Reinaldo Azevedo

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Opinião

Tragédia e coro - Caso Marielle tem de ser ponto de partida, não de chegada

Vocês já ouviram falar, e muitos talvez as conheçam, das tragédias gregas, não? O "coro" tinha uma função importante na estrutura dramática. Não raro, era ele a explicitar à plateia a real natureza dos conflitos encenados, de sorte que o público deveria ficar atento ao papel de cada uma das personagens, mas sem perder a noção da natureza da trama. Havia mais do que a exposição e o confronto de virtudes e vícios privados. O drama expressava conflitos que estavam na sociedade.

Analistas e comentadores da vida pública devem, penso, muitas vezes, atuar como o coro. Vamos ver.

Seis anos depois, o mistério sobre quem mandou matar a vereadora Marielle Franco (PSOL), operação que vitimou também seu motorista, Anderson Gomes, parece desfeito, com a consequente decretação das respectivas prisões preventivas do deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ); de Domingos Brazão, seu irmão e conselheiro do TCE (Tribunal de Contas do Estado) do Rio, e do delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Estado. Parece desfecho de novela: depois do triunfo momentâneo do mal, os maus são punidos — ou ainda uma passagem do filme "Tropa de Elite 2", de José Padilha: quem deveria combater o malfeito é o verdadeiro chefe da organização criminosa. Podemos estar perto de um ponto final para elucidar um caso. No que respeita à infiltração do crime organizado no Rio e, de modo mais amplo, no Estado brasileiro, torçamos para que seja só o começo. O assassinato de Marielle representa bem mais do que a eliminação de uma adversária por um grupo político rival.

Olhemos para aqueles que a PF e o Ministério Público identificam como mandantes, facilitador e executores. Lembram-se do tempo em que animadores de programas policiais, ou policialescos, tonitruavam a palavra "marginal" para se referir a malfeitores, desqualificando-os? Pois é... Os envolvidos com a morte da vereadora estavam enfronhados nas instituições, não à margem delas. E o "coro" tem de apontar: o ministro Alexandre de Moraes é o relator também desse caso no STF — o mesmo Moraes que é hoje o principal alvo do ódio da extrema-direita e do reacionarismo engajado de certos setores da imprensa fantasiados de liberais legalistas.

Máscara da tragédia e sangue
Máscara da tragédia e sangue Imagem: Reprodução

Constate-se: a investigação, como resta evidente, avançou depois da entrada para valer da Polícia Federal, a mesma que hoje é vilipendiada pela canalha fascistoide nas redes sociais. Essa PF tem atuado seguindo os parâmetros de independência do titular de cada inquérito, sem a interferência de Andrei Rodrigues, o excelente diretor-geral, em investigações. É inequívoco, no entanto, que ela tem a regência desse ente, que passou a servir ao país, não a poderosos de turno ou ao vedetismo de delegados.

OS BANDIDOS E O ESTADO
Transcrevo abaixo um trecho das 479 páginas do relatório a Polícia Federal, assinado pelos delegados Guilherme de Paula Machado Catramby, Jaime Cândido da Silva Júnior e Leandro Almada da Costa, que levaram Moraes a decretar a prisão preventiva dos figurões:
"
A origem da desídia criminosa daquela equipe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro na apuração do crime em tela foi trazida à lume pelo colaborador RONNIE LESSA, qual seja: a participação do Delegado de Polícia RIVALDO BARBOSA DE ARAÚJO JÚNIOR na arquitetura do delito, tendo em vista que este era, à época do planejamento do crime, Diretor da Divisão de Homicídios da PCERJ e, à época dos fatos, Chefe de Polícia Civil do Estado, nomeado no dia 08 de março de 2018 e empossado no dia anterior ao crime.

Em breve síntese, tendo em vista que tais condutas serão esmiuçadas em tópicos próprios, a investigação dos homicídios de Marielle Franco e de Anderson Gomes foi, antes mesmo da prática do delito, talhada para ser natimorta, mediante ajuste prévio dos autores intelectuais com o então responsável pela apuração de todos os homicídios ocorridos no Rio de Janeiro. Ademais, coincidência, ou não, o crime fora executado um dia após a posse de RIVALDO BARBOSA na função de Chefe de Polícia.

Outra 'coincidência' foi a nomeação, por RIVALDO, na manhã subsequente ao crime, do Delegado GINITON LAGES como titular da Delegacia de Homicídios da Capital e, por conseguinte, responsável pela investigação do crime. As nuances de tal indicação serão dissecadas em tópico próprio, mas impende-se destacar que ambos já possuíam uma prévia relação de confiança. Ou seja, os trabalhos de sabotagem se iniciaram no momento mais sensível da apuração do crime, as horas de ouro, o que ensejou a perda de elementos de convicção importantes para a sua resolução a contento como, por exemplo, a captação das imagens dos circuitos internos de televisão dos imóveis adjacentes ao local do crime.

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Ademais, todo esse cenário tem como pano de fundo a presença do Promotor de Justiça HOMERO DE NEVES FREITAS FILHO, então Promotor Natural para atuar no caso em tela, titular da 23ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal, cujas condutas omissivas em relação aos desmandos perpetrados pela Delegacia de Homicídios durante a gestão de RIVALDO BARBOSA foram escancaradas na r. Sentença exarada pelo Excelentíssimo Juiz de Direito Bruno Monteiro Rulière, nos autos da Ação Penal n.º 0120773-71.2020.8.19.0001, de fls. 3630/3922 da Pet n.º 16.652/DF, a qual será dissecada em tópico próprio.

Além disso, como visto em linhas recuadas, a conduta omissiva de HOMERO enquanto membro do Ministério Público do Rio de Janeiro não é novidade, sobretudo por ele ter sido uma das engrenagens responsáveis pela condenação do Brasil junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso da Favela Nova Brasília.

Não à toa, a investigação do fato somente foi chamada à ordem e começou a progredir com a saída de HOMERO e a assunção dos trabalhos pelo GAECO/MPRJ (...)".

ESTADO INFILTRADO E MILÍCIAS
O que vai acima é de gravidade extrema. Os matadores -- Ronnie Lessa e Élcio Queiroz -- eram egressos da PM do Rio. Os mandantes, segundo as conclusões da PF e do MPF, são um deputado federal e um membro do Tribunal de Contas do Estado. O então chefe da Polícia Civil, que deveria coordenar o trabalho de investigação era, ele próprio, uma espécie de cérebro da operação. E, como aponta a PF, um membro do Ministério Público do Rio foi diligentemente omissivo no concurso para a impunidade.

Na função de "coro" da tragédia, é preciso avançar. Marielle não foi morta porque os mandantes tivessem alguma desavença pessoal, privada, com ela. O palco, que não é o local da execução, é um pedaço da Zona Oeste do Rio dominado pela milícia, que explora o milionário mercado imobiliário ilegal. A questão é de interesse público.

Escreve a PF:
"
Conforme já mencionado anteriormente, a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ, capitaneada por MARCELO FREIXO, revelou a perigosa relação entre o crime organizado e a política carioca, identificando Vereadores e Deputados Estaduais que lideravam grupos paramilitares desta natureza, "bem como outros mantenedores de ligações suspeitas com estes grupos criminosos a fim de assegurar e criar seus "currais eleitorais".

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As interações da Família BRAZÃO com tais grupos ressaem na Comunidade de Rio das Pedras, berço da milícia no Rio de Janeiro, e se alastram para outras localidades situadas na região de Jacarepaguá, Zona Oeste, notadamente Osvaldo Cruz, ante a presença de EDMILSON MACALÉ na localidade, como anteriormente visto.

Destarte, trazer à luz tais relações promíscuas gerou a esperada revolta dos agentes públicos indiciados ou mencionados no Relatório Final da CPI, o que não foi diferente com os Irmãos BRAZÃO".

Então é preciso que se joguem luzes na trajetória da família Brazão, que está assim sintetizada:
"A vida política da Família BRAZÃO começou na década de 90 com a eleição de DOMINGOS BRAZÃO para Vereador do Município do Rio de Janeiro e, logo em seguida, para Deputado Estadual. Iniciava-se uma trajetória permeada por polêmicas que perduram até os dias atuais, sendo o envolvimento no caso Marielle Franco apenas o capítulo mais recente e gravoso desta história.
(...)
Ainda antes de entrar na política, DOMINGOS BRAZÃO se dedicava à exploração de ferros-velhos, de onde sugiram as primeiras acusações de que estaria envolvido com receptação e revenda de peças roubadas. Em seguida, passou a empreender com postos de gasolina, vindo à tona as denúncias de que estaria envolvido com organização criminosa dedicada a adulteração de combustíveis. O líder do grupo, preso em operação desta Polícia Federal, era lotado em seu Gabinete na ALERJ.

Nesse histórico, há ainda: episódios de ameaças direcionadas à sua adversária política CIDINHA CAMPOS; a cassação de seu mandato pelo TRE/RJ em 2010, por abuso de poder econômico e desvio de material de hospitais públicos para seus centros sociais; sua prisão e a de quase todos os demais Conselheiros do TCE/RJ na ocasião da deflagração da Operação Quinto do Ouro pela Polícia Federal em 2017, em cumprimento de decisão do c. Superior Tribunal de Justiça e; seu elo com milicianos presos na Operação Intocáveis, deflagrada pelo GAECO/MPRJ, que investigou a milícia que atuava nas comunidades Rio das Pedras e Muzema.

No entanto, no contexto da presente apuração, dar-se-á especial atenção a outro aspecto igualmente controverso e marcante na história da Família BRAZÃO, qual seja: as imputações sobre invasão e "grilagem" de terras, atividade intrínseca à atuação das milícias em geral, o que repercute especialmente de forma clara na atividade parlamentar de CHIQUINHO BRAZÃO na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, pautada por legislações questionáveis acerca de questões fundiárias e favorecimento a ocupações irregulares, tendo ele, inclusive, ocupado a Presidência da Comissão de Assuntos Urbanos da Casa durante seus mandatos como Vereador."

Destarte, tal cenário se aproxima do teor das declarações de RONNIE LESSA acerca da motivação, a vinculando à colisão entre os interesses dos BRAZÃO e a atuação parlamentar da então Vereadora Marielle Franco em relação às invasões e implementação, à revelia da legislação afeta à matéria, de loteamentos irregulares ligados à milícia, em face da defesa do direito à moradia. Nessa esteira, destaca-se que o próprio pagamento aos executores seria por meio de lotes oriundos de grilagem e permissão para exploração da atividade de milícia no local. De modo que, adiante, serão pormenorizados fatos e eventos relevantes acerca do tema."

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ROTEIRO DOS DESATINOS
O que se tem acima é o roteiro de boa parte dos desatinos que quase levaram o país ao abismo. E que se note: só se chegou, tudo indica -- o relatório da PF é impressionante --, à origem da tramoia criminosa porque, apesar de tudo, defensores dos direitos humanos não desistiram. Os miasmas da delinquência se espalharam com força na política brasileira nos dias que se seguiram à morte de Marielle. Se ela inspirou a luta contra a impunidade, também virou uma espécie de fetiche do ódio da extrema-direita, o que ainda não passou.

No dia 13 deste mês, o deputado federal Eder Mauro (PL-PA), por exemplo, sob o pretexto de defender mulheres vítimas do Hamas, acusou as feministas de se omitir sobre o assunto e emendou: "Mas, se fosse Marielle Franco, tenha certeza que elas estariam até hoje [defendendo]". E berrou: "Marielle acabou!"

Sim, teria "acabado" no sentido talvez pretendido por esse rascunho da cópia do "Mito" — e olhem que isso não é fácil — se seu ídolo tivesse vencido a eleição em 2022. Só se chega a uma resposta porque Lula ganhou a disputa, de sorte que se tem uma PF empenhada em combater o crime, não em promovê-lo.

O CORO TEM DE ENTRAR OUTRA VEZ
Temos, reitero, de prestar atenção aos detalhes, mas jamais podemos perder de vista a real natureza dos conflitos em curso. Quando Marielle morreu, o general Braga Netto era o interventor federal na área de Segurança do Rio. Foi ele a promover Rivaldo Barbosa à chefia da Polícia Civil, em ato assinado no dia 8 de março de 2018. O homem tomou posse no dia 13, uma terça-feira. Na quarta, a vereadora foi assassinada. Em contato com a imprensa, o vice da chapa de Bolsonaro diz que não tinha nada com isso e que a escolha fora feita pelo também general Richard Fernandez Nunes, então secretário de Segurança Pública do Estado.

Ocorre que Braga Netto fora alertado pelo então subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança, o delegado da PF Fábio Galvão, sobre as possíveis ligações de Barbosa com as milícias. Em vão. Cinco meses depois, Galvão foi demitido pelo general que hoje aparece no centro das articulações golpistas que tentaram, nesta ordem: a) sabotar a realização das eleições de 2022; b) impedir a posse de Lula, o eleito; c) derrubar o presidente já empossado.

Galvão, o que foi ignorado e depois demitido, é hoje coordenador geral de Apoio Operacional da diretoria executiva da PF.

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CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
"Com isso, Reinaldo, você quer o quê? Associar um dos protagonistas da tentativa de golpe ao assassinato de Marielle?" Não quero nada. Não estou cuidando aqui, insisto, de imputações criminais. Parece-me que, depois de seis anos, a investigação sobre a conspiração que resultou no assassinato de Marielle e de Anderson realmente avançou.

A exemplo do coro das tragédias, chamo a atenção para o fato de que as mortes não aconteceram no vácuo. As personagens todas representam forças sociais que estão em conflito e em confronto. Por isso a solução do caso Marielle não pode ser um ponto de chegada, mas de partida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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