segundo a qual o que vai bem é manifestação do saber divino, e o que vai mal deve pesar nas costas do presidente.

Há erros? É claro que sim. Mas o espancamento faz sentido? Entre os "expertos" (com "x"), há os nostálgicos daquele "fascismo nosso (deles) de cada dia", ansiosos, quem sabe?, pelo paradigma "raio que os parta; não tou nem aí", eventualmente em parceria com a Dama da Teocracia do Oportunismo...

Que os nababos que se beneficiaram com políticas de exclusão no governo anterior estejam nessa, bem, é compreensível. Que o fanatismo anseie por um retrocesso, também é explicável. Que abobados usem a sua pena e a sua voz para o serviço sujo, aí não. Em muitos casos, é servidão voluntária; em outros, é só o estágio final da degradação. Que fique claro: não me refiro aqui aos esquemas midiáticos da extrema-direita — estão numa empreitada político-ideológico-comercial —, mas àqueles que têm compromisso com a verdade.

Apontar o dedo contra Lula é a saída mais preguiçosa. Não acredito que críticas a Israel, pregação de diálogo Ucrânia-Rússia ou lhaneza com Nicolás Maduro sejam fatores tão relevantes na queda da popularidade, embora não colaborem, é evidente, para elevá-la. Querem saber? Penso que o fenômeno é muito mais perigoso e complexo do que imaginam os que batem no líder petista por profissão. Alguns sabem muito bem o que fazem, insisto, e estão "trabalhando". Mas há os que flertam com a fascistização do país sem se dar muita conta — os inocentes úteis de sempre, frequentemente inúteis na defesa da democracia.

GOVERNO SE COMUNICA MAL?
O governo se comunica mal e ainda não entendeu direito o ambiente das redes? Acho que sim. E o próprio Lula, um formidável comunicador no contato direto, tem alguma dificuldade em entender a natureza desse jogo -- que não é fácil para ninguém.

Não gosto da palavra "polarização" porque traz necessariamente uma carga ideológica. O "Mito" ocupa uma ponta do debate: a extrema-direita. Mas Lula não está na extrema-esquerda. Ainda que os dois nomes liderem o mercado das opiniões, a disputa não se dá entre dois polos. Essa observação é fundamental para que não se caia na tentação de considerar ou que um legitima o outro — e são, pois, opostos que se combinam —, ou que um evidencia quão ilegítimo, dado um determinado padrão (qual?), é o outro. E que padrão é esse? O da democracia e do estado de direito. Lula é um legalista; Bolsonaro é um golpista. Tratá-los como duelistas que se abraçam e se alimentam do confronto é um dos erros que cometem os que se querem centristas, armando para si mesmos a tal armadilha "nem-nem", de que já tratei tantas vezes.

Insisto: o governo ainda se comunica mal, mas não me peçam uma fórmula porque eu também não a conheço. Democracias de todo o mundo estão ocupadas em enfrentar as bolhas de desinformação hábil e profissionalmente alimentadas por extremistas de direita. E notem: nem se trata de saber se as pessoas acreditam nessa ou naquela mentiras. Talvez desconfiem de muitas das bobagens que os algoritmos lhes oferecem. O problema está no fato de que se tornam presas da bolha, sem acesso à contestação, ao confronto de ideias, à diversidade.

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DE VOLTA À POPULARIDADE E UM POUCO DE EUA
Os institutos Quaest, Atlas/Intel e Ipec apontam a queda na popularidade de Lula e do governo. Nesta segunda à noite, a Folha divulgou números do Datafolha apontando a mesma ocorrência na cidade de São Paulo. Em agosto, 45% diziam ser o governo ótimo ou bom; agora, 38%. Consideravam-no regular 29%; oscilou para 28%. E subiu de 25% para 34% os que o veem como ruim ou péssimo. Uma pista: entre os evangélicos, que representam um quarto da amostra, o índice negativo subiu 12 pontos em seis meses -- para 49% --, e o positivo caiu 16 pontos. Registre-se de novo: não há índice econômico, no que respeita a vida das pessoas, que não tenha melhorado no período.

Antes que avance, eu preciso ir um pouquinho ali, aos EUA. No retrato de agora, não há muitas razões para acreditar na reeleição de Joe Biden, embora faça um bom governo. Trump, o golpista, ia se fortalecendo à medida que os processos iam se amontoando. Assim como foi conquistando espaço em 2016 na proporção em que colecionava absurdos. Nesta etapa da disputa, está mais forte do que há oito anos.

Não se pode acusar Biden de ser hostil a Israel — o apoio americano a Netanyahu nas questões relevantes é incondicional. O presidente tenta evitar um novo banho de sangue em Rafah agora, mas Netanyahu já disse que não abre mão de atacar massivamente uma área que virou um gigantesco campo de refugiados. Sua sede de sangue parece ser ainda maior do que a sua impostura. Ele quer se manter no cargo com o apoio da extrema-direita, e isso significa que precisa mandar esmagar mulheres e crianças indefesas.

É Biden quem acusa Trump de não dar bola para a Ucrânia e de preparar uma espécie de rendição a Putin caso chegue à Presidência. No discurso sobre o Estado da União, o democrata disse que o republicano está "se curvando diante de um líder russo", o que classificou de "ultrajante, perigoso e inaceitável". Esfregou ainda na cara do adversário dados muito eloquentes sobre a economia e o confrontou naquela que é a peça de resistência do discurso do oponente: a questão da imigração — e não se enganem: Biden está muito longe de governar com fronteiras abertas. É uma mentira.

Lula está distante ainda de uma nova disputa, mas é evidente que ele e o presidente dos EUA enfrentam hoje máquinas de desinformação, que remetem a um universo de crenças e valores, que não se deixa mudar ou convencer pela evidência dos fatos. Entendo que, também aqui no Brasil, por ora ao menos, não se trata de o governo ser eficaz ou não; de ser simpático ou não ao governo de Israel; de apoiar ou não a Ucrânia na guerra contra a Rússia... Outra guerra, nesse particular, parece mais relevante.

COLONIZAÇÃO DO ESPÍRITO
A extrema-direita aqui e alhures pratica o que ousaria chamar de "colonização do espírito". Os que caem nas suas malhas operam uma espécie de rompimento com a realidade factual. Não! Não estou aqui a tratar com menoscabo a consciência alheia -- até porque cada um tem a sua, e todos fazemos escolhas dentro do que é possível e do que conhece ou julga conhecer.

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Mas vocês sabem que é efetivamente mentira que esteja em curso um modelo "socialista" nos EUA, não? Até Nikki Haley, ao desistir de com correr com Trump, mandou ver:
"Chegou a hora de suspender a minha campanha. O caminho do socialismo é o caminho para a ruína dos Estados Unidos."

É efetivamente mentira que o presidente tenha mandado transportar imigrantes de avião, de maneira clandestina, para que não fossem submetidos a autoridades da imigração, como acusa Trump. É efetivamente mentira que esses imigrantes respondem por uma explosão de violência e que tire trabalho dos americanos — num país que vive hoje, praticamente, um momento de pleno emprego. É efetivamente mentira que um plano para ampliar o atendimento à Saúde e o acesso à seguridade social agrida a liberdade de escolha — tampouco o Estado Leviatã estará, por isso, a ameaçar os indivíduos.

E, no entanto, milhões estão convencidos de que assim são as coisas, não se mostrando dispostos a navegar em espaços virtuais que contestem suas convicções.

É MUITO DIFERENTE POR AQUI?
Israel, Ucrânia, Venezuela? Estariam mesmo na raiz da queda de popularidade? Reprovar declarações não me parece suficiente para que se rejeite o governo... Vejo, isto sim, que a máquina dos extremistas de direita para promover a tal "guerra cultural" continua a atuar de modo muito eficaz -- e é evidente que se somam a isso algumas trapalhadas do governo e mesmo inabilidades. Às vezes, o Planalto tem sido administrativista quando deveria ser mobilizador e mobilizador quando deveria ser meramente administrativista.

Está tudo nas redes. O que tem Lula a ver com a questão da descriminação do aborto? Resposta: nada! Mas não é o que milhões recebem em seus celulares todos os dias. Michelle Bolsonaro --que tenta se libertar do marido com a mais espetacular de todas as vinganças pessoais, que seria se candidatar (e se eleger) à Presidência com os votos dele -- mandou ver na Bahia há três dias, num evento do PL Mulher:
"Nós precisamos macetar a legalização do aborto; macetar a legalização das drogas; nós vamos macetar essa ideologia de gênero do mal; vamos macetar tudo aquilo que o inimigo e essa extrema-esquerda maldita, que são (sic) usadas para o mal, querem implantar na nossa sociedade".

Nem preciso fazer juízo de valor sobre qualquer um desses temas, mas todos sabemos que eles não constituem pauta do governo. Pode parecer espantoso, já não tivéssemos experimentado um trauma que matou mais de 700 mil pessoas, mas a resistência à vacina entra nesse capítulo da "agenda do mal". A coisa é de tal sorte estupefaciente que não ficamos mais chocados com o fato de que a vacina contra a dengue para as crianças encalhou. Não estivéssemos, como país, com a razão um tanto doente, e se cobraria do governo mais vacinas, já que inexistem em número suficiente — ainda que ele tenha agido corretamente no caso.

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Esse "malaise" não está só aqui. Acaba de assaltar Portugal. Pode eleger um insurreicionista nos Estados Unidos. Chegou com força à Holanda, Suécia, Finlândia... A eleição para o Parlamento Europeu, no meio do ano, pode elevar até uma centena de neofascistas, que emergiriam com força impressionante na era das redes, para aquele colegiado de 705 cadeiras. Atenção! Não se trata do risco de haver cem direitistas — porque eles são muito mais. Fala-se aqui de extremistas.

ALGUNS ERROS DE OPERAÇÃO
É claro que, nesse ambiente, alguns erros de operação do governo custam especialmente caro. Ainda que eu não atribua, como fica claro, a queda da popularidade de Lula a suas declarações sobre política externa, é evidente que a reação a algumas declarações impróprias atua como fermento. O imbróglio sobre os dividendos da Petrobras tornou-se um caso exemplar de como números espetaculares da empresa se transformaram numa sequência impressionante de más notícias. Sim, é fato: especuladores, lobistas e pilantras colaboraram para tanto, mas essa gente existe, não é mesmo?

A formalização dos trabalhadores de aplicativos, parece, deveria ter se dado pela via da mobilização da própria categoria — e não é tão difícil de operar a questão, nos limites da lei — e não por certo empenho de caráter, vamos dizer, administrativista. A proposta não é ruim, mas melhor seria que viesse precedida do fermento do debate. Por incrível que pareça, nas redes, os que se opõem a uma proposta civilizadora do mundo do trabalho acabaram se impondo. Sim, eles o fizeram com mentiras, simplificações, burrices. Mas sempre é preciso considerar que essas pessoas também existem.

CORRUPÇÃO, STF E ANISTIA
"Reinaldo, você esqueceu de falar da corrupção e do julgamento do Supremo..." O primeiro tema voltou a frequentar a imprensa com o tal "desmonte da Lava Jato", como dizem alguns, como se aquele troço fosse digno de continuar "montado". Também isso não é agenda do governo. Mas as viúvas Porcinas de Sergio Moro e Deltan Dallagnol andaram bem assanhadas, é verdade.

Quanto a um certo e suposto enfaro do combate ao golpismo, querem que eu diga o quê? Lugar de golpista é a cadeia. E observo que Lula se manifesta muito pouco a respeito. "Ah, mas parem de criticar Bolsonaro porque isso só alimenta o bolsonarismo..."

É um raciocínio abobado porque parte do pressuposto de que, sem esse enfrentamento — que se dá dentro das regras do jogo —, o bolsonarismo se conformaria à democracia e ao estado de direito. Imaginar que possa haver a versão benigna desse troço — refiro-me àqueles que organizam a patuscada, não ao eleitorado, é, definitivamente, não entender nada.

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De resto, o que o governo tem com isso?

O que noto, aí sim, é que alguns espertalhões, fazendo um manejo picareta da tal "polarização" — termo que não endosso — estão tentando criar uma espécie de razão teórica superior para defender anistia a golpistas. Seria a tal "pacificação".

COMEÇANDO A VOLTAR E LUZ DE ADVERTÊNCIA
Abri este longo texto lembrando que Lula apanha há 14 meses e que alguns dos que o espancam tiveram, ao menos, a delicadeza de reconhecer que faz um bom governo, incompatível com a avaliação. Todos os índices econômicos e sociais melhoraram. E há, ademais, a aprovação do arcabouço fiscal e da reforma tributária. Com um ano de gestão.

Como também se deixa claro aqui, as bolhas de opinião não costumam gostar do contraditório nem tem muita simpatia pela imprensa, mas sabem dela se alimentar quando aquilo que leem serve para confirmar seus próprios preconceitos e sua militância.

Bolsonarista mesmo, o tal "raiz", não gosta de Lula nem vai aplaudi-lo, pouco importa o que faça. Mas não se deve confundir esse grupo com todos os que votaram em Bolsonaro, assim como petistas não são todos os que escolheram Lula contra o risco que o outro representava. Não há menor chance de o petista repetir a performance, no que respeita à popularidade, do seu segundo mandato.

Que aqueles que se sentem de algum modo comprometidos com a preservação da democracia e do estado de direito pensem bem. Afinal de contas, queremos o quê? Se um bom governo — e certamente muitas restrições e críticas podem ser feitas — vê cair de forma importante a avaliação positiva sem que se conheça o motivo, a não ser algumas hipóteses que parecem um tanto fantasiosas, pode ser que a razão esteja na nossa cara.

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Há uma boa possibilidade, e isso se vê mundo afora — de forma muito clara nos EUA —, de que, para uma fatia importante da população, adesões e afinidades que estão no terreno da ideologia, dos valores e dos preconceitos tenham mais importância do que a inflação, o emprego, o juro, o ganho real dos salários... "Ah, Reinaldo, e se fosse o sonho de um mundo melhor, mais justo, com menos iniquidades..." Seria uma maravilha! Mas é isso o que se tem aqui e fora daqui?

ENCERRO MESMO
Alguns inocentes inúteis (para a democracia) parecem não perceber que a extrema-direita pretende fazer "tabula rasa" dos avanços do governo porque está determinada a construir uma alternativa que amalgama fundamentalismo religioso com o sangue das vítimas do paradigma "não tou nem aí", modelo "raio que os parta". Seria assim uma espécie de Teocracia da Bala.

Essa história de que a democracia sempre vence no fim é besteira. Pode perder. E se pode operar o desastre sem golpe militar. Também é possível fazê-lo pelo voto.

"Então não pode criticar o governo porque se estará ajudando a extrema-direita?"

Que besteira!

Convém não ajudar a extrema-direita porque se pode atacar o governo, entendem?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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