A absurda Enel e papo liberaloide sobre a eficácia de qualquer privatização
Um temporal intenso e curto na sexta, e lá estavam milhões de paulistanos sem luz. Na manhã desta segunda, ainda eram 537 mil imóveis na Grande São Paulo nessa situação. A concessionária Enel diz que deve restabelecer a energia até esta segunda, mas não parece haver assim tanta certeza.
Com o "EsgoteX" de volta, os reaças resolvem se unir para culpar Lula, acreditem!, pelo problema. Mas por que ele, que não curte privatização nem de parafuso? Ah, porque a legislação e a agência, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), que regulam o setor são federais. Se são... É um despropósito! Fica parecendo que o presidente pode dar um murro na mesa e tomar a antiga Eletropaulo de volta, que foi fragmentada para ser vendida aos pedaços.
A cada vez que leio algo a respeito, lembro o espetáculo indecente que foi a venda do controle da Eletrobras no governo Bolsonaro-Guedes, que mereceu panegíricos encantados da extrema-direita, da direita e da tal "mídia". Para evitar qualquer "ingerência" na empresa, o governo federal — na verdade, a União — restou com 43% das ações, mas com representação no Conselho de apenas 10%. Um escracho e um acinte. Obviamente não se tem notícia de que, no setor privado, um acionista aceitasse tal sub-representação. Trata-se de uma espécie de terceirização do Estado e do bem público. O governo Lula reagiu, levando porrada de "sedizentes" liberais, e o caso ainda está "sub judice" no STF.
O que uma coisa tem a ver com outra? Deixo claro: os "jênios e çábios" tentam nos ensinar por aqui — e também por isso o "liberalismo à brasileira" passou a me causar ojeriza — que tudo o que vem do Estado não presta, está contaminado e faz mal ao Brasil; em contrapartida, o serviço privado já viria com um selo de excelência "ab ovo". Será por isso que o SUS atende quase 80% dos brasileiros? Será que estes se negam a ter a "qualidade" do modelo privado? Tenham paciência!
Fico cá a pensar no modo de privatização da Sabesp, em São Paulo. Já falei e escrevi a respeito. As ações foram vendidas abaixo do valor de mercado, a uma única empresa interessada, sem concorrência, que não tem tradição no setor. A senhora Karla Bertocco, presidente do conselho da Sabesp hoje, era do conselho da Equatorial, a concorrente única que "venceu" o certame. Críticas a esse jeito de fazer as coisas? Nenhuma! Fui dos poucos na grande imprensa, talvez único. Estamos diante da máxima: "Se o setor privado opera, o serviço é bom; se é Estado, não presta". Ainda que a Sabesp fosse, sob controle público, eficiente e rentável.
Sabem por que trago à baila esse debate? Porque o noticiário se torna uma colcha de retalhos de ocorrências, contando a saga da pobre Jennyfer, coitada!, há quatro dias sem luz, com a comida estragando na geladeira. Ou então a de Jefferson, que perdeu tudo o que tinha no freezer do seu mercadinho de bairro. Até pauta poética escapa: sem luz e sem ter como carregar o celular, as pessoas voltam a bater papo...
Quando a coisa se politiza um pouco e se tem uma visão mais abrangente do problema, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e homem do martelo das privatizações, inspirador do "modelo Sabesp" — cujo lema não tem como não ser "se é público, é ruim; se é privado, é bacana" —, liga para a Aneel e cobra providências. Quais providências? Ah, ele quer a caducidade do contrato, o que também faz o prefeito Ricardo Nunes — afinal, há uma eleição em curso —, como se isso pudesse ser feito num estalar de dedos.
Vamos à questão conceitual: a Enel é a prova de que a eficácia não tem nenhuma relação com a natureza pública ou privada da empresa que presta o serviço. O prefeito, em particular, faz um discurso mais condoreiro contra a concessionária — com participação, diga-se, do Estado italiano — porque esta responsabiliza, em parte, a Prefeitura pelo atraso na prestação de serviço, já que parte considerável do problema se deve à queda de árvores, cuja resposta — com a devida remoção — é atribuição da Prefeitura. Esta, por sua vez, acusa a empresa de demorar para cortar a energia dos locais atingidos. E assim se caminha e impreca no escuro.
A Enel é um caso escancarado de gestão privada que deu e está dando estupidamente errado, o que evidencia a tese furada dos falsos liberais brasileiros sobre a natural eficiência de serviço público prestado por privados, em contraste com a suposta ineficiência do ente estatal.
Ou não foi essa a tese que embalou — no discurso oficial ao menos — a transferência da gestão da Sabesp para uma empresa privada e a excrescência operada na Eletrobras, aplaudida pelos idiotas, segundo a qual, em matéria de bem público, 43% podem valer 10%?
"Tá vendo como você nunca foi um liberal, Reinaldo?" É... Do tipo que tem havido por aqui, com efeito, não. Nunca tive a má-fé de confundir liberalismo com assalto ao Estado e compadrio entre bacanas.
ENCERRO
Ah, sim: eu também acho que não dá mais para tolerar a Enel. Que o governo federal veja até onde por ir -- e as ações são limitadas -- para romper o contrato. E que os prosélitos do "privatismo" tenham um pouco mais de pudor, não é? E não! A ruindade da Enel não torna todo estatismo eficaz por natureza só porque ela não presta.
Chegou a hora de iluminar um pouco esse debate. Nem que seja com uma vela.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.