Supremo 'bloco de poder' e despudorado 'turismo togado' afrontam princípios
O Supremo Tribunal Federal (STF) atravessa momentos de forte desprestígio, com a desconfiança a aumentar em progressão geométrica.
A deusa romana Giustizia, aquela que ao contrário da Temis grega não usa venda nos olhos e enxerga tudo até atrás de postes, anda preocupada por temer acabar no Irajá o STF — tudo em face da conduta e atuação de ministros fora dos conformes constitucionais.
Pela polarização e com o golpismo de matriz bolsonarista ainda bem vivo, é incogitável buscar-se o remédio da formação da uma Assembleia Nacional Constituinte. Mas, mal o ministro Alexandre de Moraes dá sinais de abandonar a estrela de xerife, dois episódios novos passam a preocupar a vida democrática: "bloco de poder" e "turismo togado".
Por partes.
Bloco de poder
Como se percebe, no STF existe um "bloco de poder" formado e em ação — para decidir politicamente ou realizar encontros políticos para fragilizar o Legislativo. Nas duas casas legislativas (Câmara e Senado), deputados e senadores são os que têm mandato popular, ao contrário dos ministros do STF.
O ministro decano, Gilmar Mendes, que há pouco promoveu em sua casa jantar político com o presidente Lula, lidera o bloco com Moraes, e ambos contam, com arrivismo de Dias Toffoli, que já esteve do lado de Bolsonaro e agora implora o perdão de Lula.
Blocos de políticos e bancadas de partidos são formados legitimamente no Poder Legislativo. Na Câmara tem até a informal bancada da bala. Sabemos da bancada evangélica e sua união em torno de valores conservadores.
No Judiciário, bloco representa quebra de independência, de imparcialidade e rota de colisão.
Esse fenômeno apareceu fortemente após as acertadas críticas às decisões monocráticas, muitas de gaveta, numa Corte nascida como colegiada. O "bloco de poder" formado no STF atrelou-se ao fragilizado Executivo e, com Lula em cena, passou a contar com adesões dos ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino. Numa síntese: esse bloco tem ao menos quatro votos.
Um poder não pode jogar de mão com outro, em detrimento, no caso brasileiro, do Legislativo.
O supracitado jantar na casa de Gilmar, com ministros do seu bloco e Lula, é indício forte de afronta à Constituição. Idem é a decisão de Zanin que esqueceu que liminar só pode ser dada em caso de urgência e com base na aparência de bom Direito.
Não há urgência em desoneração da folha de pagamentos com dez anos de aplicação. Se novos beneficiários apareceram, como no caso dos municípios, a liminar deveria ser apenas parcial, para excluir os "caronas".
Sobre o poder detido por supremos juízes, um saudoso e respeitado jurista europeu disse "tratar-se de um poder terrível, uma vez que mal exercido pode fazer passar como decisão justa aquilo pleno de injustiça".
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Quero receberCom "bloco de poder", tudo piora, evidentemente.
Turismo togado sem pudor
A imparcialidade do magistrado é fundamental numa democracia e num sistema republicano que se fundada na igualdade de todos perante a lei. Juiz parcial é uma contradição em si mesma.
Agora, a imagem de imparcialidade dos ministros do STF não é irradiada apenas pelo constante dos autos processuais, mas também pela conduta do magistrado, sua vida pública e sua vida privada. Mais ainda: precisa ser sentida pelos cidadãos brasileiros.
Na Itália, por exemplo, existe uma fórmula obrigatória quando a Justiça decide. É a seguinte: "em nome do povo italiano, a Corte decide". O STF também decide em nome dos cidadãos brasileiros.
O poder é do povo numa democracia (demos = povo e cratos = poder). Sendo assim, é o povo quem comanda — se sua ordem é que os juízes sejam imparciais, tenham decoro e decidam técnica e não politicamente.
Qualquer juiz tem de ter conduta social irretocável. É seu dever preservar a imagem da Justiça. Cabe-lhe cumprir o previsto no código de ética e na lei orgânica da magistratura, além do previsto na Constituição e nos códigos.
No popular e voltando ao STF, ministro não pode dar bandeira. Deve estar atento na sua conduta social ao pundonor, no sentido de recato, decoro, decência.
Os integrantes do "bloco de poder" do STF estiveram, entre os dias 24 e 26 deste mês, em Londres. Pasmem: para discutir em solo inglês o voto no Brasil. Como lembrou o colunista do UOL Josias de Souza, "não foram em áreas das milícias, que controlam votos".
Tudo correu na base, e volto ao popular "0800", na faixa, sem pagar. No hotel de luxo onde ficaram hospedados, e não se sabe quem contribuiu com os pagamentos, um quarto não custa menos de acima de £ 900 (cerca de R$ 5.800).
Foi nenhuma a utilidade do encontro londrino chamado Fórum Brasileiro de Ideias, com Gilmar, Moraes e Toffoli a abrilhantar.
A lembrar, os supremos ministros olvidaram princípios como moralidade e publicidade (participaram de evento fechado, no qual foi impedida a presença de jornalistas).
Para rematar, Moraes disse a jornalistas, do lado de fora do hotel cinco estrelas, que não falaria nada "nem a pau".
Outros futuros eventos no exterior estão sendo noticiados, com a presença de ministros do STF.
'O tempora, o mores'
Certa vez, numa aula a juízes recém aprovados em concurso público de ingresso à magistratura paulista, recordei a lição de um saudoso e respeitado jurista, advogado e jornalista europeu.
Piero Calamandre, ensinava, numa comparação simbólica, dever a vida do juiz ser igual à levada pelos lapidadores de diamantes de obscuras cidades da Holanda.
Pelas mãos daqueles lapidadores, contou na obra "Elogio dei giudice scritto da un avvocato" ("Elogio aos juízes escrito por um advogado"), passavam diariamente pedras raras, de muito valor de mercado.
Depois de entregarem todas as pedras lapidadas, polidas e faiscantes, voltavam à empoeirada mesa do trabalho para a ceia, que era frugal. "Nela partiam o pão da sua honesta pobreza. O juiz também vive assim", concluiu Calamandrei.
Morto em 1956 em Florença, Calamandrei nem imaginou o turismo dos nossos atuais ministros do STF e as iguarias servidas no intervalo das sessões do plenário.
Pano rápido: "o tempora, o mores" ("ó tempos, ó costumes"), bem dizia Cicerone (Cícero).
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