Reinaldo Azevedo

Reinaldo Azevedo

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

O Borat sem graça dos EUA como candidato. E normalizadores indignos do caos

A conversa de Donald Trump com Robert Kennedy Jr., candidato "independente" à Presidência dos Estados Unidos, é assombrosa. Eis aí: estamos lidando com o adjetivo do verbo "assombrar". Tudo se cobre de sombra, causa medo, aterroriza, move... assombrações.

Trump trata o filho perturbado de Robert Kennedy como um chapa, um "brother", um amigão. E o incita a desistir de sua postulação na linha "estamos juntos, você sabe..." Comenta o bate-papo com Joe Biden ao telefone depois do atentado de sábado e encontra tempo para atacar as vacinas.

Resume deste modo a conversa com seu adversário:
"Foi realmente bem agradável. Ele me ligou e perguntou: 'Como você decidiu se virar para a direita?'. Acho que as pessoas viram: se eu estivesse olhando para a frente... Eu disse que estava mostrando um gráfico. Eu não precisava dizer a ele que o gráfico mostrava todos os imigrantes que estão entrando em nosso país, né? Eu 'apenas virei a minha cabeça para mostrar o gráfico', e aí algo me acertou. Foi como o maior mosquito do mundo, um gigante. E era uma bala. Você sabe como eles chamam isso? Um AR-15 ou algo assim. Era uma arma grande. Essas armas são muito potentes, certo?"

Trump não morreu por um centímetro, talvez meio... Quando ouvimos e lemos a sua declaração — dados o tom irônico que emprega para se referir a Biden e a metáfora a que recorre para explicar como é ter uma orelha atingida por uma bala de fuzil —, o que se tem é a expressão de uma derrisão.

"Assim nascem os fortes"? Não. Assim se normaliza a barbárie. Em vez de lamentar que um jovem de 20 anos portasse legalmente uma arma com aquele poder ofensivo e tentasse matar um candidato à Presidência, ele destaca quão potente é a dita-cuja, como a dizer: "E escapei mesmo assim". Transforma um ato violento e um lance de sorte numa distinção privada. Daí que tenha falado, em entrevista, num milagre.

VACINAS
As suas considerações sobre vacinas, sopradas ao ouvido de alguém que se opõe não ao imunizante contra a Covid em particular, mas a qualquer um, poderiam, sei lá, estar na boca de "Borat", a personagem cômica criada pelo humorista britânico Sacha Baron Cohen. Afirmou:

"Quando se dá uma vacina em um bebê, Bobby, trata-se de algo como 38 vacinas diferentes, e parece que são destinadas a um cavalo, não para um, você sabe, bebê de 4 quilos e meio ou 9 quilos. Parece que se deveria dar isso a um cavalo. E você já viu o tamanho disso, né? É enorme, e então se vê o bebê começando a mudar radicalmente. Eu já vi isso diversas vezes. E aí você ouve que não tem um impacto, né? Mas eu e você falamos sobre isso há muito tempo."

Eis aí uma das falas que os normalizadores do caos nos convidam a achar aceitável ou uma opinião como outra qualquer. E que fique claro: resistir à normalização não corresponde a fingir inexiste a estupidez. O que se faz é um chamamento à resistência, que deve ser movida também pela indignação moral, sim!

"E desde quando ela resolve alguma coisa?" Sem esse primeiro passo, resta apenas a rendição diante do argumento da "vontade da maioria". Releiam as diatribes do lunático. Não só alimenta as teorias conspiratórias de que as vacinas operam uma redesignação dos bebês como investe na larota de que já teria visto sabe-se lá qual fenômeno teratológico em razão da imunização.

Nas condições de hoje, esse cara será presidente da nação mais poderosa da Terra, e sabemos que tudo o que se faz por lá impacta o resto do mundo.

Continua após a publicidade

Cientistas, esses seres desprezíveis, estimam que migrações de vírus já estão em curso rumo a uma nova pandemia, que será causada por uma variante do influenza. Cepas da gripe aviária já começaram a se espalhar em mamíferos — têm atingido, por exemplo, o gado — justamente nos EUA. Quando contamina humanos, o que ainda é raro, a letalidade é superior a 50%. Se vier e se Trump for o presidente, o pacto com a morte já terá sido celebrado.

Vomitam os teóricos da "democracia como expressão da maioria" que, se Trump é a vontade majoritária, então é uma tolice antidemocrática lutar contra a "normalização" das aberrações que diz. Em vez de enfrentarmos a barbárie, sugerem os canalhas, devemos dialogar com ela para que seja menos má, hipótese em que necessariamente seremos menos bons. Sem a indignação moral, ou nos juntamos aos vândalos da democracia ou aceitamos o papel de vítimas de suas escolhas indignas.

Por aqui, conseguimos conter a besta. E, por óbvio, não foi com o apoio dos colaboracionistas do caos, que tentam emprestar dimensão teórica à própria covardia.

"Vá lá, Reinaldo! Vá levar suas considerações aos americanos; quem sabe não votem em Trump; afinal, ele diz que as vacinas reprogramam os bebês..." Que bobagem! Milhões escolhem o seu nome justamente porque ele diz o que diz. Esse é o tempo que vivemos. As coisas estão assim.

Tempo de reler — ou de ler — "O Idiota", de Dostoiévski. E não estou aqui a fazer um convite à santidade quase monástica. Ocorre que será sempre mais decente resistir do que dialogar com o Findomundistão só porque ele existe.

Tempo de rever — ou de ver — "Mephisto", filme de István Szabó baseado em romance homônimo de Klaus Mann. Conta a história de um ator da Alemanha nazista que achou que conseguiria manter intocada a sua arte se dialogasse "com eles" — que eram, afinal, a maioria. Vejam lá no que deu a escolha pela "normalização" do horror em nome do pragmatismo.

Continua após a publicidade

Nesses casos, pragmatismo nunca é. É sempre covardia. E do tipo arrogante.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes