Reinaldo Azevedo

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Opinião

Teses canalhas 1: Ato preparatório uma ova! Meu polo é 'golpista na cadeia'

Só uma espécie é mais numerosa do que a dos artrópodes: é a dos canalhas. Costumam prosperar nas sombras, nas beiras, nas brechas, mas há os destemidos, que dizem logo o que querem. Um exemplo? "Jair Bolsonaro não cometeu crime nenhum e só tentou pôr em prática uma interpretação possível da Constituição, e as acusações são uma conspiração que une o STF e as esquerdas". Nota: nunca incluo nessa categoria a defesa técnica de pessoas enroladas. Estando nos limites da lei, cumpre o seu papel.

Por que essas considerações iniciais? Prosperam na imprensa duas linhas de militância — posto que análises não são — sobre a conspiração liderada por Bolsonaro. Reivindicam o status de "isentas", já que se querem livres da dita "polarização" que há no país. Este escriba não reconhece a autenticidade desse achado, que se transformou num clichê analítico. "Polarização" se dá entre polos; se um é a extrema-direita, o outro há de ser a extrema-esquerda. Sei onde está a primeira, mas cadê a segunda? Vamos às imposturas.

A PRIMEIRA LINHA: "MEROS ATOS PREPARATÓRIOS"
"Ah, Bolsonaro pode até ter pensado em cometer o crime, mas não foi adiante, e, pois, nada aconteceu", dizem os aprendizes de corvo. Todas as articulações, pressões e intimidações devem ser consideradas meros "atos preparatórios". É mesmo?

Note-se, à partida, que essa conversa de que tais antecedentes jamais são puníveis é falsa. A Lei Antiterrorismo (13.260), por exemplo, prevê no seu Artigo 16:
"Art. 16. Aplicam-se as disposições da Lei nº 12.850, de 2 agosto de 2013, para a investigação, processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei."

E o que é mesmo a Lei 12.850? É a que trata das organizações criminosas, assim definidas no Parágrafo 1º do Artigo 1º:
"§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional."

Como se constata, a organização criminosa pode preceder o crime. Não é outra a prescrição do Artigo 288 do Código Penal. Assim, ataco até aqui a máxima de que "ato preparatório nunca é crime". Avancemos.

ELE FICOU APENAS IDEANDO?
Indago: o então presidente ficou recluso no Palácio da Alvorada -- metido em seu chinelão, escoltado por calça tactel e camiseta da seleção -- a meramente idear conspirações para impedir a posse de Lula, agredindo, no máximo o bom senso e o bom gosto? Ou ele, efetivamente, mobilizou entes e pessoas de estado para dar o "soco na mesa" (by general Augusto Heleno) e, assim, rasgar a Constituição?

A delação premiada de seu ajudante de ordens, Mauro Cid, e os respectivos e demolidores depoimentos de dois comandantes — Freire Gomes (Exército) e Batista Jr. (Aeronáutica) — não deixam a menor dúvida sobre o que se deu.

E olhem que me atenho aqui aos eventos que antecederam imediatamente a eleição e àqueles que a ela se sucederam. É certo que a história completa de capítulo tão patético e perigoso da República não poderá se descuidar dos quatro anos de mandato, com ênfase na deposição, em março de 2021, do ministro da Defesa e dos respectivos comandantes das três Forças, com o fito de substituí-los por militares simpáticos à intervenção armada na política. Naquele caso, o objetivo era ameaçar o Supremo, que decidira, nos limites da Carta, enfrentar a política oficial contra a covid.

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Atenho-me, aqui, à reta final do mandato: perturbação do processo eleitoral, a cargo do Ministério da Defesa (Paulo Sérgio Nogueira); incitação do comando das Forças para impedir o pleito ou tornar sem efeito o seu resultado; mobilização para decretar estado de defesa e estado de sítio, além de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO); agitação da soldadesca e estímulo explícito à ocupação de dependências anexas a quarteis do Exército... Bem, afirmar que isso tudo seria, no máximo, "ideação" sem consequência, caracterizando não mais do que "atos preparatórios", é tese que, vá lá, fica bem na boca e na pena da defesa — é seu papel, insisto. Fora desse ambiente, trata-se mesmo de... canalhice. Avancemos.

CRIME TENTADO
Entre a mera conjectura de um crime e a sua efetivação, pode existir a tentativa E, quando menos, pode-se dizer que Bolsonaro tentou. Vamos ao Artigo 14 do Código Penal:
Art. 14 - Diz-se o crime:
I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal.
Tentativa
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Pena de tentativa
Parágrafo único - Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

Nem os bolsonaristas mais ensandecidos, daqueles que oram para pneu, negam a "tentativa". Aliás, essa é uma das razões de adoração de seu guia e de repúdio aos legalistas das Forças Armadas. Basta visitar a pregação das milícias digitais: o "Mito" fazia a sua parte, diziam os fanáticos, mas os oficiais-generais não colaboravam. Ou por outra: ele "tentava", sim, mas os fardados resistiam. Para voltar ao Artigo 14, o desastre só não aconteceu "por circunstâncias alheias à vontade do agente".

Ou que outra razão teria levado a deputada Carla Zambelli (PL-SP), por exemplo, a molestar o então comandante da Aeronáutica, cobrando-lhe a intervenção, como ele revela em depoimento? Para lembrar: tais milícias, obedecendo aos conspiradores, passaram a hostilizar os militares que resistiam ao golpe.

O TÍTULO XII DO CÓDIGO PENAL
Não havendo dúvida razoável de que Bolsonaro tentou virar a mesa, é preciso que nos voltemos, então, ao Capítulo XII do Código Penal, a ele incorporado em 2021, com o fim da Lei de Segurança Nacional. Transcrevo os Artigo 359-L e 359-M:
"Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência."

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O CP, no Artigo 14, como vimos, prevê alívio de um terço a dois terços da pena para o crime tentado, mas não consumado. Ora, nem isso se aplica a Bolsonaro porque a tentativa constitui, por si, a natureza dos tipos penais. Não houvesse tal tipificação, ele poderia pedir o benefício da pena menor por ter apenas "tentado", não sendo bem-sucedido em razão de eventos alheios à sua vontade. Mas, oh desdita pra ele!, o argumento se perde porque a lei pune com pena severa justamente a tentativa, dada a gravidade do crime. Perdeu, cara!

MAIS: QUEM ERA BOLSONARO NA ORDEM DAS COISAS?
Não estivesse, entendo, suficientemente demonstrado por que Bolsonaro há de responder, no mínimo, por tentativa de abolição do estado de direito, por tentativa de golpe de estado e por organização criminosa, é preciso que nos lembremos de quem era ele na ordem institucional.

Transcrevo trecho do que disse Paulo Gonet, procurador-geral da República, em entrevista ao podcast "Reconversa":
"Quando o extremista não aceita o outro e só quer a si mesmo, mas está na dele, está em casa, no máximo animando ou destruindo um jantar de domingo, vá lá... O problema é quando isso começa a incitar movimentos de ruptura com a ordem; quando isso se se coloca como uma engrenagem para esse propósito de ruptura com a ordem, de destruição dos pilares da convivência da democrática, aí a gente entra no plano no plano penal; aí a gente não pode aceitar."

Embora notavelmente vulgar, primitivo mesmo!, Bolsonaro não era um qualquer. Tratava-se do presidente da República, comandante supremo das Forças Armadas. Protegido pelo cargo, ele as mobilizou contra a democracia e o estado de direito, que lhes cabe proteger no que depender do uso da força. Ou por outra: pela primeira vez na sua história, o Brasil foi governado por um autêntico subversivo.

Fato: dois comandantes resistiram à intervenção armada. Tivessem condescendido — e bastaria que o fizesse o do Exército —, teria havido mortes. Nunca se esqueçam: um golpista é também um assassino em potencial.

Nem os bolsonaristas-raiz negam a tentativa de golpe — e por isso lamentaram a solidão do seu líder e a suposta traição dos militares. Mas o tipo de canalha de que trato aqui — essa espécie com mais variantes do que os artrópodes —, ah, ele nega que o crime tenha sido cometido e quer que a impunidade seja uma das faces da "conciliação" e do "fim da polarização".

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Defendamos a reconciliação plena do país com a Constituição, com o Código Penal e com as instituições. E o único modo de fazê-lo é mandando golpistas para a cadeia. Ou eles tentarão de novo amanhã. Se fazer tal defesa é estar num dos polos, eis o meu.

Leiam "Teses canalhas 2: O povo e a impunidade; liberticidas contra governo Lula"

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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