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Rubens Valente

Fiscais do Ibama descreveram "força aniquilada" durante gestão de Salles

Hugo Loss, então coordenador de operações de fiscalização do Ibama, em Brasília, durante operação no sul do Pará em 2020 - Álbum de família
Hugo Loss, então coordenador de operações de fiscalização do Ibama, em Brasília, durante operação no sul do Pará em 2020 Imagem: Álbum de família

Colunista do UOL

07/07/2020 12h08

A parte inédita mais reveladora da ação civil pública ajuizada nesta segunda-feira (6) por procuradores da República para pedir o afastamento do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, está na página 68 da peça, que tem 128 páginas. Dois dos principais responsáveis pelas operações de fiscalização do Ibama contra crimes ambientais narraram, pela primeira vez, as dificuldades e pressões enfrentadas pelo setor durante o governo Bolsonaro.

Os depoimentos foram tomados por videoconferência pelo Ministério Público Federal em maio passado, um mês depois que Salles e o presidente do Ibama, Eduardo Bim, exoneraram Renê Luiz de Oliveira do cargo de coordenador-geral de fiscalização e Hugo Ferreira Loss Netto da coordenação de operações do Ibama.

Ambos servidores de carreira, eles atuaram por mais de um ano à frente do setor durante o governo Bolsonaro. Foram sacados dos cargos após uma operação para reprimir garimpo ilegal em terras indígenas no Pará ter sido divulgada pelo programa Fantástico, da TV Globo. Mensagens por telefone entregues dias depois pelo ex-ministro Sérgio Moro (Justiça) à Polícia Federal mostram que Bolsonaro pessoalmente cobrou explicações sobre a operação. Como a coluna divulgou em junho, a portaria de exoneração de Oliveira foi assinada por Salles no mesmo dia da cobrança de Bolsonaro, 22 de abril, embora só publicada dias depois no "Diário Oficial".

Segundo os procuradores, "a irresignação da Presidência motivou que o requerido, ministro do Meio Ambiente, efetivamente exonerasse toda a cadeia de servidores responsável, no Ibama, pelo planejamento de atividades de fiscalização: o diretor de Proteção Ambiental, o coordenador-geral de Fiscalização e, depois, por meio do Presidente do Ibama, o coordenador de Operações de Fiscalização, a despeito do sucesso até então obtido nas atividades fiscalizatórias de 2020".

Oliveira é considerado pelos seus pares um dos mais importantes nomes da fiscalização do Ibama, tendo trabalhado no setor durante três governos (Dilma, Temer e Bolsonaro). Como coordenador da área, foi o responsável pela organização e planejamento das principais operações de repressão aos crimes ambientais na Amazônia nos últimos quatro anos.

Ouvido pelo Ministério Público Federal em maio, ele explicou que, de abril a agosto de 2019, houve "uma redução enorme" na destruição de equipamentos flagrados pelos fiscais em crimes contra o meio ambiente. A prática de destruir o maquinário usado em atividades ilegais, amparada por um decreto de 2008, foi atacada diversas vezes por Bolsonaro. De acordo com Oliveira, as destruições diminuíram porque os fiscais temiam sofrer perseguição dentro do governo.

"Gerou retração nos fiscais, que ficaram com receio de retaliações. Para mim, existem três formas de uma força ser aniquilada. A primeira é tirar dinheiro. A segunda é desestruturar de alguma forma, como, por exemplo, não nomear cargos estratégicos ou nomear gente sem afinidade com a causa. A terceira é gerar constrangimento, fazer baixar a guarda de quem tá na linha de frente, no caso os fiscais. As declarações das autoridades criaram uma força antagônica que causa medo ou insatisfação, levando a um estágio de baixa autoestima e consequente baixa na produtividade. É o desestímulo de forma geral", disse Oliveira aos membros do MPF.

'Movimentação dos envolvidos'

A investigação dos procuradores incluiu a localização de um ofício, assinado por Oliveira em 25 de agosto de 2019, pelo qual ele alertou a presidência do Ibama e o Ministério do Meio Ambiente a respeito da redução drástica de pessoal da fiscalização em ações de campo.

Na área de fiscalização ambiental, disse Oliveira, houve redução de cerca de 45% do número de agentes ambientais federais "portariados", ou seja, designados para uma missão de campo. Desse total, "cerca de 25% podem se aposentar a qualquer momento (abono permanência)".

Além disso, apontou Oliveira, a média de idade dos agentes é de 50 anos, em 57% dos servidores havia sobrepeso e 73% tiveram situação física considerada regular, "o que pode indicar dificuldades para execução de trabalhos que dependem de longas caminhadas e esforço físico". Em uma nota técnica de 2019, o setor apontou a necessidade de contratação de pelo menos 1,1 mil analistas ambientais.

De acordo com o Ministério Público Federal, as demandas contidas no ofício "foram simplesmente ignoradas pelo demandado [Ricardo Salles]".

Em seu depoimento, o ex-coordenador Loss falou sobre as circunstâncias das exonerações dos cargos de confiança, em abril. "No curso das operações nas terras indígenas Ituna-Itatá, Apyterewa e Trincheira Bacajá a gente percebeu, pela imprensa, uma movimentação muito grande dos envolvidos nos ilícitos que a gente estava investigando junto ao Ministério do Meio Ambiente e à Presidência da República. A gente não sabia se essa movimentação era pela nossa saída, pela paralisação das operações. Não sabíamos. Mas isso atrapalhou bastante. Começamos a ficar receosos e tivemos que blindar as operações."

Os procuradores da República apontaram que desde o início de 2019 "testemunha-se um intenso recrudescimento da violência em face dos fiscais ambientais do Ibama e do ICMBio [...]. Tal circunstância possui relação direta com declarações de autoridades públicas constituídas que depreciam o trabalho da fiscalização ambiental e colocam os fiscais como alvos dos transgressores da lei. Com tais declarações, fabrica-se um ambiente de pressão externa demasiado hostil àqueles que operam na fiscalização".

Ainda antes de tomar posse, Salles disse que criaria um mecanismo no Ibama que poderia "revisar e até anular" multas ambientais. Numa entrevista à "Folha de S. Paulo", disse que há "uma proliferação das multas" e que muitas delas seriam aplicadas por "caráter ideológico". Outras declarações no mesmo sentido ocorreram ao longo do ano de 2019.

Segundo o Ministério Público Federal, "os resultados do desmonte e do discurso contra a fiscalização apareceram cedo. Taxas de desmatamento escalando, as queimadas consumindo milhares de quilômetros quadrados de floresta e, de acordo com dados do próprio Ministério, o Ibama aplicou um terço a menos de multas a infratores ambientais em 2019 do que no mesmo período do ano anterior".

Meses sem superintendente

Em outro ponto inédito da ação civil pública, os procuradores detalharam como Salles deixou superintendências do órgão no Estado por meses inteiros sem gestor. Em fevereiro de 2019, Salles exonerou 21 superintendentes nos estados. Para concluir a substituição com o novo nome, contudo, Salles gastou 15 meses no caso de Pernambuco, 13 meses nos casos de Goiás e Amapá, oito meses no Maranhão e em Roraima, seis meses em Minas Gerais, Amazonas e Ceará, onde houve duas substituições em um ano e meio, e assim por diante.

"Veja-se que o período sem gestão regular oscilou entre 3,5 e 15 meses, havendo Superintendências que, até hoje, não tiveram seus respectivos chefes nomeados, o que denota a falta de compromisso e o descaso do Ministro do Meio Ambiente com a proteção ambiental", escreveram os procuradores.

"A omissão em apontar tempestivamente titulares para referidos cargos viola o dever inerente à função de ministro de assegurar o funcionamento devido de autarquias vinculadas à pasta - no caso, do IBAMA. A violação é especialmente gravosa pelas citadas circunstâncias estruturais do órgão, que, para além do quadro reduzido de servidores, enfrentou - e em alguns casos ainda enfrenta - um vácuo de direção, de chefia e, portanto, de condução administrativa estratégica. Não por acaso, no ano de 2019, o IBAMA lavrou o menor número de autos de infração dos últimos 20 anos por crimes contra a flora, a despeito do desmatamento recorde no país, consoante já apontado nesta ação."

'Viés político-ideológico'

Ajuizado nesta segunda-feira (6), o pedido de afastamento de Salles do cargo de ministro ainda não foi julgado pela Justiça Federal do DF. Antes Salles deverá ser ouvido. Frequentador das redes sociais, Salles não havia se posicionado publicamente sobre a ação civil até o fechamento deste texto.

Em nota enviada ao UOL nesta segunda-feira (6), a assessoria do Ministério do Meio Ambiente afirmou que "a ação de um grupo de procuradores traz posições com evidente viés político-ideológico em clara tentativa de interferir em políticas públicas do governo federal". Segundo a pasta, as alegações contra Salles "são um apanhado de diversos outros processos já apreciados e negados pelo Poder Judiciário, uma vez que seus argumentos são improcedentes"