Flávio-Abin: A gravação registra o anúncio de crimes; fatos trazem indícios
Vamos botar um pouco de ordem na bagunça envolvendo a Abin paralela e o uso de aparelhos do Estado em benefício de Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Comece-se pelo óbvio: a eventual ajuda ao senador é só uma das apurações que envolvem a agência. Considerem: os cinco que estão em prisão preventiva, por exemplo, não têm vínculo com esse aspecto da investigação. Sigamos.
É evidente — e chega a ser cômico que alguns tentem polemizar a respeito — que não é crime a simples conversa havida no dia 25 de agosto de 2020, no Palácio do Planalto, entre o então presidente Jair Bolsonaro; Augusto Heleno, à época chefe do GSI; Alexandre Ramagem, que comandava a Abin, e as advogadas de Flávio. Ali, eles falavam sobre os caminhos para mobilizar a máquina do Estado em favor do filho mais velho do presidente.
Ora, jogar conversa fora numa reunião fechada — o tal falar por falar — não é crime mesmo, ainda que o troço venha a público. Quem está afirmando o contrário? Que eu saiba, ninguém. A questão é saber se o Estado foi mobilizado informalmente em favor do filhote do presidente, ainda que os presentes à reunião dissessem que só estavam em busca da verdade. Mais importante: apurar se o presidente se envolveu pessoalmente na operação. As conversa sugere que sim.
AS ADVOGADAS
As advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach acusavam procedimentos irregulares de agentes da Receita na apuração da "rachadinha" e pediram ajuda de órgãos oficiais, inclusive do GSI, para produzir provas contra os auditores. Partiu, então, de Bolsonaro a sugestão para que se falasse com José Tostes Neto, secretário do órgão.
Juliana, uma das advogadas, deixa claro que o procedimento pode ser, digamos, polêmico. A fala apresenta os truncamentos da oralidade, mas o sentido é claro:
"Eu acredito, até que se isso aqui vier à tona, a gente vai ser bastante, é atacada, mas francamente, eu não tenho o pouco nem pouco a fazer. O que é que acontece? Eu juntei aqui. Eu fiz um, um pedido, é, general. Especialmente pro GSI. Porquê? É um pedido de averiguação. Dos sistemas de inteligência que atendem à Receita Federal, mas o pedido precisa, a averiguação precisa, feita, feito pelo Serpro".
O Serpro - Serviço Federal de Processamento de Dados -- é a maior e mais importante estatal de tecnologia do país e cuida do maior banco de dados da União, com informações sobre todos os cidadãos brasileiros. Bolsonaro, então, parece fazer uma confusão entre essa ente e outra estatal de dados, a Dataprev, a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência, responsável pela gestão da "Base de Dados Sociais Brasileira", especialmente a do INSS. Por isso ele diz que vai falar com Gustavo Canuto:
"Era ministro meu e foi pra lá [pro Serpro]. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele. Vai ter problema nenhum conversar com o Canuto".
Luciana, a outra advogada, se anima:
"Serpro? Então tá ótimo. Sim, sim. Olha, em tese, com um clique, você consegue saber se um funcionário da Receita [inaudível] esses acessos lá".
Heleno se preocupa porque sabe que a conversa, nas intenções, já ficou bem pouco republicana:
"Ele [Canuto] tem que manter esse troço fechadíssimo. Pegar gente de confiança dele. Se vazar [inaudível] esses dados de lá?"
Canuto diz que nunca foi procurado com esse propósito, e é provável que não porque, reitere-se, ele estava na Dataprev. Quem ocupava a presidência do Serpro na data da reunião era Gileno Gurjão Barreto, que substituiu Caio Mário Paes de Andrade, que deixara a estatal dias antes para ser titular da Secretaria Especial de Desburocratização Gestão e Governo Digital. Dali saltou para a Petrobras e hoje é secretário de Gestão e Governo Digital de Tarcísio de Freitas, em São Paulo. Sigamos.
HOUVE OU NÃO INTERFERÊNCIA?
Pois é... No dia seguinte, as advogadas de Flávio estiveram, sim, com Tostes. Uma delas, Luciana, voltou ao Palácio do Planalto. O próprio Bolsonaro se encontrou com o secretário da Receita no dia 9 de setembro, desta feita acompanhado de Paulo Guedes. No dia 11, mais um papo, também em companhia do ministro da Economia. Uma semana depois do último encontro, Tostes esteve outra vez com as advogadas, aí na casa do próprio Flávio.
Se ficar evidenciado que servidores do Estado foram mobilizados à margem da lei para beneficiar Flávio, aí estamos diante de um caso explícito de prevaricação, advocacia administrativa e improbidade.
Flávio veio a público para dizer que a montanha pariu um rato porque a gravação não provaria nada. Bem, é o exato contrário: evidencia-se, ali, que se tomou a decisão de mobilizar os entes do Estado para beneficiá-lo. A questão, agora, é saber se houve ou não essa mobilização. E, convenham, tudo indica que sim.
O troço todo é de tal sorte constrangedor que Alexandre Ramagem agora vem com a história de que Bolsonaro sabia que a reunião estava sendo gravada. É mesmo? Segundo a versão que Ramagem só apresentou ontem, tratava-se de uma armadilha para pegar um intermediário de Wilson Witzel, então governador do Rio, que iria ao encontro para oferecer o fim da "perseguição" a Flávio em troca de uma indicação para o Supremo. Só que o tal homem de Witzel não teria aparecido. E mesmo assim se fez a gravação?
CONCLUO
No caso em questão, os crimes, com efeito, não estão em anunciar que se vai mobilizar a máquina no Estado, mas em mobilizá-la efetivamente. E que se reitere: a "Operação Salva-Flávio" foi apenas um aspecto dos crimes da Abin paralela.
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