Reinaldo Azevedo

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Opinião

Lula, PL dos Estupradores e mobilização social. Ou: A fé pode aprisionar?

Consta que o presidente Lula reúne na manhã desta segunda ministros e parlamentares da coordenação política — e, sendo assim, ele próprio decide, então, coordenar os coordenadores — para definir uma estratégia de resistência ao avanço do PL 1904, o "Projeto dos Estupradores", que faz com que o criminoso se torne sócio do Estado na imposição de uma pena à estuprada.

Devem participar participar os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Rui Costa (Casa Civil), Márcio Macedo (Secretaria Geral), Fernando Haddad (Fazenda), Laércio Portela (Comunicação Social) e os líderes do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), na Câmara, José Guimarães (PT-CE), e no Congresso, Randolfe Rodrigues (Sem partido-AP). É preciso conduzir a coisa com cuidado para que o efeito não seja contraproducente. Já chego lá. Antes, algumas considerações.

FALAS PUSILÂNIMES
O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), pai do PL e estuprador da civilidade política e do direito penal, falou ontem ao "Fantástico" com o ar pio de um homem de Deus, como se preocupado apenas com o feto. E contou uma lorota: nada aconteceria com a menina estuprada caso se submetesse ao aborto porque ela é inimputável. Ocorre que, se o texto for aprovado, a intervenção se tornará ilegal depois da 22ª semana de gestação. Assim, sem autorização da Justiça, as crianças e as mulheres violadas seriam condenadas a ter um filho de seu algoz.

O programa dominical levou ao ar a declaração do ator Juliano Cazarré, que eu já tinha visto aqui e ali em outras circunstâncias. Pouco sabia sobre este senhor. Pesquisei um tantinho. É católico fervoroso e tem cinco filhos. A mais jovem superou muitas dificuldades para sobreviver, e os pais expuseram ao público detalhes de sofrimento e redenção. Louvo a dedicação, saúdo as conquistas e reprovo o excesso de exposição. Mas isso é com eles. Cada um sabe o que faz da própria vida e como se comporta no seio da própria família, nos limites do que a lei protege e não veda.

O que me incomodou, vi há pouco no site do programa, foi a placidez, tranquilidade e certeza inquebrantável com que Cazarré chama o aborto — qualquer um — de assassinato, expondo o que considera uma saída: que a mulher tenha o filho e o entregue para a adoção, uma vez que o trauma do estupro está consumado, e o aborto não pode corrigi-lo.

Esse cara deve achar que a gravidez e o parto se dão sem nenhum custo emocional e existencial para a mulher. Como não escolheu ficar grávida, que lhe seja tirado também outro direito de escolha. Uma imposição é feita pelo estuprador. A outra, pelo Estado. Não estava dando só uma opinião. Defendia o texto de Sóstenes. É, pois, é mais um a quem não bastam direito e liberdade de crença, conquistas da democracia. Querem apelar ao Estado punitivista para impor a sua fé aos outros. E isso é próprio de ditaduras.

Outra figura pública que anda por aí a escandir sílabas em favor do projeto é Cássia Kis, que já virou uma caricatura. Em 1997, deu a cara à Veja numa capa que trazia mulheres anônimas e famosas que tinha optado pelo aborto. Tudo indica que se arrependeu e tem o direito de fazê-lo. Só não pode, então, para empregar um vocabulário que pegaria bem a esta figura que se ajoelhou para rezar em favor do golpe, ser a senhora do "pecado" e da "correção dos pecadores", não é mesmo?, com a gravidade adicional de que a "pecadora estuprada", segundo seus delírios, arcará com o sofrimento, enquanto o "pecador estuprador", no mais das vezes, saíra por aí à caça de novas vítimas. Essa gente costuma falar em "liberdade religiosa" para que possa impor aos outros os preconceitos de sua própria fé.

E, claro!, lastimo que a CNBB tenha saído em defesa do projeto. Reparem que há muito tempo já o Vaticano prefere falar de outra coisa quando se trata de gravidez em caso de estupro. O aborto foi legalizado na Itália no longínquo 1978, e não há vizinhança com o papa ou ascensão da extrema-direita que revejam a decisão.

"Esperava que a Igreja atacasse o texto, Reinaldo?" Não. Poderia ter escolhido o silêncio prudente, dadas as circunstâncias. Num país em que milhares de meninas pobres são estupradas todos os anos, prefiro que os senhores bispos vejam Deus na assistência à pobreza e à miséria, não na apologia do martírio alheio. Voltar as costas para a infância aviltada e para vidas para sempre comprometidas é um convite para que aquelas que já nada têm de seu revivam as chagas de Cristo, enquanto os supostos guardiões da palavra de Deus se recolhem em seu conforto. Lixo moral e religioso.

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DE VOLTA À ARTICULAÇÃO POLÍTICA
Sóstenes nunca escondeu que está numa mera operação política. Quer, já deixou claro, testar o presidente Lula. O pastor e sua turma usam a desgraça alheia num jogo de ganha-ganha. Neste domingo, ele já posou de defensor da vida no "Fantástico". O deputado barulhento não se mostrou. Falava em seu lugar, o suposto defensor ponderado "da vida".

Não sei se o esforço do Planalto para barrar o texto será bem-sucedido. A que instrumentos apelará o governo, que tem sofrido algumas derrotas importantes no Congresso, para felicidade e gáudio do crescente oposicionismo da imprensa? Se o texto passar, vem outra enxurrada no noticiário sobre a desorganização da base, o isolamento de Lula, o risco de não se eleger em 2026... Olhem para a Caixa de Pandora em que se transformou o Parlamento. Todos os males do mundo parecem à solta — só mesmo a esperança não escapou de lá...

Lula já evidenciou a sua oposição ao texto. Em seu lugar, eu apenas anunciaria: "Se o texto for aprovado, eu veto. E recomendo a todos os parlamentares que votem contra". E pronto! Essa e outras mobilizações têm de ser da sociedade.

O pai da Lei dos Estupradores e associados fazem uma aposta: "Empurrando o governo para a mobilização contra a proposta, a gente pespega nele a pecha de abortista; a gente se lançou nessa empreitada com essa finalidade. Nós lá estamos preocupados com crianças, sejam as mães crianças, sejam os bebês filhos de crianças... De verdade, não damos a mínima. Fôssemos movidos pelo espírito cristão, não estaríamos empenhados em punir com prisão as estupradas...".

"Então o governo não deve se mexer?" Deve, sim, mas com cuidado para não ser manipulado por picaretas e vagabundos, que querem usar a desgraça de meninas pobres como arma para atingir adversários políticos.

Até porque, na era do "outro-ladismo", em que se garante voz até a golpistas — em nome da pluralidade —, há o risco de o PL dos Estupradores se transformar numa mera disputa entre governo e oposição, como se a imposição da pena de prisão a uma estuprada fosse um instrumento da disputa entre duas foças legítimas: governo e oposição.

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"Mas a oposição não é legítima?" A oposição é! Ou não existe democracia. Quando, no entanto, se articula um projeto que faz do estuprador o elemento a gerar obrigações e penas às vítimas, o que se busca é a deslegitimação do próprio regime democrático.

Que o governo se oponha à barbaridade. Mas lembrando sempre que o protagonismo da luta contra o PL dos Estupradores tem de continuar a ser da sociedade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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