Reinaldo Azevedo

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Opinião

CNJ e o caso escandaloso da 'fundação' ilegal homologada pela juíza Hardt

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revogou nesta terça a suspensão da juíza Gabriela Hardt. Nem por isso se apaga a homologação de uma lambança que traz a assinatura da doutora e que, atenção!, foi suspensa por intervenção, então, do ministro Alexandre de Moraes. Explico tudo neste texto. Hardt volta ao posto por enquanto, mas o conselho ainda não votou a abertura ou não de processo administrativo para investigar sua conduta e a dos demais. Vamos por partes.

As respectivas suspensões de Hardt e do juiz Danilo Pereira Júnior, ex e atual titulares da 13ª Vara Federal de Curitiba, foram rejeitadas por oito a sete. Na trave! Ela compõe hoje a 3ª Turma Recursal do Paraná. Menos sorte tiveram os desembargadores Carlos Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, que continuarão longe do TRF-4 — nesse caso, por 9 a 6. O corregedor do CNJ, Luís Felipe Salomão (STJ), havia afastado os quatro na segunda. Mais um tantinho do caso: Flores, Lima e Pereira Junior — este atuando temporariamente à época no tribunal — são acusados de ignorar um julgado do STF ao atuar no afastamento de Eduardo Appio, outro ex-titular da 13ª Vara.

O presidente do STF e do CNJ, Roberto Barroso, abriu divergência e votou contra a decisão de Salomão. Opôs-se a ela com muita veemência. E o fez por dois motivos: considerou que não cabia ao corregedor um ato monocrático à véspera da sessão do Conselho que trataria do assunto, mas também avançou no mérito. Disse não ver ilegalidades nos atos dos juízes. O corregedor votou pela abertura de inquérito administrativo em todos os casos. Barroso pediu vista.

UM POUCO DE MEMÓRIA
No dia 8 de março de 2019, escrevi neste UOL sobre o fato de a Lava Jato ter decidido destinar à criação de uma fundação de direito privado 50% de uma multa de R$ 2,5 bilhões paga pela Petrobras. Outro tanto ficaria reservado para eventual ressarcimento a um grupo de acionistas minoritários que já tinha até advogado constituído. Salomão pede que se apure também a possibilidade de ter havido na lambança toda corrupção e peculato. Mas vamos ao que estava nesta coluna há cinco anos.

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O acordo espúrio, imoral, sem leis que o amparem, entre o Ministério Público Federal, as "Autoridades Norte-Americanas" (como gosta Deltan Dallagnol, com maiúsculas) e a Petrobras, que pode resultar na criação de uma das mais ricas fundações de direito privado do país, foi homologado pela celebrada Gabriela Hardt, juíza substituta da 13ª Vara Federal de Curitiba.

É aquela magistrada que foi bastante aplaudida por alguns setores por ter condenado Lula no caso do sítio de Atibaia. É bem verdade que, em sua sentença, ela acabou trocando "sítio" por "apartamento" — aquele de Guarujá, que era matéria do outro processo, de que foi juiz o agora ministro bolsonarista Sérgio Moro? Se alguém pensou em algo como "copia/cola" é porque está de maus bofes. Afinal, gente, cumpre-nos o dever da franqueza, né? Pouco importa se sítio ou apartamento, o que interessa é condenar. A Justiça atravessou um novo umbral no país. Mas deixo essa questão de lado agora. Voltemos à homologação do acordo feito pela juíza rigorosa. A íntegra está aqui.

No caso do acordo, a doutora topa quase tudo. Já explico. Sim, ela gostou desse negócio de se criar, com o dinheiro da multa paga pela Petrobras e que tem ser recolhido ao Tesouro, uma fundação de direito privado. Ela não especifica — porque não existe — em que lei os bravos da Lava Jato se basearam para criar a fundação.

Não cita a lei, mas aprecia a coisa. E sua justificativa se baseia numa mistura de suposta defesa do interesse público com prêmio por mérito. Escreve ela sobre a destinação de metade da multa que a Petrobras pagou no Brasil e que vai financiar a tal fundação de direito privado:
"será utilizada à constituição de uma fundação permanente, na forma de 'endowment', e destina-se remédio dos efeitos da corrupção e ao fomento de atividades voltadas à implementação de uma agenda anticorrupção. Isso é especialmente importante já que os investimentos públicos, notoriamente escassos, para a implementação de medidas de combate à corrupção estão usualmente sujeitos a contingenciamentos orçamentários. Assim, na análise deste Juízo, não há dúvida que o acordo atende ao interesse público."

Entenderam? Como, a seu juízo, faltam recursos para se combater adequadamente a corrupção, então por que não usar a grana da multa da Petrobras para essa finalidade, ainda que seja numa fundação privada? Insista-se: ela não ancora seu despacho em lei nenhuma. Prefere deferir o arranjo exótico tendo como justificativa a falta de recursos para o combate à corrupção. Mas não fica só nisso. Ela vai dizer agora por que o MPF teria não o direito, mas a licença moral para fazer tal coisa:
"Cumpre observar o protagonismo do MPF e da Petrobrás na obtenção da concessão no acordo desta com as autoridades dos Estados Unidos. Sem a intervenção do MPF e da Petrobrás, muito provavelmente não seria possível a amortização de 80% da multa milionária pactuada no acordo com as autoridades daquele país, mediante pagamentos e investimentos de interesse coletivo no território nacional".

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Embora seja da turma, ela não é louca. Sabe que a chance de, como se diz, essa coisa "dar ruim" é gigantesca. E aí faz o que me parece bater nos píncaros do escândalo: simplesmente se omite. Escreve ela:

"Consta do acordo que a formação do comitê de curadoria social, responsável pela supervisão da constituição do fundo, seria aprovada pelo Juízo (item 2.4.3.2). A providência é desnecessária. Não tem o Juízo condições de avaliar a reputação e a capacidade técnica dos possíveis integrantes do grupo. Então, a formação do Comitê, por delegação do Juízo, competirá ao MPF. Caberá ao MPF adotar as providências necessárias à formação do Comitê, apenas informando o Juízo quem são as pessoas que o integrarão e quais foram os critérios de seleção. Depois de constituída, a composição e gestão da fundação não se sujeitarão à prévia franquia jurisdicional."

Traduzindo: a juíza autoriza a aberração, diz que atende ao interesse público, alega a carência de recursos como uma das motivações para dar a autorização, aponta os méritos do MPF (como se este, reitero, estivesse cumprindo um papel excepcional, fora de sua competência regular), mas, na hora de se comprometer com o monstrengo legal — que não se sustenta em nada —, pula fora, se exime, não quer saber.

Pode não ser agora, doutora Gabriela, mas seu despacho entrará para a história como uma das maiores deformidades do direito brasileiro. A síntese fica assim:
1: a juíza homologou o acordo;
2: a juíza não citou uma miserável lei que o ampare;
3: a juíza o justifica alegando carência de recursos para combater a corrupção;
4: a juíza acata a fundação como fruto dos méritos do MPF;
5: mas a juíza não quer se comprometer com o a excrescência que ela homologou.

Servidores públicos fazem o que prevê a lei. O que está fora dela, se feito, é ilegal. Simples assim.

ALEXANDRE DE MORAES
No dia 15 de março, uma semana depois daquele texto que escrevi, o ministro Alexandre de Moraes sustou os efeitos do acordo e expôs a sua escancarada ilegalidade. Escreveu ele:

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"A atuação do MPF perante o Juízo da 13ª Vara Federal nos inquéritos e nas ações penais da Lava-Jato, a priori, jamais tornaria esse órgão prevento para a 'execução' do acordo celebrado nos Estados Unidos, mesmo considerada a relação entre o Non Prosecution Agreeement [o pacto firmado] e os fatos investigados no Brasi. Importante destacar, ainda, que os termos do acordo realizado entre a Petrobras e o governo norte-americano, além de não indicarem os órgãos do MPF/PR como sendo as 'autoridades brasileiras' destinatárias do pagamento da multa, igualmente jamais indicaram a obrigatoriedade ou mesmo a necessidade de o depósito dos ser realizado perante a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba"

Mais um pouco?
"Em relação ao destinatário do pagamento dos US$ 682.526.000,00 (80% do valor da multa), o acordo sempre se referiu a 'Brazil' e 'Brazilian authorities', sem indicar qualquer órgão brasileiro específico."

A íntregra está aqui. Ou por outra: não cabia à Força Tarefa fazer o acordo que fez com autoridades americanas e com a Petrobras. Tendo-o feito, a destinação que se pretendia dar ao dinheiro era manifestamente. A íntegra da liminar então concedida por Moraes está aqui.

ENCERRO
Considerando que o CNJ trataria da questão no dia seguinte, acho, sim, que Salomão poderia ter se dispensado do afastamento cautelar dos juízes, embora mantido em parte. Não entro em minudências, mas me parece que o TRF-4, com efeito, ignorou julgado do STF em procedimentos para o afastamento de Appio.

Quanto à manifesta ilegalidade da tal fundação, que não avançou por sustada pelo STF, os fatos falam por si.

No relatório final da correição na 13ª Vara Federal de Curitiba, Salomão escreveu:
"Tal procedimento caracterizou-se pelo atípico direcionamento dos recursos obtidos a partir da homologação de acordos de colaboração e de leniência exclusivamente para a Petrobras (com) a finalidade de se obter o retorno dos valores na forma de pagamento de multa pela Petrobras às autoridades americanas, a partir de acordo sui generis de assunção de compromisso para destinação do dinheiro público -- para fins privados e interesses particulares (fundação a ser gerida a favor dos interesses dos mesmos)".

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E, para não variar, também não faltaram as conversinhas fora dos autos:
"O que a correição descobriu, juntando as pontas e os fatos, é que a homologação do acordo cível (em juízo criminal absolutamente incompetente) ocorreu após a juíza GABRIELA HARDT discutir e analisar, previamente e fora dos autos, por meio de conversas por aplicativo de mensagens (admitido em depoimento prestado pela magistrada durante a Correição), os termos de 'acordo de assunção de compromisso'".

Pode até ser que haja gente querendo se vingar de Gabriela Hardt. O que se vê acima lida apenas com matéria de justiça.

PS: Ah, sim. O lavajatismo resolveu lembrar que foi Lula a indicar Salomão para o STJ. É mesmo? E quem indicou Roberto Barroso, que votou contra os afastamentos e, tudo indica, vai se opor à abertira de investigação? Não teria sido a petista Dilma Rousseff?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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