Reinaldo Azevedo

Reinaldo Azevedo

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Teses canalhas 2: O povo e a impunidade; liberticidas contra governo Lula

Há, como se lê aqui, o artrópode moral para quem a tentativa de golpe não passou de mero "ato preparatório". Costuma andar acompanhado de um outro tipo. Este perde o sono a pensar no destino dos bolsonaristas quando seu líder estiver atrás das grades. A questão é pertinente, mas sem a ilação sorrateira de que se estará a contrariar a vontade de parte considerável do eleitorado, como se a aplicação do Código Penal devesse passar pelo crivo da popularidade do criminoso.

NORMALIZAÇÃO DO BOLSONARISMO
Houve e há um esforço de normalização do bolsonarismo. Posso ver, em retrospectiva, ali nas primeiras décadas do século passado, os congêneres desses valentes a fazer objeções, mas não muitas, a aspectos dos vários fascismos europeus, reconhecendo, no entanto, a sua "legitimidade"...

Meliantes dessa estirpe entendem que os desatinos da extrema-direita que estão por aí são puramente reativos. Existiriam na exata medida em que apenas respondem a provocações, bobagens, exageros ou visões de mundo autoritárias dos progressistas.

Fosse um pensamento burro, mas honesto, seria razoável responder que o grande e variado campo da esquerda não é o único gerador de "saberes" originais, a partir dos quais se plasmam, então, visões de mundo. Por definição, a repressão à novidade e ao que desorganiza o "statu quo" precede os fatores de instabilidade da ordem instituída. Vale dizer: é mentira que a extrema-direita apenas reaja. Ela também age e produz valores.

AVILTAMENTO
Ora, tais extremistas repetem aqui o que fazem mundo afora: erigem fantasmas que estariam a assombrar "as nossas tradições e nosso modo de vida", propondo, para combatê-los, o enrijecimento da sociedade dos direitos, de modo que isso a que vigaristas chamam "legitimidade democrática", ainda que "conservadora" (trata-se de um emprego porco do vocábulo), se transforma num instrumento de aviltamento da própria democracia.

Que essa visão deturpada e cínica viceje em círculos fascistoides, convenham, não surpreende e constitui a natureza do jogo. Mas percebo, com algum espanto (ou nem tanto), que parte considerável da imprensa se deixa capturar pela trapaça ou a promove. Notem que os "críticos do Supremo", por exemplo, sob o pretexto de defenderem "o devido processo legal", atacam o tribunal, mesmo reconhecendo que lhe coube ser a última linha de contenção do morticínio e do golpe.

"Você está preparado, Reinaldo, para a hipótese de essa degeneração dos fundamentos civilizatórios se tornar a linha dominante, de modo a que se possa entrar, para valer, num período de trevas?" Preparado, creio, ninguém está. Só me resta dizer que, se acontecer, não será com a minha colaboração, silêncio ou juízos compassivos: "Ah, não são tão maus; se a gente conseguir corrigir isso e aquilo, ok..."

Só um imbecil ou um canalha podem acreditar numa versão benigna do bolsonarismo e assemelhados. A propósito: num discurso em Ohio, neste sábado, fazendo campanha para seu candidato ao Senado, Donald Trump afirmou que imigrantes não são pessoas e previu um banho de sangue nos EUA se perder a eleição. Aqui no Brasil, o tipo de canalha de que trato sustenta que a existência de uma Justiça Eleitoral que inabilita um Bolsonaro constitui afronta à vontade do eleitor...

LIBERTICIDAS
Sei o que vi e vejo, o que li e leio, o que constatei e constato. Um bom governo, como é o de Lula, tem apanhado implacavelmente da imprensa, quase sem exceção, que força a mão -- dado o pressuposto de uma suposta polarização --, na suposição de que, se é preciso esconjurar o que Bolsonaro representa, deve-se fazer o mesmo com Lula, como se fossem opostos que se combinam.

Continua após a publicidade

Trata-se de uma perspectiva liberticida, que confunde a discordância legítima com a depredação da própria democracia. Não se deve confundir, é certo, o eleitorado de Bolsonaro com a militância bolsonarista organizada, porquanto as variáveis que determinam o reacionarismo do primeiro, muitas vezes forjadas na carência, não ostentam o dolo da outra, que se expressa por intermédio de milícias neofascistas. Não! Definitivamente não se deve tomar uma coisa por outra e outra por uma, mas nem uma nem outra têm lições a dar à ordem democrática, exceto uma: esta precisa se defender.

DIREITA SEM POVO E EXTREMA-DIREITA COM VOTO
Observo que a tentativa de "corriqueirização" do bolsonarismo ou o esforço para transformá-lo no "oposto combinado" do petismo deriva, sim, de uma particularidade que merece ser estudada. O establishment que hoje fala em boa parte da imprensa é formado, dado seus valores e propósitos, por uma direita que se quer ilustrada, técnica e apegada a fundamentos da boa governança -- ainda que reclame muito pouco ou quase nada de renúncias fiscais, subsídios e juros especiais que financiam suas próprias posições nas disputas distributivas.

Ocorre que essa direita, digamos, tradicional não dispõe de "povo" que lhe dê suporte numa disputa eleitoral, o que tem impedido que surja "o nome" que empreste uma fachada "social" a suas postulações. Assim, a barbárie — seja o eleitorado de Bolsonaro, seja a militância fascistoide — não deixa de lhe ser uma conveniência porque, quando menos, serve de barreira ao petismo. Houve covarde, como já notei aqui, que chegou a sonhar com um bolsonarismo civilizado, apostando numa quimera que cresceria contra a sua própria natureza.

Só os canalhas são mais diversificados do que os artrópodes. A suposição de que a prisão de Bolsonaro e, mais genericamente, a punição a golpistas maculam, de algum modo, a ideia da representação pretende conferir uma aparência um tantinho mais sofisticada à defesa da anistia para criminosos, tese de inconstitucionalidade congênita.

"Reinaldo, se a esquerda não fizesse isso e aquilo; se Lula não dissesse isso e aquilo; se os progressistas não defendessem isso e aquilo, você acha que a extrema-direita seria tão saliente?" Como diria o filósofo Nikolas Schopenhauer Ferreira, "se a minha vó tivesse dente, ela chupava uva". Esse rapaz não nasceu dos erros daqueles que combatem as barbaridades que ele diz, mas das circunstâncias que destruíram o meio ambiente político e fizeram do ódio uma máquina eficaz de destruir e erigir reputações. Eis o pântano em que nasceu essa flor.

A pacificação do país passa pela prisão de Bolsonaro e de quantos com ele se articularam para dar um golpe de estado. Como perderam, pagam — segundo a lei. Tivéssemos perdido, estaríamos nós a pagar. Numa terra sem lei.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes