Estupidez de Marçal vira ameaça à hegemonia da... estupidez dos Bolsonaros
De tal sorte Pablo Marçal encarna o grotesco na política, que os de bom senso somos tentados, ainda que por alguns segundos, a ouvir com simpatia o que diz Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ao criticar o "coach" que, não tendo feito a fortuna de ninguém, realizou verdadeiros prodígios na própria conta bancária. Tenhamos calma. O deputado do PL não ataca o esquisitão porque este representa um risco para São Paulo ou para o país, e sim porque é uma ameaça a isso que se chama "bolsonarismo".
Nota à margem: o agora candidato à prefeitura diz que só consertava computadores para uma quadrilha que pirateava contas bancárias na Internet, desbaratada em 2005. Gravações que vieram a público evidenciam que era um operador. Dezenove anos depois, declara um patrimônio de R$ 193,5 milhões. Acumulou mais R$ 10 milhões por ano. Um prodígio! Reportagem do Estadão publicada ontem informa que Tarcísio Escobar de Almeida, ex-presidente estadual do PRTB, e Júlio César Pereira, o Gordão, coordenadores informais da sua campanha, trocavam carros de luxo por cocaína em operação vinculada ao PCC. Resposta do milionário milagroso: não cobra certidão negativa de quem tira foto com ele... O problema não está na foto, mas no fato. E sim: Marçal foi condenado em 2010 a quatro anos e cinco meses de reclusão pelos crimes descobertos em 2005. A pena foi extinta na fase de recursos em razão da prescrição. Voltemos a Eduardo.
BOLSONARISMO É LULISMO DO OUTRO LADO?
Aqui e ali se diz sem muita cerimônia conceitual que o bolsonarismo é o duplo invertido do lulismo -- em alguns casos, do petismo --, e se dá a isso o nome de "polarização", daí a frequência com que se procura, especialmente na imprensa, o tal "candidato de centro", que representaria o elemento equidistante entre os dois extremos. Vocês sabem que acho isso uma bobagem pela simples e eloquentíssima razão de que Jair Bolsonaro é, sim, de extrema-direita, mas Lula não é de extrema-esquerda. Este "centro metafísico" que muitos procuram, note-se, tem nome e é do mundo físico: Luiz Inácio Lula da Silva. Para constatá-lo, basta olhar a composição do seu governo e sua pauta.
O extremismo reacionário encarnado por Bolsonaro não conseguiu ainda — nem conseguirá — plasmar uma teoria do poder. "Ah, Reinaldo, mas só quem consegue criar um aparato teórico vence uma eleição?" O pai de Eduardo prova que não. Ocorre que, sem um conjunto afirmativo de valores capaz de dizer também o que quer, além daquilo que não quer (o outro entendido como o demônio a ser esconjurado), essa extrema-direita se alimenta de paixões meramente reativas: dos ódios que açula, das paranoias que alimenta, das fantasias de extermínio (do inimigo) que estimula.
Bolsonaro, como expressão do reacionarismo mais abjeto, não é, evidentemente, um elemento novo nem na política brasileira nem na história da humanidade. Sempre haverá os que, em nome dos próprios interesses ou como prepostos de terceiros, manejam, vamos dizer, os "afetos de tristeza" de incautos. E é certo que há os que sabem manipular os "afetos de alegria" em causas muitas vezes disruptivas, não necessariamente virtuosas. O que ameaça as democracias, nestes tempos, são as disrupções reacionárias, não as revolucionárias. Adiante.
QUAL A HISTÓRIA?
Sempre que tentam fazer de Bolsonaro "o Lula da extrema-direita" -- ainda que houvesse fundamento, e não há, em buscar o homólogo no outro polo do extremista de esquerda que o petista não é --, pergunto: que obra do ex-presidente o habilita à condição de líder da reação? O que, na sua história despida de eventos, de fatos, de sucessos -- na primeira acepção do dicionário -- faz dele um símbolo, um porta-voz, um herói em coragem, tenacidade, abnegação ou magnanimidade, ainda que para o gosto daqueles que se sentem humilhados pelo progressismo "comunista"? Pode-se, e estes dias são adequados para esta outra indagação, perguntar o mesmo sobre Donald Trump nos EUA. Parece que os democratas têm conseguido, por lá, depois da ascensão de Kamala Harris à condição de candidata à Presidência, apontar os pés de barros do falso ídolo.
Sabem por que Eduardo execra Marçal, ainda que seu pai tenha flertado com o amigo de Escobar e de Gordão, que foram flagrados, segundo a polícia, operando para o PCC? Um tanto mais inteligente do que o genitor, ainda que não tão bem-dotado do carisma da desordem, o filho percebe que um outro aventureiro, com discurso igualmente insano, mas um pouco mais organizado do que o edifício de anacolutos desengonçados do chefe do clã, pode, do nada, de súbito, arrombar a cidadela e se candidatar a líder — por ora, em São Paulo — do rancor amorfo e bruto que hoje confere tanto poder à família.
A FALA DE EDUARDO
No vídeo que gravou contra Marçal, Eduardo se refere à reportagem do Estadão, que liga Marçal à dupla que, segundo a polícia, operava para o PCC, mas também lembra quem é o único, o legítimo, o verdadeiro caça-fantasmas do reacionarismo nacional. Afirma:
"Eu venho aqui para dar um depoimento pessoal. Eu, há um tempo atrás, eu tinha um programa no YouTube, que eu mesmo desenvolvi, chamado 'O Brasil Precisa Saber', onde eu entrevistava pessoas de destaque da sociedade Brasileira, ministros do governo Bolsonaro, acredito que muitos de vocês assistiram. Vocês sabiam que eu já gravei com Pablo Marçal? Sim! Mas 90 % da entrevista foi (sic) ele falando da técnica dele de vender curso, como trabalhar na Internet, até interessante... Mas os outros 10%, ele falou de comunismo e marxismo. No dia seguinte, ele ligou para minha equipe e perguntou se não poderia tirar do ar a parte que ele falava de comunismo e marxismo. Não vou publicar alguma coisa que ele não queira, mas se for para usar o meu YouTube, de um político, onde a gente trata de pautas de interesse nacional para os meus representados, se eu tirar a única coisa do bate-papo que realmente interessava, que era essa questão do marxismo e do comunismo... Eu não coloquei no ar a entrevista. E aí eu me pergunto, né? Como é que a pessoa quer se lançar na política sem tomar um partido? Não é disso que a gente está cansado? Como é que uma pessoa quer se lançar na política quando, no momento mais crucial das eleições 2022, ela não sabia distribuir o bem do mal? Ela não conseguia entender a diferença de (sic) Lula e Bolsonaro e preferiu ficar em cima do muro, dizendo que a diferença entre eles era apenas um dedinho? É difícil, né?, você demorar para reclamar de aumento de imposto, de associação com o Hamas, com o narcotráfico etc. Então eu vou resumir para vocês que o Olavo de Carvalho falava: 'Vocês aí da direita, tomem cuidado! Se quiserem jogar pedra, criticas o Bolsonaro, vocês serão tão odiados quanto esse pessoal do lulo-comunismo', falava Olavo de Carvalho. Porque não existe direita no Brasil; existe Bolsonaro. Graças a Deus que existe Bolsonaro! Tem gente que tem ânsia pelo poder, quer destruir ele de maneira velada para o cara se levantar e ser líder. Mal sabe as dores de cabeça que são enfrentadas pelo meu pai todos os dias. Nem eu sei como é que ele aguenta a pegada. Ele desenvolveu uma vacina dose única, só pra ele. Às vezes, nem eu consigo repetir o que ele fala porque, se ele disser, o resultado é um; se eu disser, as consequências são muito ruins pra mim. Então, eu tenho que comer muito feijão com arroz quando chegar lá, e tem muita gente que não vai chegar lá a poucos meses da eleição, tomando partido e adotando discurso desenhado pelo marqueteiro".
Síntese:
1: entende-se que Marçal criticou o marxismo e o comunismo na conversa que tiveram -- como se ambos dispusessem de bibliografia para tanto --, mas depois recuou. Logo, Eduardo está sugerindo que o outro possa ter alguma simpatia pelas esquerdas;
2: aproveita o vídeo para, claro!, apontar os fantasmas de sempre contra o PT e Lula;
3: apelado a Olavo de Carvalho, lembra que só há um líder da direita... Ou melhor: segundo Eduardo, "não existe direita no Brasil; existe Bolsonaro";
4: observem ali que qualquer liderança conservadora que não pague pedágio ao ex-presidente — ou que ouse, digo eu, ter seu próprio hospício ideológico — é tratada como inimiga;
5: Eduardo diz que ele próprio, um filho — e, nessa hora, coloca-se como o herdeiro político —, tem de "comer muito feijão com arroz para chegar lá".
CONCLUO
Bolsonaro e isso a que chamamos "bolsonarismo" não são assombrados pelo medo do comunismo. Eles sabem que isso é um espantalho que eles próprios criaram para mobilizar os fanatizados.
O medo que verdadeiramente têm é outro: surgir uma liderança não autorizada que lhes roube a posição hegemônica na estupidez reacionária. Como inexistem valores afirmativos na construção bolsonarista, mas apenas reativos, a troca de guarda é possível.
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Quero receberO chapa de Escobar e Gordão compete na mesma raia da família Bolsonaro, amiga de Adriano da Nóbrega, aquele que era chefe do "Escritório do Crime".
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