Reinaldo Azevedo

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Opinião

Lira se assusta e recua; se não haverá retrocesso, que texto vá para o lixo

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) sentiu pela primeira vez, desde que assumiu a presidência da Câmara, o bafo do povo no cangote. Sim, ele é, como se diz, "pragmático" e foi útil na articulação de muitas votações importantes para o país. Destaco o arcabouço fiscal e a reforma tributária. É um mestre do equilibrismo, sempre olhando para a direita. Muitas maldades passaram pelo escritório de contabilidade de votos, sem que seu terno fosse tisnado.

A Lei dos Estupradores colou mais em Lira do que em Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o autor da aberração. Porque foi o presidente da Câmara — sim, com o concurso do Colégio de Líderes — a articular a votação-relâmpago do regime de urgência, pratica que virou rotina sob a sua gestão. Enormidades vão prosperando com o mínimo debate possível.

Lira não é exatamente um político que mobiliza paixões fora do seu Estado e de alguns nichos militantes, que acompanham política mais de perto. Desta feita, a coisa engrossou, e aparecia ele, no imaginário das pessoas, como o pai do monstrengo que condena à cadeia mulheres estupradas e a medidas socioeducativas as meninas, caso recorram ao aborto. A direita com um tiquinho de lucidez não comprou a ideia. Sóstenes e Lira, o viabilizador da urgência, foram abandonados até por parcela do bolsonarismo.

Aliás, alguém viu a "família" por aí a tratar do assunto? O senador Flávio Bolsonaro, por exemplo, segundo li, está empenhado em criar um site para cuidar daquela magnífica e multibilionária proposta de especulação imobiliária, apelidada de "privatização das praias".

Convenhamos: eles têm método. Enquanto nos ocupamos do PL dos Estupradores, e com razão, Flávio cuida de fazer avançar o horror imobiliário.

Sóstenes ainda babou contra as "esquerdistas e feministas", mas não adiantou. Então Lira se viu obrigado a fazer ontem um pronunciamento, anunciando a criação de uma comissão para tratar do assunto:
"O colégio de líderes deliberou debater esse tema de maneira ampla no segundo semestre, com a formação de uma comissão representativa. Só iremos tratar disso após o recesso, na formação desta comissão, para tratar este tema com amplo debate. Com a percepção clara de que todas as forças políticas, sociais e de interesse no país participarão deste debate. Todos os segmentos envolvidos, sem pressa e sem qualquer tipo de açodamento"...

Ah, sem açodamento. Que bom!

AMPLO DEBATE?
Prestem atenção a este trecho da fala. Isso é compatível com o regime de urgência?
"Em primeiro lugar, nós vamos começar reafirmando que, desde o primeiro momento em que este assunto veio à pauta e como ficou dito, a praxe desta Casa, da Câmara dos Deputados, do Colégio de Líderes, nessa legislatura, foi sempre em nunca votar um assunto importante sem amplo debate, Nesta Casa, todos os assuntos importantes que foram votados foram discutidos, foram amplamente debatidos com os parlamentares, com os representantes da sociedade civil, com as lideranças partidárias. Nesse caso, é iminente que a discussão do PL 1904 ocorra de forma ainda mais ostensiva, ainda mais clara. Em segundo lugar, [quero] reafirmar, mais uma vez, a importância do amplo debate: [ele] é fundamental, claro!, para exaurir todas as discussões e se chegar a um termo que crie para todos segurança jurídica humana moral e científica sobre todo e qualquer projeto que possa vir a ser debatido na Câmara dos Deputados".

As palavras fazem sentido, não é? E eu me atenho a ele. Se o objetivo era fazer o "amplo debate", o que explica o regime de urgência, que impede que as propostas sejam debatidas em comissões? Ou se quer uma coisa ou se quer outra.

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CORPO FORA
Lira também resolveu dividir a estrovenga com os líderes, na linha "a culpa não é só minha":
"Deixar Claro também que a decisão sobre a pauta da Câmara, e eu agradeço a participação aqui de todos os líderes, é para deixar claro que nós não governamos sozinho. Essa narrativa não é verdadeira. As decisões na Câmara não são monocráticas. Nós somos uma casa de 513 parlamentares, representados por lideranças partidárias, e elas aqui demonstram claramente que qualquer decisão, ela é sempre feita de forma colegiada. Cabe ao presidente, administrativamente, lançar a pauta conduzir os trabalhos, e A isso nunca me furtei nem nunca me furtarei porque sempre tive uma discussão muito clara com todos os parlamentares, da oposição e do governo, deste ou daquele governo, com relação às pautas."

Eis aí. Lira tomou a iniciativa, sim, de pautar. E a urgência contou com a concordância da maioria dos líderes. Sim, é verdadeira a narrativa de que Lira é influente o bastante para decidir o que entra e o que não entra em regime de urgência.

NÃO HAVERÁ RETROCESSO?
Lira prosseguiu, para tentar se livrar das pechas de articulador do reacionarismo mais abjeto que já passou pela Casa:
"Em quarto lugar, reafirmar com muita ênfase, e eu quero atenção de todos, que nada neste projeto -- que eu sempre disse que a importância de um projeto não está na autoria, mas sim na relatoria e em quem vai discutir, como é que vai sair o texto, e, a partir daí, qualquer juízo de valor... -- nada irá retroagir nos direitos já garantidos, e nada irá avançar que traga qualquer dano às mulheres. Nunca foi e nunca será tema de discussão de Colégio de Líderes qualquer uma dessas pautas".

Folgo em saber, claro! Mas então o projeto precisa ser arquivado no lixo. Vira uma conversa de loucos. Se o texto pune com até 20 anos de cadeia a mulher que, vítima de estupro, submeta-se a um aborto depois da 22ª semana de gravidez; se uma menina ainda inimputável poderia ser submetida a medidas socioeducativas, como é que não há retrocesso nos direitos? Como é que se pode negar que se impõem danos às mulheres?

Se "nunca foi nem nunca será tema de discussão" no Colégio de Líderes, como é que votou a urgência?

CUIDADO COM A CASCATA
Na sequência, Lira anunciou a tal comissão e tentou justificar a aberração com a conversa de que a Câmara é democrática e debate todos os assuntos etc. e tal.

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Claro! Todos apreciamos a democracia. Mas é bom, sim, ter um filtro prévio sobre o que pode e o que não pode ser debatido, não é mesmo? Se alguém decidir reinstituir a escravidão ou indenizar os descendentes dos senhores de escravos por suas "perdas", acredito que debater tais assuntos avilta a Câmara, em vez de lhe conferir autenticidade democrática.

Da mesma sorte, debater que punição se deve aplicar à mulher ou à menina estuprada avilta não só Casa, mas a condição humana.

ENCERRO
O fato é que Lira tocou adiante mais essa pauta, no arranjo com a bolsonarada, que anda a fazer exigências para apoiar esse ou aquele nomes à sua sucessão. E não esperava a reação. Só que ela veio e o colheu em cheio.

Lira sentiu.

Lira em pronunciamento sobre PL dos Estupradores
Lira em pronunciamento sobre PL dos Estupradores Imagem: Reprodução

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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