Não usem o 'horror Marçal' para normalizar o bolsonarismo; comigo, não cola
Quais são mesmo males de Pablo Marçal segundo o consenso dos civilizados? É reacionário, primitivo, truculento, deseducado, preconceituoso, desordeiro, autocentrado, autoritário... Em suma, o coquetel de adjetivos que o caracteriza caberia em Jair Bolsonaro. Fala com mais desenvoltura, e há o risco — e não emprego a palavra por acaso — de que seja mais inteligente. As pessoas têm sua percepção, e também expresso a minha. É muito provável que não acredite nas barbaridades que diz. Nesse sentido, ganha mais alguns adjetivos: é cínico, farsante e oportunista. Percebeu que o mercado da extrema-direita e da direita estava sendo monopolizado pelo Beato Salu dos fascistoides, que acabou acreditando na própria mentira. O ex-presidente se considera o inaugurador de uma era.
Marçal percebeu como era fácil tomar a cidadela. O "Mito" quase cai na conversa. Foi preciso que outros o advertissem: "A composição com você é meramente tática; ele quer o seu lugar". Demorou para que entendesse a jogada porque, afinal, o novato vocalizava os seus, como direi?, valores. Cedeu e também passou a desqualificar o arrivista, mas vê que parte considerável do seus fiéis não segue a sua orientação. Pesquisa Datafolha aponta um Marçal mais resiliente do que muitos imaginavam à esta altura do jogo. Estamos a praticamente uma semana da eleição, e ninguém pode cravar que está fora do segundo turno. E seu eleitorado de resistência é formado pelos discípulos do "Capitão".
Por que essas considerações iniciais? Marçal é tão abusado, mesmo para os padrões da extrema-direita, que há certa tentação, aqui e ali, de vê-lo como um elemento "fora do sistema". De fato, o jogo do "coach" é o da disrupção. Ocorre que isso não contrasta com Bolsonaro. Segundo os parâmetros da democracia, o que há de normal ou palatável na atuação do ex-presidente? O fato de o "coach" abalar o establishment do reacionarismo não torna o extremismo bolsonarista algo "próprio do sistema" — do "sistema democrático", entenda-se.
Tenho tal ojeriza a esse Marçal que, sabem todos, defendi desde sempre que nem fosse chamado para participar de debates, uma vez que a lei não impõe a sua presença. Parte considerável de seus votos, estou convicto, decorreu no espaço que teve na imprensa profissional, que ele usou em proveito de sua pantomima e em demérito da democracia. Mais: com uma Justiça eleitoral mais célere e rigorosa, como deveria ser, sua candidatura já teria sido cassada.
Repudio, no entanto, considerações que tentam contrastar o ex-presidente com o candidato do PRTB à Prefeitura com raciocínios concessivos na linha: "Por mais que Bolsonaro seja agressivo e reacionário, ele não chega a ser como Marçal..." Ou: "Ainda que o ex-presidente seja reacionário, respeita ao menos certos padrões da política..."
Sem essa! A diferença que há entre eles é absolutamente irrelevante para a vida democrática, e ambos se fazem e se constroem depredando as instituições, incitando o ódio e apelando à demonização de qualquer política pública ou de estado que mire o bem comum. Os milhares de incêndios criminosos país afora, por exemplo, têm um selo de origem. Não se trata de combustão espontânea ou de tempestades de raios em florestas secas. Alimentou-se no país, durante quatro anos, desde os lugares de poder, de forma deliberada, a cultura da devastação. Não usem Marçal para normalizar Bolsonaro. Não caio nessa. Vamos ver.
BOLSONARO EM GOIÂNIA
Num comício em Goiânia na terça passada de Fred Rodrigues, candidato do PL à Prefeitura da cidade, o ex-presidente atacou de forma miserável o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), seu aliado. A circunstância local: Caiado apoia Sandro Mabel, presidente Federação das Indústrias de Goiás (Fieg), que o governador filiou a seu partido. Bolsonaro e tentou emplacar a candidatura do deputado federal Gustavo Gayer, que pertence à banda "heavy metal" do bolsonarismo. O parlamentar faz Marçal parecer uma normalista do bom senso. É aquele rapaz que disse num podcast que os macacos tem um QI mais elevado do que o dos africanos... Já sugeriu também que Lula foi eleito em razão do analfabetismo de nordestinos, que comparou a galinhas depenadas.
O apoio a Gayer dificultaria ao governador fazer alianças, o que ele conseguiu com Mabel. Sem apoio do governo do Estado, o deputado barulhento desistiu da candidatura. Tanto ele como Bolsonaro apoiam o tal Fred, que não deve chegar ao segundo turno. Fred aparece em quarto lugar nas pesquisas, lideradas por Mabel e por Adriana Accorsi, do PT.
No evento de terça, Bolsonaro se referiu a Caiado nestes termos:
"Nós, na pandemia, fizemos o que tinha que ser feito. Fui contra governadores que falavam 'fiquem em casa, a economia a gente vê depois'. Governador covarde! Governador covarde! O vírus ia pegar todo mundo, não tinha como fugir do vírus ".
Eis o agente da necropolítica durante a devastação provocada pela pandemia. O que diz é uma estupidez, uma insanidade, uma aberração. Cumpre lembrar que a razão principal do distanciamento era achatar a curva de contaminações em razão do colapso do sistema de saúde. Nota à margem: em São Paulo, Bolsonaro impôs a Ricardo Nunes (MDB) uma abjuração: numa conversa com um extremista de direita investigado pela Polícia, o prefeito candidato falou contra a obrigatoriedade da vacina e o distanciamento social. Considero o ato mais vergonhoso da campanha, muito acima da cadeirada e do soco no olho. Trata-se da política da morte, da necropolítica.
Caiado é um homem de direita, mas está no campo da democracia. Médico, fez a coisa certa em Goiás para enfrentar a Covid. Na sequência dos ataques às respectivas sedes dos Três Poderes, foi a Brasília para defender as instituições. Aspirante à Presidência, o governador, no entanto, cometeu o desatino de ir ao ato golpista protagonizado por Bolsonaro em fevereiro na esperança tola de que possa vir a contar com seu apoio para se fazer "o candidato" conservador.
Isso irrita Bolsonaro de vários modos. Em primeiro lugar, não aceita que surjam nomes no seu campo ideológico que não o seu. É evidente que ele sabe que não vai recuperar a elegibilidade. Ao impedir, no entanto, que surjam alternativas, busca conservar o poder do "dedaço". Caso comece a ganhar vulto uma alternativa para enfrentar Lula em 2026, tal pessoa passaria, no campo conservador ou reacionário, a representar o futuro, de que Bolsonaro é passado. Ele teme desesperadamente a obsolescência.
Há mais: Caiado tem seu próprio espaço e sua própria trajetória na direita. Não deve a sua carreira ao arruaceiro. Quer certamente o seu apoio para tentar se tornar candidato, mas não é um pau mandado dos delírios do insano. Então não serve.
BAIXARIA
No comício de Goiânia -- e também na cidade não se vê o Bolsonaro milagreiro dos votos, já que seu candidato está naufragando --, o homem atacou também o candidato Mabel, recorrendo à palavra "rosquinha" com evidente apelo homofóbico, ainda que Mabel não seja gay. E daí? É um dos recursos a que apela para atacar desafetos.
"O candidato da bolachinha e da rosquinha tem vídeo dele elogiando Dilma Rousseff, dizendo que ela foi uma boa gestora..."
E voltaria a empregar "rosquinha", com evidente apelo ao preconceito.
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OLHAR APURADO
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Quero receberFica uma lição a Caiado e a outros conservadores do campo democrático: "solos de guitarra", como na música de Kid Abelha, da racionalidade não vão conquistar o coração do bruto. Ele é quem é. Fora da política do ódio e do atendimento às demandas de sua própria família e daqueles que lhe prestam vassalagem — enquanto defendem, claro!, seus cartórios —, ele nada reconhece. Ora, se Caiado não serve como referência no enfretamento, então dos progressistas, que serve?
O governador de Goiás, no entanto, tem um falha grave aos olhos de Bolsonaro: reconhece as instâncias da democracia — ainda que tenha, é verdade, envergonhado as próprias convicções ao participar daquele ato com golpistas em fevereiro deste ano. Mais: médico que é, dobra-se às evidências da ciência, e Bolsonaro exige abjuração, como fez com que este lamentável Nunes, que cedeu.
CONCLUO
Digam tudo o que for de ruim sobre Marçal, e é quase certo que estarão a falar a verdade. Mas não me venham, com orações concessivas e adversativas, oferecer um Jair Bolsonaro como contraste na extrema-direita. A diferença entre eles é uma só: Bolsonaro tartamudeia a expressão do caos, matéria em que o "coach" é mais eloquente.
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