Reinaldo Azevedo

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Opinião

Lula, o tom melhor sobre a Venezuela, o que segue errado e baba reacionária

Se eu quisesse saber o que vai na alma das pessoas, eu me fantasiaria de padre, pastor, monge ou outro líder religioso qualquer e pediria que o interlocutor me contasse todos os seus sonhos, ambições, frustrações, pecados. Ocorre que nada disso me interessa. Importam-me as escolhas objetivas. E o fato é que Lula ajustou para muito melhor a sua posição sobre o processo eleitoral da Venezuela. Se o fez por gosto ou premido pelos índices de popularidade, pouco importa. Deixo para Deus o fundo das consciências. Não é tarefa minha especular a respeito.

Em pronunciamento à imprensa, nesta quinta, em companhia do presidente da França, Emmanuel Macron, o brasileiro disse coisas certas sobre o processo eleitoral no país vizinho, embora eu ainda ache necessário ajustar o discurso para não incorrer em comparações descabidas. Os sensatos saudaram a mudança de tom, o que também faço. Fascistoides continuaram a babar o seu rancor porque seu trabalho é tocar flauta para Jair Bolsonaro. Não sei se é fácil ganhar a vida assim. Digno, como certeza, não é.

Um jornalista dirigiu uma indagação a ambos sobre a eleição venezuelana. Vamos ao que disse Lula:
"Eu estive com o [Nicolás]Maduro na Guiana, numa reunião do Caricon [Comunidade do Caribe], e tive uma longa reunião com o Maduro. E disse para o Maduro que a coisa mais importante para restabelecer a normalidade na Venezuela era não ter problema no processo eleitoral; era que a eleição fosse convocada da forma mais democrática possível. O fato de uma candidata [Maria Corina Machado] ter sido proibida pela Justiça de ser candidata não era o agravante. Porque vocês não podem se esquecer de que, aqui no Brasil, eu fui proibido de ser candidato quanto era o primeiro colocado em todas as pesquisas de opinião pública. O que é que eu fiz? Eu indiquei um outro candidato. Perdemos as eleições. Mas fez parte do jogo democrático. Participei, perdi, paciência! Então eu disse ao Maduro: 'Garanta que seja a mais democrática porque é importante para a Venezuela voltar ao mundo com normalidade'. Eu fiquei surpreso com a decisão: primeiro, a decisão boa da candidata que foi proibida de ser candidata pela Justiça [Maria Corina Machado] indicar uma sucessora [Corina Yoris]. Achei um passo importante. Agora, é grave que a candidata não possa ter sido registrada. Ela não foi proibida pelo Justiça. Me parece que ela se dirigiu até o lugar e tentou usar o computador local e não conseguiu entrar. Então foi uma coisa que causou prejuízo a uma candidata que, por coincidência, leva o mesmo nome da candidata que tinha sido proibida de ser candidata. Eu, sinceramente, não sei se, aqui no Brasil, se eu tivesse um Lula para indicar em meu lugar, e não o Haddad, [se] a gente teria ganho. Mas o dado concreto é que não tem explicação. Não tem explicação jurídica, política, você proibir um adversário de ser candidato. Aqui no Brasil, todo mundo sabe que todos os adversários serão tratados nas mesmas condições. Aqui, é proibido proibir, a não ser que tenha uma punição judicial. E que essa punição garanta o direito de defesa das chamadas pessoas prejudicadas. É isso. Eu acho que, se as eleições não forem democráticas, eu acho que o Brasil vai participar lá; o Brasil vai assistir a essas eleições... Eu não quero nada melhor nem pior; eu quero que as eleições sejam feitas igual a gente faz aqui no Brasil: com a participação de todos. Quem quiser participar participa. Quem perder chora; quem ganhar ri, e assim a democracia continua. É isso o que eu penso".

Macron concordou — e não por simpatia. A divergência sobre como atuar no caso da guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, ficou clara.

Antes que comente uma declaração, cumpre lembrar que o Brasil pertence ao grupo de países que promoveu, em outubro do ano passado, o encontro entre o governo e a oposição venezuelanas em Barbados, sob a coordenação da Noruega. Recebeu o pomposo nome de "Acordos para Promoção dos Direitos Políticos e Garantias Eleitorais e para Garantia dos Interesses Vitais da Nação".

Interessa também ao Brasil, por vários motivos, que o país vizinho retome o caminho da normalidade democrática. Ao dirigente brasileiro cumpre, sim, atuar para que haja uma distensão do regime, ainda que gradual. E se não acontecer? Bem, isso é problema que concerne ao povo de lá. Não nos cabe nem intromissão nem rompimento de nenhuma natureza — ou se cobra de outras países mundo afora que se relacionem apenas com democracias? Ademais, o dito "Acordo de Barbados" reuniu, sob a coordenação da Noruega, representantes de Brasil, EUA, México, Holanda, Rússia e Colômbia.

Ocorre que Maduro roeu a corda. Lula está certo em investir no melhor acordo possível — em tese, sempre será melhor do que acordo nenhum —, mas, atenção!, não pode passar a impressão, e isso aconteceu em vários momentos, que se deixa contaminar pelas escolhas do venezuelano. Acho bobagem a conversa de que inflexões da política externa tenham efeito relevante na popularidade do presidente e do seu governo. Ainda assim, é preciso fazer a coisa certa.

"NÃO TEM EXPLICAÇÃO"
Bem ouvidas e lidas as palavras acima, é forçoso que se constate:
1: ele acha que a Venezuela deve voltar à "normalidade" democrática; logo, por óbvio, democrática não é;
2: considera que o melhor caminho é a realização de eleições;
3: tais eleições devem ser as "mais democráticas possíveis";
4: inexiste explicação jurídica ou política para a inabilitação de mais uma candidata (Corina Yoris).

Vai acima o reconhecimento de que o processo eleitoral se dará num país que não vive um regime de normalidade, mas de exceção.

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Se não se pode ter, por razões óbvias, o resultado final numa fase de transição, é preciso, não obstante, que se garantam os instrumentos para essa transição. E Lula reconheceu, nesta quinta — ainda que não desista de manter os observadores brasileiros —, que não se chegará a bom lugar inabilitando uma penca de adversários. E, acrescento eu, promovendo expurgos, com o concurso de uma Justiça aparelhada.

Sim, é fato: fascistoides nativos (os nossos...) não dão a menor pelota para ditaduras e regimes autoritários mundo afora. Onde mesmo Bolsonaro foi se esconder? No cafofo de Viktor Orbán! A Venezuela, no entanto, mexe com seus brios, não é? É fabuloso que "analistas" brasucas expressem seu repúdio ao petista porque o consideram lhano com Maduro, mas deem piscadelas para um delinquente como Javier Milei. É evidente que essa gente não é séria.

COMPARAÇÃO INDEVIDA
A eleição naquele país não será livre. Na relação bilateral, o Brasil tem de cuidar dos seus interesses. O regime "anormal" não é uma consequência dos ardis de seus inimigos. Isso é, por exemplo, o que diria Bolsonaro aqui no Brasil caso tivesse sido bem-sucedido na tramoia golpista que liderou. A fala do presidente representa um avanço importante, mas ainda há o que corrigir.

É um erro, de vários modos, comparar a sua inabilitação, aqui no Brasil, em 2018 com a de Maria Corina Machado. Ele, é fato, foi condenado por Sergio Moro sem provas, em sentença porcamente referendada e com pena agravada pela segunda instância. O aluvião de coisas vergonhosas promovidas pela Lava Jato, em parceria com a imprensa — com raríssimas vozes dissonantes —, colheu os tribunais superiores. Ainda assim, há uma diferença imensa entre uma democracia molestada — que, com efeito, manteve preso por 580 dias um inocente — e, diga-se o nome, uma ditadura.

Lula diz não haver explicação, e não há, para a recusa do registro de Corina Yoris. Mas ela é apenas mais uma figura da oposição que Maduro tira do jogo. Há as pessoas que foram encarceradas ou que tiveram de se exilar, colhidas por processos num país em que o Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público estão sob o tacão do "líder".

Houve uma mudança de tom e aponto a decisão acertada, mas me obrigo a registrar que, no trecho de sua fala em que compara os dois países, acaba naturalizando tanto a inabilitação de Maria Corina como a sua própria. E este escriba se nega a fazer uma coisa e outra. Afinal, a dela explicita um regime ditatorial; a dele, uma democracia que havia mergulhado no pântano, gerando seres, nem poderia ser diferente, pantanosos, que estão aí a nos assombrar.

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Há um longo caminho de reconstrução das instituições para que existam por lá "eleições iguais a gente faz no Brasil" — certamente não serão as próximas. E, convenhamos, mesmo por aqui, é preciso que se reconheça, vivemos sob o assédio das forças disruptivas da reação.

Que Lula continue a investir na melhor transição possível e mantenha a postura, também correta, de se opor a sanções, que só punem os pobres. Mas que não caia mais nem no erro nem na tentação de achar que pode salvar a alma de Maduro. Não pode. Ele não entra na festa do céu. Que se façam negócios e se mantenham relações diplomáticas com a Venezuela e com o resto do mundo, com ou sem democracia. Mas é bom ser bastante seletivo na hora da troca de afagos civilizatórios. Como se viu no caso de Macron, a despeito das diferenças.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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