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Rubens Valente

Sem abate-teto, BNDES acumula 68 supersalários acima de R$ 60 mil

Fachada do BNDES no Rio de Janeiro - Bernard Martinez/Folhapress
Fachada do BNDES no Rio de Janeiro Imagem: Bernard Martinez/Folhapress

Colunista do UOL

06/07/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Após decisão judicial, BNDES divulga pela primeira vez os salários detalhados dos seus funcionários
  • Dois economistas, que entraram no banco em 1992 e 1993, recebem cerca de R$ 78,1 mil brutos por mês, ou R$ 52 mil líquidos
  • O BNDES afirma que não está submetido à regra do "abate-teto", que impede salários acima do pago a um ministro do STF, de R$ 39,2 mil

Ao final de uma disputa judicial de sete anos e após o último recurso no STF (Supremo Tribunal Federal), o BNDES enfim passou a divulgar os valores dos salários de seus 2.642 funcionários. Levantamento feito pelo UOL revela que 68 empregados "sem função", ou seja, que não ocupam cargos de confiança, receberam acima de R$ 60 mil brutos por mês nos últimos três meses.

O levantamento mostra ainda que um grupo de pelo menos 82 empregados recebe valores muito acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil correspondente ao salário de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e aplicado a outros servidores da União. O BNDES afirma que o chamado "abate-teto", mecanismo que impede o valor acima do teto, não se aplica ao seu caso porque é uma estatal "não dependente" da União.

Até então, e desde 2017, o banco divulgava apenas os salários do presidente, que hoje é Gustavo Henrique Moreira Montezano (R$ 82,7 mil), dos oito diretores (de R$ 77 mil a R$ 81 mil) e conselheiros. Em 2013, o procurador da República no Rio de Janeiro Carlos Alberto Bermond Natal ajuizou uma ação civil pública para obrigar o banco a abrir todos os salários na internet. O banco recorreu até decisão final do STF, em fevereiro passado.

Agora é possível saber que entre os servidores com supersalários estão pelo menos 73 "sem função atribuída". São 19 analistas de sistema, 18 engenheiros, 16 advogados, 15 economistas e 5 administradores que recebem acima de R$ 40 mil líquidos. Esse grupo recebeu mensalmente, considerando os valores de abril e maio, R$ 5 milhões brutos, ou R$ 3,3 milhões líquidos. A cada ano, sem contar o 13º salário, serão R$ 60 milhões e R$ 39 milhões, respectivamente, só com esse grupo de servidores.

Os salários vão às alturas por três principais motivos: ATS (Adicional por Tempo de Serviço), incorporações que são, segundo o banco, "valores incorporados à remuneração mensal por razões legais ou judiciais, ou ainda por previsão em Plano de Cargos e Salários específico, em razão do exercício de função de confiança por certo período de tempo", e gratificações, que correspondem a 25% sobre a remuneração mensal do empregado.

Do grupo de 73 empregados, 27 recebem mais de R$ 70 mil brutos por mês. Dois economistas, os campeões no quesito salário, recebem R$ 78,1 mil mensais. Eles entraram no banco em 1992 e 1993. Todos os meses caem nas suas contas R$ 52 mil líquidos, já livres de qualquer imposto ou desconto. Eles ganham até mais do que três diretores do banco.

Outro grupo de 41 empregados recebe de R$ 60 mil a R$ 68 mil brutos, o que permite uma remuneração líquida que vai de R$ 40 mil a R$ 45 mil.

Dos 73 empregados, a maioria (60%) é formada por homens, 44. Do total, quatro entraram no banco na década de 70, 14 na década de 80 e outros 55 têm menos de 30 anos no banco, pois entraram na instituição de julho de 1992 a setembro de 1998.

Legalidade

O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) recorre à Constituição para afirmar que o "abate-teto" não se aplica à instituição. O parágrafo 9º do artigo 37 diz que a Carta se refere, ao tratar de vencimentos salariais, às empresas públicas e às sociedades de economia mista e suas subsidiárias "que receberem recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral", o que não seria o caso da instituição.

O banco afirma que "é uma empresa estatal 'não dependente', pois não depende de recursos do Tesouro Nacional para arcar com seus gastos de pessoal e nem seus custeios em geral. Suas despesas são bancadas por seus próprios resultados".

A discussão sobre o que são estatais "dependentes e não dependentes" passa pelo TCU (Tribunal de Contas da União). Em maio de 2019, o plenário do tribunal acolheu um relatório do ministro Vital do Rêgo e decidiu, segundo texto distribuído à imprensa pelo tribunal, que, "para fins de aplicação de regras de finanças públicas, a conceituação de empresa estatal federal dependente é aquela disposta na LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal], ou seja, cuja dependência resta caracterizada pela utilização de aportes de recursos da União para pagamento de despesas com pessoal ou de custeio em geral ou de capital, desde que, neste último caso, os recursos não sejam provenientes do aumento da participação acionária da União na respectiva estatal".

Para verificar se cada estatal se encaixa ou não nesse conceito, o TCU instou a Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais), vinculada ao Ministério da Economia, a adotar "medidas voltadas a identificar as estatais que se encontram na situação de dependência, a fim de assegurar que tais empresas se abstenham de pagar PLR [Participação nos Lucros e Resultados] a seus funcionários, bem como remunerações acima do teto constitucional".

Em relatórios anteriores já encaminhados ao TCU, a Sest incluiu o BNDES na relação de instituições "não dependentes".

Em abril do ano passado, outra decisão do TCU determinou que a Sest fizesse, em 60 dias, a identificação das estatais "consideradas formalmente 'não dependentes', mas que receberam aportes de capital da União nos últimos cinco anos" e que, por isso, "deveriam ser classificadas como dependentes".

A Sest entrou com um recurso, denominado "pedido de reexame", contra o acórdão, ainda pendente de julgamento pelo TCU. Com isso, as audiências que a Sest poderia promover estão suspensas. Ao mesmo tempo, o relator Vital do Rêgo decidiu de forma cautelar proibir a Infraero, estatal do setor aéreo, de fazer pagamentos acima do teto constitucional.

Pandemia

No contexto da crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus, surgiu a discussão sobre redução dos salários dos servidores públicos, como poderia ser aventado também a partir da revelação dos supersalários do BNDES. Na iniciativa privada, uma medida provisória do presidente Jair Bolsonaro permitiu corte de até 70% nos salários de trabalhadores que tiveram redução de jornada durante a pandemia. A medida teve impacto em mais de 11,5 milhões de trabalhadores.

Especialistas ouvidos pela coluna afirmaram que decisões dessa natureza, se tomadas pelos gestores públicos, seriam inconstitucionais e ilegais, mesmo que os servidores quisessem.

Falando sobre o assunto em tese, sem conhecer os salários do BNDES, o advogado constitucionalista Leonardo Vizeu, doutor em direito constitucional pela UFF (Universidade Federal Fluminense), afirmou que a Constituição traz o princípio da irredutibilidade salarial e ao mesmo tempo permite que, uma vez extrapolado o limite de gastos de pessoal, sejam feitas demissões na área pública. A regra, contudo, foi pensada para um momento de normalidade, bem diferente de uma pandemia, segundo o professor.

"Chegamos a qual situação de impasse? Estamos numa situação excepcional na qual se está extrapolando o limite de teto mas não há como reduzir salários. Estamos numa 'escolha de Sofia'. Para preservar a renda dos servidores, inexoravelmente o gestor teria que demitir. Seria muito menos danoso para os servidores que eles permitissem a redução salarial. Mas isso só com uma Emenda Constitucional, já que a Constituição não permite a redução salarial. O que seria menos danoso para um servidor público, que é um trabalhador também, em época de pandemia? Ter uma redução temporária. Para isso, teria que haver uma Emenda Constitucional. Isso preservaria o emprego."

O advogado Carlos Henrique Jund, especializado em direito administrativo, disse que não há condições para uma redução de salários. "Isso deveria ser discutido dentro do princípio da irredutibilidade de vencimentos, que o Supremo acabou de julgar nos últimos dias e vetou esse tipo de possibilidade."

No último dia 24, o STF decidiu, por sete votos a quatro, impedir que Estados e municípios endividados reduzam os salários de servidores públicos.

Sobre o teto salarial dos servidores públicos, Jund disse que "já existe uma formação jurisprudencial sobre esse assunto bastante significativa". "O que precisa ter na realidade hoje em dia é uma fixação legislativa um pouco mais consistente. Se é que o legislador quer isso, porque os legisladores deveriam estar vinculados a essas limitações e não estão, se contarmos as verbas de gabinete que têm caráter indenizatório".

"Daí que a gente entra num círculo sem saída. Quem teria que mudar isso e contextualizar dentro de um padrão de razoabilidade, de boa-fé, de moralidade, é o próprio beneficiado. Não parece haver interesse no Executivo e no Judiciário na medida em que vão ter que mudar os vencimentos deles mesmos. Aí que está o nó do problema. O STF tem algumas questões colocadas na pauta sobre isso mas nunca também definiu definitivamente essa questão. O Estado brasileiro acabou virando isso. E se não tiver ninguém que estabeleça um critério de delimitação, tende a avançar cada vez mais."

Associação

O presidente da AFBNDES (Associação dos Funcionários do BNDES), que representa cerca de 2 mil funcionários do banco, o economista Arthur Koblitz, disse que a instituição, a exemplo do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, não está sujeita ao teto salarial, mas foi a primeira a divulgar os salários.

"A lógica é que o banco é uma empresa lucrativa e o dinheiro do BNDES trabalhou muito tempo para fazer superávit nas contas do governo. O BNDES é uma empresa altamente lucrativa. Oitenta por cento dos seus empregados têm nível superior e essas pessoas são disputadas dentro do mercado de trabalho. O BNDES paga bem [sim], mas é no patamar de uma Petrobras, de um TCU, de um Banco Central. O BNDES é parte do funcionalismo púbico. Mas ele destoa, ele paga uma coisa excepcional? Não. É uma realidade com que todas as instituições se defrontam."

O presidente da AFBNDES mencionou que os salários médios pagos aos empregados do banco, "se comparados aos de outras instituições da elite do funcionalismo público como TCU, CGU e Banco Central, ou outras estatais como a Petrobras, estão dentro da média". Em muitos cargos de chefia, os empregados em bancos privados ganhariam bem mais, segundo o economista, mencionando que, enquanto o presidente do BNDES recebe R$ 82 mil mensais, "o diretor-presidente do Itaú Unibanco recebeu R$ 46 milhões em 2018".

O valor foi divulgado pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) no ano passado. O BNDES tem outro perfil, não tem agências espalhadas pelo país. É um banco público que atua no financiamento de empresas, empreendedores e entes públicos.

Segundo Koblitz, "mais de 95%" dos empregados do BNDES ganham abaixo do teto salarial. Um esforço de economia durante pandemia, para ele, passaria pela redução do número de diretorias, que chegou a ser apenas quatro "e agora no governo Bolsonaro são dez diretores externos", ou seja, contratados fora da instituição com salário mensais em torno de R$ 70 mil brutos. "O banco nunca chegou a esse patamar, iniciado no governo Temer, e com isso vêm os assessores externos dos diretores, tudo isso é um gasto que não havia."

Koblitz entende que uma redução de salários durante a pandemia seria, além de ilegal, "um discurso populista e que quer tirar o foco do que realmente é essencial". "O que para nós está clara é a subutilização do BNDES nessa crise. O banco pode fazer muito mais e não fazer incomoda os servidores. O banco foi fundamental na crise de 2008 e ao longo de 2009. Isso sim é que preocupa uma parte do banco. Ele tinha que estar coordenado com os bancos públicos, pegando as linhas do banco de capital de giro, financiamento de investimentos, junto com Banco do Brasil e Caixa, o que daria uma capilaridade."

Posição do BNDES

Em resposta às dúvidas encaminhadas pela coluna sobre os valores dos salários, o BNDES informou que "existem diversos fatores que justificam salários em qualquer organização, inclusive e principalmente o tempo de casa". "O último concurso público ocorreu em 2012, há oito anos. A média etária do banco é de 44 anos e a média de tempo de casa é de 14 anos. Este é o fator preponderante para os atuais salários praticados no BNDES. O somatório dos adicionais por tempo de serviço (ATS), quando atinge valores maiores, corresponde ao elevado tempo de casa do profissional em questão."

Sobre os valores praticados no mercado, o BNDES afirmou que "é a primeira empresa pública federal a publicar tais dados de maneira individualizada. Logo, não temos conhecimento sobre os salários praticados nos demais bancos públicos". "Cabe ressaltar que as empresas privadas também não fazem a divulgação dos salários de seus funcionários nem de seus planos de cargos. Há exceção nas companhias abertas (públicas ou privadas) que, por obrigação legal, divulgam o total anual pago a seus dirigentes, assim como uma média mensal estimada."

A respeito de possível redução dos salários por ocasião da pandemia do novo coronavírus, o BNDES disse que "está engajado e já lançou uma série de medidas que estão ajudando o país no combate à crise econômica causada pelo coronavírus". "A legislação vigente não permite redução de salários, sem que haja redução de jornada de trabalho. Todos os funcionários do banco estão trabalhando em home office, em tempo integral, e, por isso, não houve redução de jornada nem redução de salários."

Número deve ser maior

Embora a coluna tenha separado 82 casos de supersalários no BNDES, o número total de vencimentos acima do teto deve ser muito maior. Isso porque o teto constitucional é de R$ 39,2 mil brutos, enquanto o levantamento feito pela coluna considerou apenas os valores acima de R$ 39,2 mil líquidos. Os valores brutos não aparecem somados no sistema de divulgação do banco. Assim, para se chegar ao número correto de servidores acima do teto seria necessário somar, caso a caso, boa parte dos salários dos 2.642 funcionários do banco.