Reinaldo Azevedo

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Opinião

STF não faz censura prévia. Nem caça mentiras, a menos que sirvam ao crime

É mentira, nada menos do que isso, que o STF ou TSE tenham decidido bloquear páginas e perfis nas redes sociais porque estes espalham... mentiras. Fosse assim, os que sustentam essa bobagem deveriam ser, eles próprios, banidos. Todas as vezes em que os tribunais atuaram, eles o fizeram no enfrentamento ou de crimes eleitorais ou da pregação do rompimento do estado de direito, da promoção do golpe de estado e do incitamento à violência, no âmbito de inquéritos que investigam organizações criminosas.

A "fake news" é só instrumento da ação que merece a punição do sistema de Justiça. Jair Bolsonaro, note-se, vive a pregar por aí, numa óbvia inspiração aos seus: "Fake news não é crime". Pois é: atirar com arma de fogo, por si, também não. E matar?

Trata-se de uma grave distorção confundir esses bloqueios com censura prévia — prática, de fato e felizmente, vedada pela Constituição.

Às vezes, é preciso escancarar a porteira que dá acesso ao conceito com um exemplo. Tome-se o "Indivíduo X" — alusão apenas à incógnita, não ao cógnito notório. Se flagrado nas redes produzindo material de suposto apelo científico e técnico que faz a apologia da pedofilia, o que se deve esperar da autoridade? E se tal pessoa se conecta com outras, de modo que se pode, ainda antes da conclusão de um inquérito, do oferecimento de denúncia ou da condenação, inferir que se trata de possível organização criminosa?

Quem se atreveria a dizer que, em nome da Constituição e dos valores consagrados nos Artigos 5º e 220, seria inconstitucional suspender tais páginas, devendo a autoridade intervir apenas a cada nova manifestação que recorra a mentiras e falsas evidências para fazer a apologia do ato criminoso? Entenderam? A questão não está na mentira em si, mas no seu instrumentalização.

"Ah, mas pedofilia é crime, Reinaldo!" Sim. Também o são a tentativa de abolição do estado de direito e de golpe de Estado e a vinculação a organização criminosa. Porque essas transgressões haveriam de merecer um tratamento mais benevolente? Não se tem notícia, porque não aconteceu — não em decisão emanada do Supremo — de que alguém tenha sido punido por emitir uma simples opinião ou por divergir do tribunal ou do Poder Executivo. Isso nunca aconteceu.

ACUSAÇÕES ABSURDAS
Tudo ainda é muito nebuloso, e não conhecemos, por ora, o que exatamente quer Elon Musk. A verdade é que assistimos a um ataque concertado contra o Supremo, contra alguns de seus ministros e contra o governo Lula. O multibilionário lidera a investida, contando com os jornalistas Michael Shellenberger e Glenn Greenwald como vozes estridentes e supostamente neutras e técnicas, a acusar inexistentes desmandos de Alexandre de Moraes. Nota à margem: Musk já fez mira também em Cristiano Zanin e Flávio Dino.

Shellenberger chamou de "incrível" a possibilidade que há, em seu país, de militantes neonazistas fazerem comício num bairro judeu. Com raras exceções, a imprensa brasileira ignorou a enormidade. É... A Primeira Emenda garante lá o que aqui e em muitos outros países, felizmente, rende prisão em flagrante, processo, cadeia. Na prática, os dois jornalistas americanos estão a repetir um comportamento muito típico dos sobrinhos de Tio Sam: tomar como universais as leis de seu próprio país.

E não estou aqui a criticar os "gringos" porque nos tratem como colonizados do seu império — embora o façam. Isso nem chega a me irritar porque não sou vocacionado para a servidão voluntária ressentida. É o que menos importa. Relevante, aí sim, é o fato de que os EUA não são um exemplo a ser seguido em matéria de liberdade de expressão.

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Não o são porque o que Shellenberger considera "incrível" não passa de condescendência com a barbárie. Não o são porque, ainda hoje, naquele país, um juiz federal pode mandar prender ou multar um jornalista caso este se negue a revelar a sua fonte em caso de processo em que se considera que há desprezo à Justiça. A doutrina do "contempt of court" subordina a liberdade de expressão. E o que ela diz mesmo? Reproduzo a definição da professora Ada Pelegrini Grinover:
"A origem do 'contempt of court' está associada à ideia de que é inerente à própria existência do Poder Judiciário a utilização dos meios capazes de tornar eficazes as decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à solução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados."

Também no Brasil as decisões da Justiça têm de ser cumpridas, claro! E é igualmente "inconcebível" que ela não faça valer os seus julgados. Mas não se tem notícia de que o STF tenha imposto a algum jornalista a revelação de suas fontes, ainda que se possa suspeitar que uma reportagem ou denúncia tenha origem num crime.

Por isso mesmo, no dia 8 de agosto de 2019, noticiou o site do Supremo:
"O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), deferiu medida liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 601, garantindo ao jornalista Glenn Greenwald não ser investigado pela divulgação de informações que preservam o sigilo da fonte. A ação foi ajuizada no STF pela Rede Sustentabilidade, que pediu a declaração de inconstitucionalidade de atos de instauração de inquéritos com o objetivo investigar o jornalista do site The Intercept Brasil.

Na decisão, o ministro ressalta que a liberdade de expressão garante o direito de obter, produzir e divulgar fatos e notícias por quaisquer meios. 'O sigilo constitucional da fonte jornalística (art. 5º, inciso XIV, da Constituição Federal) impossibilita que o Estado utilize medidas coercivas para constranger a atuação profissional e devassar a forma de recepção e transmissão daquilo que é trazido a conhecimento público.'

Para o ministro, a preservação da liberdade de expressão e de imprensa constitui pilar do sistema democrático, garantidos não só pela Constituição brasileira mas por instrumentos de proteção internacional de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Entre eles, a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana e o Pacto de San José da Costa Rica."

Nota: no sistema americano, a questão nem sequer teria chegado à Suprema Corte. Dado que o "hackeamento", em si, era um crime, Glenn poderia não ter tido nos EUA a proteção de que gozou no Brasil. Quando Mendes tomou a decisão, houve, sim, muita gritaria: da extrema-direita.

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DECISÕES NO ÂMBITO DE INQUÉRITOS
Um ano e três meses depois da barbárie de 8 de janeiro de 2023 e dadas as evidências das articulações golpistas de Jair Bolsonaro, com a óbvia contaminação de setores das Forças Armadas, eis que vozes poderosas, fora e dentro do país, levantam-se contra aqueles que constituíram a principal -- na verdade, a única -- barreira institucional de enfrentamento dos golpistas: os ministros do STF.

E esse enfrentamento não começou depois daquele dia bárbaro. Deu-se ao longo de quatro anos. O Congresso, infelizmente, estava com uma maioria rendida às tentações golpistas. Como ignorar que duas PECs estupidamente ilegais foram aprovadas na boca da urna para tentar virar o resultado — e quase lograram o seu intento? Sem os instrumentos LEGAIS de que dispunham TSE e Supremo, alguns deles vilipendiados por gente como Glenn e por setores da própria imprensa, o desastre seria certo. Já escrevi e reitero: não creio que um golpe se sustentasse muito tempo, mas a que custo?

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Chamar de censura prévia a suspensão de páginas de criminosos que as empregam justamente como instrumento para a efetivação dos seus desígnios expressa uma formidável confusão se conceitos. A Constituição protege a liberdade de expressão, mas não o crime. A Carta brasileira, por exemplo, não abrigaria nazistas que fossem fazer proselitismo num bairro judeu -- nem no não judeu. Não se acha isso "incrível" por aqui.

A liberdade de expressão, a exemplo de toda garantia legal, não é absoluta. Como não é, sei lá, o direito de empreender. Se a Justiça paralisa o funcionamento de uma empresa que falsifica produtos, cabe indagar: ela estará interrompendo um crime ou atacando o empreendedorismo?

É falso que o STF esteja à caça dos mentirosos da rede. Combate, isto sim, os que usam a mentira para seus desígnios criminosos — talvez Shellenberger considere alguns deles verdadeiramente "incríveis".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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