Reinaldo Azevedo

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Opinião

Imprensa, não tire os fascistoides para dançar. Nem deveriam estar no baile

O economista americano Paul Krugman, crítico de Donald Trump, quer saber por que os americanos estão ainda tão pessimistas com a economia. Ele não tem resposta. Ninguém tem. O desemprego está abaixo de 4%, caminhando para ser a taxa mais baixa em 50 anos. A inflação é de menos de 3%. Num dado momento do seu artigo, escreve:

"Fiquei impressionado com os resultados das pesquisas em estados-pêndulo realizadas pela Universidade Quinnipiac, que perguntam aos entrevistados sobre a economia nacional e suas situações financeiras pessoais.
Na pesquisa mais recente, feita com eleitores do Michigan, apenas 35% das pessoas disseram que a economia nacional estava excelente ou boa, enquanto 65% disseram que não estava tão boa ou estava ruim.
Mas quando perguntados sobre suas finanças pessoais, as proporções se inverteram basicamente, com 61% dizendo que estavam em excelente ou boa situação e 38% dizendo que estavam em situação não tão boa ou ruim. Uma pesquisa de janeiro com eleitores da Pensilvânia produziu resultados quase idênticos."

Se a eleição presidencial fosse hoje, o republicano Donald Trump venceria o democrata Joe Biden, o titular do mandato que produziu números reluzentes. É farta, a esta altura, a literatura política que analisa a força disruptiva de movimentos de extrema-direita que cresceram com as redes sociais; que se colaram a correntes religiosas, ameaçando a laicidade do Estado; que enredam milhões em bolhas de realidades paralelas, de modo que os fatos perdem terreno para fantasias e delírios.

Os dados das pesquisas de Michigan e da Pensilvânia são muito eloquentes. O sujeito admite que a sua vida melhorou, mas acha que a dos outros piorou. Houvesse os dados de sua vivência, de sua experiência, é provável que boa parte pertença a uma dessas bolhas.

E O GOVERNO LULA?
Com um ano e três meses de mandato, o governo Lula conseguiu articular com o Congresso, a despeito de todas as dificuldades, a aprovação do arcabouço fiscal e da reforma tributária, eixos estruturantes da economia. O desemprego é o mais baixo desde 2014; a renda do trabalho teve o maior ganho desde 1995, no Plano Real. O crescimento está acima das expectativas; os juros estão em queda, e a inflação também, uma combinação rara. Ademais, programas sociais que haviam sido destruídos por Jair Bolsonaro foram retomados.

Não ocorre à imprensa americana sóbria culpar o próprio Biden por suas dificuldades eleitorais ou pela liderança de Trump nas pesquisas. Também não o faz o lixo trumpista disfarçado de jornalismo — a não ser para produzir mais disparates ideológicos, associando o democrata ao socialismo ou acusando-o de abrir a fronteira para imigrantes criminosos. Vale dizer: a analise técnica, profissional, vê o país numa encruzilhada — e se dá de barato que a eventual vitória do republicano pode levar a uma crise inédita —, e os palhaços macabros do trumpismo reproduzem as sandices do seu líder. Existe saída por lá? Os sensatos estão muito pessimistas.

No Brasil, um Supremo que não perdeu o juízo, a despeito das porradas que leva, conseguiu pôr freio ao golpismo e à fúria disruptiva dos reaças, e aquele que encarna o ódio ao Estado de direito e ao pacto civilizatório, apesar do prestígio popular de que desfruta, está impedido de disputar as próximas eleições. Dados os crimes que cometeu, será condenado e preso. Mas é certo que a intolerância não será encarcerada com ele. Reconheça-se ao "Mito" um feito: ele conseguiu despertar a besta que adormecia em vários nichos da sociedade brasileira, inclusive em algumas camadas pobres. A democracia brasileira, mesmo com todas as nossas carências, tem conseguido se proteger com mais eficiência do que a americana.

TUDO CULPA DE LULA
Krugman se pergunta, sem saber a resposta -- a não ser, parece, o que têm apontado os estudiosos sobre a crise enfrentada pelos regimes democráticos mundo afora -- por que os americanos estão tão pessimistas e podem dar a vitória a Trump. Nem ele nem ninguém razoável apontam o dedo contra Biden. Ah, não é o que fazem, com raras exceções, os analistas por aqui quando pensam a queda de popularidade do presidente e do seu governo.

É claro que a culpa é, a seu juízo, de Lula, e pouco se diz a respeito do poder da máquina de desinformação. Ele não estaria sabendo lidar direito com os seus próprios feitos — como se estes estivessem sendo prodigalizados pelo jornalismo profissional, o que é mentira — e estaria produzindo notícia negativa ao se meter a falar sobre a Faixa de Gaza ou sobre a guerra da Ucrânia ou quando se identifica a influência do governo na decisão de não distribuir os dividendos extraordinários da Petrobras.

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A imprensa profissional — aquela que se quer independente, moderada, sóbria, isenta, sem viés — fez um estardalhaço danado sobre esses temas, e eles se transformaram em memes nas páginas e perfis da extrema-direita, com a chancela de profissionais da informação. Dia desses, chegou-se a noticiar, como se fosse coisa já dada, que a não distribuição dos dividendos extras da Petrobras escondia um prejuízo da empresa de R$ 500 milhões — coisa que não aconteceu. Se vier a acontecer o que se prevê — não vou entrar em minudências agora porque não cabe —, seria o correspondente a 0,37% do lucro da petroleira em 2023, o segundo maior de sua história e o terceiro maior dos potentados de capital aberto no país.

Não ignoro, é claro!, o que fez a máquina bolsonarista junto às franjas religiosas que compõem a sua grei com a declaração do petista sobre Gaza — distorcendo-a, inclusive. Que a maioria dos evangélicos, por exemplo, depois da pantomima midiática, reprove a declaração, vá lá. Mas seria o suficiente para que alguém mudasse a sua avaliação sobre o governo? E a Petrobras? Quer dizer que aquele cuja vida inequivocamente melhorou, ainda que não tenha alcançado o paraíso, pode dizer que ela piorou porque, ganhando até dois mínimos, cinco ou a dez, não se conforma com a política de dividendos da Petrobras?

Eu me pergunto se, nessas horas, o colunista, analista, prosélito — e, em alguns casos, porta-voz de lobista — não confunde os seus próprios valores, preconceitos e interesses com os do povo. Parece-me uma leitura a que falta, antes de mais nada, honestidade intelectual. Também vira uma resposta simples e errada para um problema difícil.

Diga-me: não tivesse o presidente dito palavra sobre Israel, Ucrânia Venezuela, ou os dividendos da Petrobras repetissem a distribuição orgíaca de 2022, a avaliação sobre o governo estaria melhor? O povo brasileiro agora virou, assim, um misto de analista conservador de relações internacionais com fundamentalista de dividendos extraordinários? Que títulos escandalosos, depreciativos, tenham virado memes e ganhado as redes, admito. A coisa não ajudou. Mas não me parece que o problema esteja aí.

ENTÃO O PROBLEMA ESTÁ ONDE?
Sim, eu mesmo já escrevi que o governo se comunica mal e ainda não entendeu -- e o mesmo se diga sobre o PT -- o espírito das redes, destacando que o pensamento progressista apanha da extrema-direita nesse ambiente em todo o mundo democrático.

Dito isso, indago: esse governo essencialmente virtuoso na economia e que tem um acento civilizador nos programas sociais está sendo devidamente retratado pela imprensa profissional? Tendo a achar que não. Mais essa imprensa a que me refiro do que o petismo incorporou a lógica da polarização — conceito que repudio —, de modo que reconhecer avanços importantes na governança é visto como uma espécie de adernamento do noticiário em favor de um dos lados, o que deve ser necessariamente neutralizado com uma crítica que anule o eventual benefício desse reconhecimento, de sorte que o verdadeiro jornalismo, nessa perspectiva, teria de ser um jogo de soma zero. Ora, desnecessário dizer que isso 1) atenta contra a objetividade; 2) iguala uma prática política democrática, ainda que se possa discordar dela, a golpistas.

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Não seria mais prudente indagar se a militância disruptiva nas redes não está sendo bastante eficaz em magnificar a tal "agenda de costumes" e em promover a dita "guerra cultural", confundindo, inclusive, votações que estão no STF — drogas e aborto, por exemplo — com uma agenda oficial? Lula e seu governo, diga-se, passaram bem longe de tais temas.

Lula, ademais, venceu a disputa por uma pequena margem. O Congresso Nacional, no entanto, não espelhou essa divisão. É majoritariamente de direita, com um bolsão de um reacionarismo abjeto. À medida que avançam os inquéritos, crescem o barulho e os desejos de vingança contra o governo.

Aí esses estrategistas amadores, doidos para culpar os progressistas pelos avanços dos reacionários, ensinam: "Ah, é preciso parar de falar desses golpistas; deixá-los pra lá..." Com um pouco mais de ideias turvas, ainda acabam pedindo anistia em nome da pacificação e do fim da "polarização". É mesmo? E para os EUA? Têm alguma ideia?

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Se eu tivesse a resposta, tudo estaria resolvido. Também não tenho. Aos 62 anos, sei o que já vivi e vivo; o que já experimentei e experimento.

Contesto isso a que chamam "polarização" ou, então, a vejo de outro modo: não se dá entre esquerda e direita; entre lulistas e bolsonaristas; entre progressistas e conservadores. Constato o confronto inconciliável entre os que aceitam o regime democrático como valor inegociável — e os há num leque que vai da direita moderada à esquerda não disruptiva — e os fascistoides que, depois da tentativa de quartelada, lutam agora por impunidade.

"Ah, Reinaldo, o Centrão transita nos dois campos..." Pois é. Eu sei. Não sou do "Centrão". E torço por uma imprensa que também não seja. Recuso-me a normalizar o bolsoanrismo. Venho de uma luta e me formei num tempo em que tudo era aceitável, desde que a democracia fosse o pressuposto. Continuo nessa. E só por isso enfrentei, por exemplo, os mistificadores da Lava Jato — inclusive os acoitados no jornalismo.

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Há gente demais brincando com o perigo. Bolsonaro não disputará a eleição em 2026. O mais provável é que esteja preso e inelegível muito além de 2030. Mas se lhe reconheça um outro feito: deixa a necropolítica como herança, e hoje já se veem candidatos a líderes que podem cruzar oceanos em busca de cadáveres para exibir como galardões, não fossem a carne humana que já oferecem por aqui mesmo, em solo pátrio.

NA CONCLUSÃO, OS CORVOS
Um mau diagnóstico leva a remédios errados. "Ah, Reinaldo, a imprensa aplaude o presidente, como você quer, e tudo se resolve". Quem chegou a essa conclusão perdeu um tempão lendo texto tão grande. Reconheça-se a cada um o seu mérito, e já estará de bom tamanho. Só não incorram na tolice de achar que a democracia aceita qualquer desaforo.

O país chegou muito perto de um banho de sangue. Aquele que Trump promete nos EUA se perder a eleição. Paul Krugman ainda tenta entender. Os nossos "expertos" já entenderam tudo. Censuram Lula até quando este critica, e muito raramente ele o faz, aquele que tentou sabotar a eleição, impedir a sua posse e depois derrubá-lo. Não querem um líder político, mas um monge. Eles próprios não conseguem conter o impulso (na melhor das hipóteses; na pior, é tarefa) de dar porrada num democrata. Mas ficam muito agastados quando um democrata é pouco lisonjeiro com um golpista.

Bem, dizer o quê? O udenismo babão não morreu. Como é mesmo? "O senhor Getúlio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar."

Carlos Lacerda tinha ao menos a notável inteligência de um corvo. Comigo não, violão! Não tiro fascistoides para dançar. Na verdade, acho que têm de ser proibidos de entrar no baile. "Ah, fascistoides são os outros, né?" Quando tentam dar golpe, sim. É simples.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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