Foro 'privilegiado' uma ova! Termo errado! Ou bandido rejeita 'privilégio'?
Enquanto escrevo, a imprensa informa que o ministro Gilmar Mendes votou, ao analisar a concessão de um determinado habeas corpus, para ampliar a possibilidade de "foro privilegiado", sendo seguido por outros quatro membros da corte: Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli. Roberto Barroso pediu vista. O julgamento se dá no plenário virtual e vai até 8 de abril. Jair Bolsonaro está de olho no resultado. Chiquinho Brazão também. E mais uma penca.
O SENTIDO DAS PALAVRAS
Antes que continue, uma reflexão sobre o sentido das palavras.
Vamos ao dicionário. Lá no Houaiss:
"Privilégio: direito, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia; riqueza, conforto, bem material ou espiritual a que só uma minoria tem acesso; situação de superioridade, amparada ou não por lei ou costumes, decorrente da distribuição desigual do poder político e/ou econômico".
Pensemos um pouco:
- quem aí sustentaria que Chiquinho Brazão quer seu caso julgado no Supremo porque, afinal, pretende se beneficiar da "distribuição desigual do poder político"?
- qual de vocês há de defender que Bolsonaro gosta de ter o STF como foro, de olho numa "vantagem, regalia, conforto", a que só "uma minoria tem acesso"?;
- será mesmo que um parlamentar poderoso de Findomundistão do Sul prefere a "situação de superioridade" que lhe concederia a corte suprema à eventual mão amiga de um juiz da sua aldeia moral?
Por que diabos, então, se lê que Gilmar e os outros quatro votaram para "ampliar o foro privilegiado"? Seria o tipo de privilégio que excita os Bolsonaros, Brazões, Lessas e Rivaldos?
UMA PAUSA PARA A MEMÓRIA
A expressão "foro privilegiado" sempre foi uma burrice, que se tornou mais agressiva com o lavajatismo, que espalhou as luzes de sua ignorância policialesca imprensa adentro e afora.
Sei lá quantos textos escrevi contra a proposta que saiu vencedora em 2018, que alterou o que sempre chamei de "Foro Especial por Prerrogativa de Função".
Note-se que a questão tem mudado ao longo dos anos. O período de maior estabilidade se deu entre 1999 e 2018, como lembra Mendes em seu voto:
"com a investidura no cargo, o foro especial se tornava competente para todas as investigações e ações penais instauradas contra o agente público, inclusive quanto a delitos praticados antes da posse no cargo e os que não guardam relação com as funções exercidas; o afastamento do cargo, porém, importava a imediata remessa dos autos para a primeira instância."
Se parecia impróprio que mesmo crimes que não guardavam relação com a função acabavam no foro especial, é inegável que tal prática, em parte ao menos, protegia o titular do mandato de eventuais vinganças paroquiais. Por outro lado, a remessa dos autos à primeira instância depois do afastamento do cargo podia ter um de dois efeitos negativos:
1: expor o então ex-titular de mandato a perseguições perpetradas por adversários locais;
2: proteger da punição eventuais criminosos, que buscavam, então, a leniência de tribunais amigos em suas respectivas bases de apoio.
Em 2018, chegou-se à seguinte formulação:
"1) a prerrogativa de foro se limita aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele; 2) a jurisdição do STF se perpetua caso tenha havido o encerramento da instrução processual -- leia-se: intimação das partes para apresentação das derradeiras alegações -- antes da extinção do mandato."
Observem: do modo como está, o investigado pode renunciar antes da fase das alegações finais e, assim, escolher, ele próprio, o foro em que vai ser julgado.
E ainda: cessados mandatos no Legislativo e no Executivo, processos têm sido enviados à primeira instância e ficam para as calendas...
DE VOLTA AO PRESENTE
A questão está de novo sob julgamento, a partir de um voto de Mendes, que propõe uma tese ao julgar um caso concreto. E que tese é essa?
"A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício."
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OLHAR APURADO
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Quero receberEscreve ainda o ministro:
"É necessário avançar no tema para estabelecer um critério geral mais abrangente, focado na natureza do fato criminoso, e não em elementos que podem ser manobrados pelo acusado (permanência no cargo). A proposta apresentada atende a essa finalidade".
Observem que se trata de uma suplementação ao que se votou em 2018. Permanece o princípio do foro especial para "crimes cometidos no exercício do mandato e em razão dele".
MORAES
Alexandre de Moraes segue Mendes nestes termos:
"Dessa forma, acompanho o Min. GILMAR MENDES no sentido de estabelecer um critério focado na natureza do fato criminoso, e não em elementos que podem ser manobrados pelo acusado (permanência no cargo). E a proposta apresentada atende a essa finalidade (a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício), não acarretando qualquer prejuízo à efetividade da aplicação da Justiça criminal, inexistindo a 'manifesta disfuncionalidade do sistema', o 'sobe e desce processual' ou o 'elevador processual' (...)"
ZANIN, RUI BARBOSA E O PRIVILÉGIO
Zanin recuperou trecho de um voto do então ministro Eros Grau, em 2006:
"Um outro aspecto há de ser aqui enfatizado. É que as prerrogativas não são expressão de nenhum privilégio. Isso há deixar-se bem claro, muito claro, até porque, como observou RUI BARBOSA, referindo-se a elas, basta, para desmoralizar uma instituição, pregar-lhe o cartaz de privilégio."
DINO, MUDANÇA DE CARGO E O MOMENTO
Em seu voto, o ministro Flávio Dino acompanha o relator quanto à permanência do foro especial mesmo depois de cessado o exercício do mandato, levando-se em conta a natureza do crime, e complementa a tese:
"II - Em qualquer hipótese de foro por prerrogativa de função, não haverá alteração de competência com a investidura em outro cargo público, ou a sua perda, prevalecendo o foro cabível no momento da instauração da investigação pelo Tribunal competente."
CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
"Então, Reinaldo, a prevalecer esse entendimento, com o acréscimo de Dino, voltou-se ao que prevaleceu entre 1999 e 2018?" Não!
- os crimes cometidos antes do mandato e que com este não tenham relação seguem fora do tribunal;
- o que se faz é, atentando para a natureza do crime, manter o foro especial mesmo depois do afastamento do mandato e ainda que o inquérito e ação penal tenham começado depois de seu exercício;
- caso prevaleça o adendo de Dino, mantém-se a competência de foro do momento da instauração do inquérito.
ENCERRO MESMO
Falta apenas um voto para que prevaleça a necessária correção proposta por Mendes -- que, espero, conte com o complemento de Dino.
É importante que os políticos tenham a garantia de que, encerrados seus respectivos mandatos, não estarão sujeitos a eventuais retaliações. Mas também é preciso proteger a sociedade daqueles que vão buscar a impunidade em suas paróquias, não é mesmo?, correndo do Supremo como o diabo corre da cruz.
Não se trata nem de privilégio, mas de justiça. Ou, a esta altura, criminosos notórios não estariam tão alvoroçados.
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