No campo da razão, Kamala esmagou Trump no debate na ABC; vamos ver na urna
A candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos não é uma grande retórica. E, no entanto, venceu com folga, entendo eu, o debate contra Donald Trump na noite desta segunda, na Filadélfia, na Pensilvânia, promovido pela ABC News. Os mediadores, David Muir e Linsey Davis, colaboraram para que eu formasse esta opinião. Não porque tenham sido parciais, mas porque fizeram valer o jornalismo — e, pois, a precisão, o que sempre estará contra Trump, um mentiroso fanático. Síntese das sínteses: ele ficou todo o tempo na defensiva e, nas vezes em que atacou, repetiu a ladainha de sempre contra os imigrantes, sem receio de cair no grotesco,
Antes que eu continue, uma ressalva: analiso o embate em si. Nem fui escarafunchar para saber o que dizem os "trackings", a esta altura certamente feitos, porque decidi passar ao leitor o meu entendimento do que vi e ouvi. Sim, acho que ela venceu, mas, em eventos dessa natureza, é a percepção do eleitor — e, sobretudo, de alguns eleitores — que determina a vitória ou a derrota. Afinal, por lá, pode-se ganhar no voto e perder no colégio. Fiquemos atentos, a partir desta terça, às pesquisas nos chamados "estados-pêndulo".
Voltemos ao ponto inicial. Aqui, à distância, nas terras vistas como ignotas pelo Império do Norte, a minha percepção é a de que Kamala poderia ter esmagado o verme reacionário. Foi dura, mas não humilhante. Seus "doutores" não querem caracterizá-la como uma "radical", uma "furiosa", uma "extremista", pechas que o adversário tenta colar nela.
GUERRA RÚSSIA-UCRÂNIA
Trump se atrapalhou a valer ao discutir a guerra entre a Rússia e Ucrânia. Ela mandou ver: estivesse ele na Casa Branca, e Vladimir Putin estaria em Kiev. Levou o adversário a criticar a Otan e os aliados europeus. Duas vezes ao menos, ele se jactou de dialogar com o presidente russo. Segundo disse, fosse ele o presidente, e a guerra nem teria acontecido. Acusou os democratas de ameaçar o mundo com a terceira guerra mundial e lembrou: Putin tem armas nucleares.
Kamala, parece, poderia ter explorado tanto a proximidade com Putin, que seu próprio adversário anunciou três vezes, como o raciocínio que, tomado por suas consequências, resultaria na vitória da Rússia. Vale dizer: aquilo que ele chama negociação corresponderia, na verdade, à rendição da Ucrânia. Mas ela não o fez.
O ex-presidente preferiu evocar o testemunho de Viktor Orbán, o autoritário premiê húngaro, segundo quem os outros líderes mundiais o temiam quando estava na Casa Branca e por isso se comportavam. Ouviu como resposta que ele, Trump, gosta de ditadores e líderes autoritários, mas não gosta da democracia. Disse ainda que essas pessoas sabem manipulá-lo com favores e elogios. E voltou a acusá-lo de querer ser um autocrata.
RAÇA
Muir foi ao ponto:
" Sr. Presidente, o senhor disse recentemente sobre a vice-presidente Harris: 'Eu não sabia que ela era negra até alguns anos atrás, quando ela se tornou negra, e agora ela quer ser conhecida como negra'. (...) Por que você acredita que é apropriado opinar sobre a identidade racial do seu oponente?"
Trump tartamudeou:
"Não, eu não me importo. Não me importo com o que ela é. Não me importo. Você faz um grande alarido sobre isso. Eu não poderia me importar menos. O que ela quiser ser está bom para mim."
Não adiantou. O jornalista insistiu:
"Mas essas foram suas palavras. Então estou perguntando".
Trump tentou fugir de novo, antes da palavra passar para a sua adversária:
"Não sei, não sei. Tudo o que posso dizer é que li que ela não era negra, que ela havia se pronunciado. E, eu direi isso. E então li que ela era negra. E tudo bem. Qualquer uma das duas coisas estava bem para mim. Isso é com ela. Isso é com ela."
E, claro!, o "arregão" deu a Kamala o seu melhor momento:
"Quero dizer honestamente: eu acho que é uma tragédia que tenhamos alguém que quer ser presidente e que, reiteradamente, ao longo de sua carreira, tentou usar a raça para dividir o povo americano. Sabem? Eu acredito que a grande maioria de nós sabe que temos muito mais em comum do que aquilo que nos separa. E não queremos esse tipo de abordagem que está constantemente tentando nos dividir, especialmente por raça.
E vamos lembrar como Donald Trump começou. Ele possuía terras, ele possuía prédios. E ele foi investigado porque se recusou a alugar propriedades para famílias negras. Vamos lembrar: este é o mesmo indivíduo que colocou um anúncio de página inteira no 'The New York Times' pedindo a execução de cinco jovens negros e latinos que eram inocentes, os 'Cinco do Central Park'. Pegou um anúncio de página inteira pedindo a execução deles. Este é o mesmo indivíduo que espalhou mentiras sobre o local de nascimento do primeiro presidente negro dos EUA. E eu acho que o povo americano quer algo melhor do que isso. Quer algo melhor do que isso. Quer alguém que entenda como eu... Eu viajo pelo nosso país. Vemos um no outro um amigo. Vemos um no outro um vizinho. Não queremos um líder que esteja constantemente tentando fazer os americanos apontarem o dedo uns para os outros. Eu me encontro com pessoas o tempo todo que me dizem: 'Podemos, por favor, apenas ter um discurso sobre como vamos investir nas aspirações, ambições e sonhos do povo americano?" Sabendo que, independentemente da cor das pessoas ou da língua que suas avós falam, todos nós temos os mesmos sonhos e aspirações e queremos um presidente que invista neles, não em ódio e divisão."
Trump ficou perplexo. Restou-lhe acusar Kamala de requentar histórias do passado, mas não teve como negar nenhuma das evidências. A propósito: assistam à série "Olhos que Condenam", na Netflix, sobre esse caso pavoroso do Central Park, acontecido em 1989.
COMENDO GATOS E CACHORROS
O pilar da postulação de Trump é a campanha de ódio que ele move contra os imigrantes. Por que de ódio? Inexiste uma argumentação de natureza técnica, econômica ou política. Não! Seriam todos delinquentes. Repetiu a mentira de que a criminalidade cai em outros países -- citou de novo a Venezuela -- porque os criminosos migram para os EUA:
"Muitos, muitos, milhões de criminosos. Eles [os democratas] permitiram [a entrada de] terroristas. Eles permitiram criminosos comuns de rua. Eles permitiram que pessoas entrassem, traficantes de drogas, entrassem em nosso país, e agora estão nos EUA. E seus países disseram, como a Venezuela: 'Nunca mais voltem, ou nós vamos matá-los'. Você sabia que a criminalidade na Venezuela e a criminalidade em países de todo o mundo diminuiu muito? Você sabe por quê? Porque eles tiraram seus criminosos das ruas e os deram a ela [apontando para Kamala] para colocar em nosso país. (...). O crime aqui está aumentando e nas alturas. Apesar das declarações fraudulentas que eles fizeram. O crime neste país está nas alturas."
Como não tem limites e como não vê fronteira entre a mentira e verdade, saiu-se com esta:
"O que eles [os democratas] fizeram com o nosso país ao permitir que milhões e milhões de pessoas viessem para o nosso país. E veja o que está acontecendo com as cidades Estados Unidos afora. E muitas cidades não querem falar -- Aurora ou Springfield, por exemplo. Muitas cidades não querem falar sobre isso porque estão muito envergonhadas com isso. Em Springfield, eles estão comendo os cachorros. As pessoas que entraram. Eles estão comendo os gatos. Eles estão comendo. Eles estão comendo os animais de estimação das pessoas que vivem lá. E é isso o que está acontecendo no nosso país. E é uma pena!"
Por que elogiei os dois jornalistas?
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Quero receberCorrigiram Trump quando mentiu flagrantemente. Não permitiram que o público fosse enganado -- ou, ao menos, deram a ele a opção de não se deixar enganar. Disse Muir:
"Presidente Trump, como o senhor sabe, o FBI diz que o crime violento em geral está diminuindo neste país"
Restou ao mentiroso responder que o FBI está... mentindo.
Também sobre os imigrantes estarem comendo cachorros e gatos, afirmou Muir:
"Só quero esclarecer aqui: o senhor mencionou Springfield, Ohio. E a ABC News entrou em contato com o prefeito da cidade de lá. Ele nos disse que não houve relatos confiáveis de alegações específicas de animais de estimação sendo prejudicados, feridos ou abusados por indivíduos dentro da comunidade de imigrantes"
Atentem para o diálogo que segue para se tenha noção de até onde vai o biltre:
TRUMP: Bem, eu vi pessoas na televisão.
MUIR: Deixe-me dizer aqui isso...
TRUMP: As pessoas na televisão dizem que seu cachorro foi levado e usado como comida. Então talvez ele [o prefeito] tenha dito isso e, talvez, para um prefeito, seja uma coisa boa para se dizer.
DAVID MUIR: Não estou tirando isso da televisão. Estou tirando do prefeito.
TRUMP: Mas as pessoas na televisão dizem que seu cachorro foi comido pelas pessoas que foram lá.
Esse cara pode ser presidente do EUA.
INVASÃO DO CAPITÓLIO
Muir perguntou a Trump se ele se arrependia de algum comportamento naquele 6 de janeiro de 2021. Assim:
"Temos uma eleição em apenas 56 dias. Quero falar sobre a transferência pacífica de poder -- que, claro, todos nós sabemos, sempre foi uma pedra angular da nossa democracia -- e o papel de um presidente em um momento de crise. Sr. Presidente, em 6 de janeiro, o senhor disse aos seus apoiadores para marcharem até o Capitólio. O senhor disse que estaria lá com eles. O país e o mundo viram o que aconteceu no Capitólio naquele dia. Os oficiais sendo atacados. Assessores na Ala Oeste dizem que o senhor assistiu ao desenrolar dos fatos na televisão do Salão Oval. O senhor enviou tuítes, mas demorou mais de duas horas para enviar aquela mensagem de vídeo dizendo aos seus apoiadores para irem para casa. Há algo de que o senhor se arrependa sobre o que fez naquele dia?"
Sabem o que ele respondeu? Que sua recomendação era para que as pessoas fossem para o Capitólio "pacífica e patrioticamente". No dia em que, aqui no Brasil, fascistoides encaminharam uma proposta para anistiar golpistas, por lá, Trump tratou os invasores do Capitólio como heróis. E, na sequência, claro!, atacou os...Adivinhem!!! Imigrantes.
A tática é rigorosamente a mesma. Na sequência, Trump perguntou quando manifestantes de esquerda serão processados. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Muir insistiu:
"O senhor era o presidente. O senhor estava assistindo a tudo se desenrolar na televisão. É uma pergunta muito simples no momento em que avançamos para outra eleição. Há algo de que o senhor se arrependa sobre o que fez naquele dia? Sim ou não?"
Não. Ele não se arrepende de nada. Disse que avisou a democrata Nancy Pelosy, então presidente da Câmara, e o prefeito de Washington D.C. que haveria um grande evento. E seriam eles os responsáveis pela falta de segurança no Capitólio. Será que vocês já não ouviram isso também por aqui? Lembram-se da tese de que Lula e Flávio Dino, então ministro da Justiça, teriam deixado acontecer a invasão das respectivas sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023?
APOIO A EXTREMISTAS
Coube a Kamala lembrar os discursos de Trump adulando fascistoides e apontar um caminho:
"Eu estava no Capitólio em 6 de janeiro. Eu era a vice-presidente eleita. Eu também era senadora em exercício. Eu estava lá. E, naquele dia, o presidente dos Estados Unidos incitou uma multidão violenta a atacar o Capitólio da nossa nação; a profanar o Capitólio da nossa nação. Naquele dia, 140 policiais ficaram feridos. E alguns morreram. E entendam: o ex-presidente [Trump] foi indiciado e acusado exatamente por esse motivo. Mas essa não é uma situação isolada. Vamos lembrar de Charlottesville, onde havia uma multidão de pessoas carregando tochas tiki, vomitando ódio antissemita, e o que o presidente disse na época? "Havia pessoas boas de cada lado." Vamos lembrar que, quando se tratava dos 'Proud Boys', uma milícia, o presidente disse, o ex-presidente disse: 'Fiquem de prontidão'. Então, para todos os que estão assistindo e se lembram do que foi o 6 de janeiro, eu digo que não precisamos voltar àquilo. Não vamos voltar. Não vamos voltar. É hora de virar a página. (...) Há um lugar em nossa campanha para você. Para defender o país. Para defender nossa democracia. Para defender o Estado de Direito. E para acabar com o caos. E para acabar com a prática de atacar os fundamentos da nossa democracia porque não se gosta do resultado. E que se seja claro sobre esse ponto: Donald Trump, o candidato, disse que, nesta eleição, haverá um banho de sangue se o resultado não for do seu agrado. Vamos virar a página. Não vamos voltar. Vamos traçar um curso para o futuro e não voltar para o passado."
Ela venceu o debate com folga no mundo da racionalidade. Espero que aconteça também nas urnas.
Num dado momento, Kamala disse: "Eu claramente não sou Biden". No debate, definitivamente, não foi.
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