Negando o não dito. Ou: Bolsonaro só queria körözött, iguaria com 3 tremas
Jair Bolsonaro deve explicar a Alexandre de Moraes, nesta quarta, os motivos que o levaram a dormir duas noites na Embaixada da Hungria, em Brasília, que fica a 20 minutos de sua casa. As respectivas versões de sua defesa e dele próprio chegam a ser peças de humor involuntário. De todo modo, dê-se a mão à palmatória: essa gente sabe pautar o colunismo desocupado — especialmente aquele que costuma confundir o direito à própria opinião com o direito aos próprios fatos.
Eis que aqui e ali começou a conversa absurda de que o ex-presidente não cometeu crime nenhum nos pernoites — e, com efeito, não havendo a entrada forçada, inexiste a tipificação penal para tal conduta.
Ocorre que se trata de uma contestação em si mesma estúpida, posto que ninguém relevante, ninguém mesmo, afirmou o contrário. Não li nem ouvi um só comentador que mereça ser lido ou ouvido a defender que, sendo ilegal dormir numa embaixada estrangeira, então que se puna Bolsonaro. Cadê? Quem sustentou essa tolice?
Tal senhor é investigado em vários inquéritos. O mais grave, evidentemente, é aquele em que se apuram ações em favor de um golpe de Estado. Medidas cautelares à esteira desse procedimento resultaram, por exemplo, no recolhimento de seu passaporte, de modo que ele não tem como deixar o Brasil por vias legais.
Não sei se notam: Moraes não decidiu, com base em um inexistente pedido da PGR, algo como: "O investigado está proibido de tentar fugir". Isso não é restrição que se imponha a quem responde a processo ou é alvo de alguma apuração. De sorte que se pode dizer que uma pessoa, nessas circunstâncias, conserva a faculdade de tentar se escafeder por meios que não estão amparados na lei. Fazendo tal escolha, há de responder por ela.
Inexiste o "direito à fuga" de um preso, por exemplo. A conduta tem punição prevista no Código Penal para quem facilita a evasão (Artigo 351) ou para o próprio evadido (Artigo 352). Ocorre que Bolsonaro não está na cadeia.
FESTA DO PIJAMA E CANA
Então que história é essa de se falar em prisão preventiva em razão da festa do pijama protagonizada pelo "Mito" na Embaixada da Hungria?
A resposta está no Artigo 312 do Código de Processo Penal, que transcrevo:
"Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
§ 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.
§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada."
São, como se nota, cinco as motivações para a preventiva, que podem se combinar:
1 - garantia da ordem pública;
2 - garantia da ordem econômica;
3 - conveniência da instrução criminal;
4 - assegurar a aplicação da lei penal;
5 - descumprimento de medida cautelar.
Em qualquer caso, há uma precondição: haver prova de que o crime foi cometido e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pela liberdade.
Atenção ao item 4, colunistas do "nefelibatismo" jurídico: "assegurar a aplicação da lei penal". Isso tem um sinônimo: risco de fuga. Temos então que:
a: o crime foi cometido;
b: há indício de que a pessoa em questão é realmente o autor;
c: essa pessoa pode fugir para evitar a aplicação da lei penal.
Esse e o beabá? É evidente que não é proibido a um indivíduo qualquer dormir duas noites numa embaixada que fica a 20 minutos de sua casa. Acho que jamais ocorreria a um legislador impor uma restrição como essa.
Se, no entanto, tal indivíduo:
- é investigado por crimes muito graves;
- está submetido a medidas cautelares -- entre eles, o recolhimento do passaporte;
- exibe um histórico de declarações assegurando que jamais será preso, tendo tido a audácia, ainda presidente, de dizer em palanque, diante de milhares de pessoas, que não cumpriria mais ordens judiciais emanadas de um determinado juiz -- no caso, o próprio Moraes, relator do inquérito;
- liderou uma manifestação contra decisões do tribunal que é foro da investigação...
Bem, em casos assim, só a um tonto ou a um desinformado que opina com os cotovelos não ocorreria a possibilidade de que possa estar agindo para evitar "a aplicação da lei penal".
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Quero receberÉ escancaradamente óbvio que não é proibido dormir numa embaixada nem mesmo tentar o refúgio. Mas agir para impedir que a lei penal se cumpra, bem, aí, com efeito, a sanção legal existe, sim. E é severa: prisão.
"E se eu quiser acreditar, Rei, que ele usou a embaixada como pousada para experimentar ovos mexidos à húngara, com cebola e salsinha picada, e para provar o "körözött", talvez a comida com mais tremas no mundo?
Ora, também isso não é proibido. É burro. Mas não é proibido.
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