Reinaldo Azevedo

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Opinião

'Pax' para Presidência da Câmara revela organismo doente, não uma evolução

Existe um lugar em que juntar guelfos e gibelinos, os Capuleto e os Montecchio, romanos e cartagineses, gregos e troianos, além dos admiradores e dos odiadores de coentro, é, mais do que possível, desejável. Para os convivas ao menos.

Dante, um guelfo encrenqueiro, não teve imaginação para juntar esses opostos inelutáveis no inferno, no purgatório ou no paraíso — ainda que tenha se vingado de alguns adversários na Divina Comédia. E nada de cena de sangue num bar de Verona! Não se verá Aníbal com ódio nos olhos nem algum Catão a gritar: "Delenda Carthago!" Aquiles, o grego, não arrastará o corpo de Heitor por 12 dias à volta do túmulo de Pátroclo, seu amigo íntimo, que havia sido morto em batalha pelo troiano. Até os opostos do coentro aceitam o diálogo, o que é ainda mais inacreditável

Será o Congresso brasileiro, em particular a Câmara, o "locus" de um espetacular poema de Mário Faustino, maior artesão da poesia brasileira no século passado? Assim:
Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado.

Vocês certamente não confundem o Parlamento brasileiro com a cidade "exata, aberta, clara" de Faustino. Mas não há dúvida de que, em determinadas circunstâncias, os contrários ali se conciliam. E isso, sob certo ponto de vista, é mais um problema do que uma solução.

Nesta terça, Arhur Lira (PP-AL), anunciou seu apoio à candidatura de Hugo Motta (Republicanos-PB) para a Presidência da Câmara. Elmar Nascimento (União-BA) e Antônio Britto (SD-BA) ainda resistem, mas, por ora ao menos, não parece que possam reunir forças para se opor.

Ao fazer seu anúncio, Lira poetizou — não como uma Faustino, é certo:

"Depois de muito conversar e, sobretudo, de ouvir, estou convicto de que o candidato com maiores condições políticas de construir convergências no Parlamento é o deputado Hugo Motta, nome que demonstrou capacidade de aliar polos aparentemente antagônicos, com diálogo leveza e altivez. Estou certo, repito: estou certo, de que Hugo Motta — deputado experiente em seu quarto mandato e que viveu e vive de perto os desafios que perpassam a nossa gestão — vai saber manter a marcha da Câmara dos deputados, seguindo esta mesma receita, que tantos bons frutos deu ao Brasil: respeito ao plenário, cumprimento da palavra empenhada e a busca incessante, mais uma vez, pelo que nos norteia, que é convergência".

Que coisa! Davi e Saul reconciliados! Aquiles e Heitor trocando impressões sobre a eternidade! O Deus crucificado dando um beijo no rosto de Judas, o enforcado...

Daqui a pouco, as bancadas do MDB, do PL e do PT farão reuniões para saber que rumo tomar. Não há dúvida nenhuma sobre as duas primeiras. E me parece evidente que o PT fará o mesmo. E se juntarão às legendas que já declararam apoio a Motta: Republicanos e PP.

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A decisão de Lira de criar a comissão especial para debater o aloprado projeto de lei da anistia aos golpistas, retardando a tramitação, atende, obviamente, à demanda dos progressistas. É a tal "convergência".

Essa união de contrários não traduz a utopia faustiniana. Ela dá conta de qual é o verdadeiro centro de gravidade dos Poderes da República. Se, um dia, tal centro esteve no Executivo, agora não está mais. À medida que o Congresso açambarcou parte considerável do Orçamento da União — mais de 20% do que resta de recursos para gastos discricionários —, já não se trata de disputar o comando desse Poder por meio de um projeto político específico ou de uma pauta, sei lá, reformista. Os partidos e os parlamentares se organizam para se ver representados na verdadeira máquina financiadora da própria atividade política. E, no entanto, os senhores parlamentares não precisam responder pelo resultado.

Essas "disputas" feitas de unanimidades, ou quase, estão longe de indicar que os adversários decidiram concordar com o essencial para, digamos, o desenvolvimento do país. Não há uma pauta que una, como se sabe, o PL e o PT. Disputarão visões de mundo distintas e se estranharão em projetos específicos. No comando das respectivas Mesas do Congresso, no entanto, a conciliação dos contrários acaba virando uma imposição. O risco é a irrelevância num aparelho que se transformou numa espécie de máquina sindical, da qual muito pouco se exige. O "acordo" deixa de ser uma questão do querer ou de escolha.

Um estrangeiro que ignorasse os embates da política brasileira e que visse o principal partido do governo unido ao principal partido de oposição na defesa de um nome para a Presidência da Câmara iria pensar: "Eis aí. O Brasil encontrou o caminho da convivência pacífica dos opostos; une-os a institucionalidade".

E, no entanto, não é assim. Essa conciliação é só sinal de uma hipertrofia do Legislativo que demandou até a intervenção do Supremo porque a destinação da dinheirama das emendas ignorava sem solenidade a Constituição. Essa "pax", só aparente, é um sintoma de um organismo doente, não uma evolução.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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