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Rubens Valente

Em relatório, Conselho de Mourão vê "países críticos" e cita a França

Hamilton Mourão, vice-presidente, à frente de um militar que bate continência - Evaristo Só/AFP
Hamilton Mourão, vice-presidente, à frente de um militar que bate continência Imagem: Evaristo Só/AFP

Colunista do UOL

08/12/2020 04h02

Resumo da notícia

  • Obtidos pelo UOL, quatro relatórios e uma carta do Conselho da Amazônia revelam a agenda internacional do órgão presidido pelo vice-presidente
  • Documento diz que a França integra o grupo de países que manifestaram publicamente "opiniões desfavoráveis às políticas brasileiras para a Amazônia"
  • Especialistas questionam plano de governança para a retomada do Fundo Amazônia e dizem que citação à França "é no mínimo deselegância diplomática"

Um conjunto de quatro relatórios do CNAL (Conselho Nacional da Amazônia Legal) e uma carta encaminhada à União Europeia, obtidos pelo UOL, detalham os principais pontos da agenda internacional para a Amazônia do órgão presidido pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão.

Em um dos documentos, o órgão cita um grupo de "países críticos", entre os quais a França, como "governos que manifestaram publicamente, sobretudo no último ano, opiniões desfavoráveis às políticas brasileiras para a Amazônia". "O Governo francês, por exemplo, destacou-se no contexto dos incêndios florestais de 2019", diz o relatório.

As prioridades do CNAL são tratadas em quatro "Relatórios de Situação", datados de 7 de maio, 22 de maio, 6 de junho e 24 de novembro e produzidos pela Subcomissão de Cooperação Internacional do órgão, formada por representantes de ministérios. Ela se reuniu, até 19 de novembro, 26 vezes.

Além disso, em 10 de agosto o governo brasileiro recebeu uma carta do embaixador Ignacio Ybañez, chefe da delegação da União Europeia no Brasil, sobre os programas de cooperação em andamento e futuros com o Brasil. Dois meses depois, o governo Bolsonaro respondeu com uma carta assinada pelo coordenador da Subcomissão no CNAL, Demétrio Bueno Carvalho, diretor-adjunto da ABC (Agência Brasileira de Cooperação), com um resumo de suas prioridades.

Documento diz que retomada do Fundo Amazônia é uma "ação imediata"

Capa do relatório de 24.11.2020 do Conselho Nacional da Amazônia, presidido por Mourão, sobre cooperação internacional e meio ambinte - Reprodução - Reprodução
Capa do relatório de 24.11.2020 do Conselho Nacional da Amazônia, presidido por Mourão, sobre cooperação internacional e meio ambinte
Imagem: Reprodução

Os documentos mencionam como "ações imediatas" do órgão presidido por Mourão: a retomada do Fundo Amazônia - suspenso desde o ano passado após suspeitas infundadas levantadas pelo ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) -, a formulação de um novo "novo projeto regional" para a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), a criação de um "plano de comunicação social do CNAL", o acompanhamento da execução do Programa Floresta +, que foi elaborado durante governos anteriores e assinado neste ano, e a "identificação de fontes de financiamento internacional", entre outras medidas.

O UOL submeteu os documentos a três especialistas em meio ambiente e Amazônia. A citação aos "Países críticos" aparece no relatório de 22 de maio na lista dos "stakeholders de interesse geral", isto é, as partes interessadas ou impactadas de alguma forma pelos trabalhos do CNAL.

"A França é citada como exemplo de 'país crítico'. E o Reino Unido como um apoiador da iniciativa GCF ['Green Climate Fund']. Uma subcomissão internacional do CNAL, que discute cooperação, considerar um país como 'crítico' tem um peso diplomático importante. Acho que é no mínimo uma deselegância diplomática, porque está registrado como 'país crítico' e num documento oficial. Claro que tem todo um histórico por trás disso", disse o advogado Eugênio Pantoja, diretor de Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), uma organização científica e não governamental que atua desde 1995.

Trecho de documento do Conselho da Amazônia que menciona "países críticos" e a França - Reprodução - Reprodução
Trecho de documento do Conselho da Amazônia que menciona "países críticos" e a França
Imagem: Reprodução

No ano passado, após críticas do presidente francês, Emmanuel Macron, sobre o aumento das queimadas na Amazônia, o presidente Jair Bolsonaro ofendeu a primeira-dama francesa, Brigitte Macron, e depois apagou o comentário numa rede social. "O que eu posso dizer? É triste, é triste. Mas é triste, em primeiro lugar, para ele [Bolsonaro] e para os brasileiros. Eu penso que as mulheres brasileiras têm, sem dúvida, vergonha de ler isso de seu presidente", respondeu o presidente francês na época.

Para Pantoja, há pontos positivos nos relatórios, como a própria disposição do CNAL de dialogar em busca da cooperação internacional. Porém, há trechos que "contrariam um pouco o que tem sido discutido".

"O primeiro ponto é o Fundo Amazônia. Eles [governo] propõem a retomada do FA, porém, quando se olha a análise dos 'stakeholders' [partes interessadas] e a distribuição de atribuições e competências dos órgãos, há uma espécie de substituição da governança que se tem hoje no FA. E afastam a possibilidade de participação da sociedade civil, o que contraria recomendações tanto da Alemanha quanto da Noruega", disse Pantoja.

Para o diretor do IPAM, um aspecto importante é saber a capacidade do CNAL de tirar do papel o que o órgão chama de ações prioritárias. "Grande parte do que está se propondo [nos relatório] no escopo de atuação do CNAL só vai ter efetividade se os ministérios implementarem. Uma avaliação que faço é que Mourão tem, na cadeira de presidente do Conselho, alguns diálogos abertos com a iniciativa privada, com a sociedade civil, porém a efetivação de todas essas deliberações só vai ocorrer pela ação dos ministérios. O CNAL não tem a competência de fazer essas ações", pontua o diretor do IPAM.

"O CNAL parece que fica mais no âmbito da articulação. Tem as ideias, mas não tem os braços e pernas para executar. O Conselho acaba sendo um local mais de apaziguamento de ânimos do que de algo que vai ter execução prática. Em nenhum momento o governo preparou algo mais estruturado para a Amazônia. Deixaram de revisar e concluir o plano de desmatamento E não há nada proposto que possa substituir um plano nesse sentido. Quais são os objetivos, qual é a visão estratégica para a Amazônia? Não temos arranjo de governança, não tem relação com sociedade civil, com os estados. Sem isso, dificilmente o governo vai ter os instrumentos e a legitimidade para atuar em políticas publicas que construam algo positivo", disse o diretor do IPAM.

Brasil deixou em 2019 dívida de R$ 4,5 milhões à organização latino-americana

A importância que o governo Bolsonaro pretende dar à OTCA, sinalizada várias vezes como prioridade nos relatórios do Conselho, esbarra num problema prático: o Brasil devia, em outubro, cerca de R$ 4,5 milhões em contribuições atrasadas à organização, segundo o próprio CNAL.

"Foi também abordada, com a participação do Mecon [Ministério da Economia], a situação do pagamento da contribuição obrigatória do Brasil à OTCA relativa a 2019. O Mecon prestou esclarecimentos com a expectativa positiva de aprovação de projeto de lei até o final de 2020, que permitirá o pagamento remanescente daquela contribuição, equivalentes a cerca de US$ 800 mil dólares", diz o relatório da subcomissão do CNAL sobre uma reunião ocorrida no órgão em 8 de outubro.

A OTCA foi criada a partir de um tratado internacional assinado em julho de 1978, quando o Brasil vivia sob a ditadura militar (1964-1985) e era governado pelo general ditador Ernesto Geisel (1907-1996). Em 1995, a partir do tratado a organização foi criada pelos países-membros Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela e sua meta é "incentivar o desenvolvimento sustentável e a inclusão social na Região".

Nos relatórios do CNAL, não é explicado qual seria o "novo projeto regional para a OTCA", citado genericamente em dois documentos.

A especialista sênior em Políticas Públicas do OC (Observatório do Clima), coalizão de 50 organizações não governamentais, e ex-presidente do Ibama Suely Araújo, concorda que a OTCA "é arena relevante para a coordenação de ações conjuntas voltadas à proteção do bioma amazônico", incluindo "o monitoramento e a fiscalização ambiental, abrangendo desmatamento, incêndios florestais e outras fontes de degradação, bem como controle da biopirataria".

Porém, Suely considera necessária uma coordenação entre os países "com transparência, incluindo controle social, e sempre sob a perspectiva da sustentabilidade socioambiental". "Quando eu estava na Presidência do Ibama, começamos a debater a integração do Sinaflor, o sistema de controle da madeira que entrou em operação em 2018, com os sistemas dos países vizinhos, especialmente na Amazônia."

"Deve-se cuidar para que o trabalho conjunto se paute pelo conhecimento técnico e não gere centralização e burocratização das decisões. No caso brasileiro, a ótica deve ser a do PPCDAm [Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia], e não do 'Plano Mourão', mais voltado a objetivos militares do que à proteção ambiental."

Sobre a retomada do Fundo Amazônia, Suely disse que ela "depende de acordo com os doadores que, corretamente, estão exigindo demonstrações concretas de reversão do quadro de antipolítica ambiental que marca o governo Bolsonaro". Ela disse que há hoje cerca de R$ 2,9 bilhões depositados sem aplicação no fundo.

"[A retomada] não será obtida pela aplicação de um instrumento como o 'Plano Mourão'. Um plano que desconsidera na prática o Inpe, o Ibama e o ICMBio, que ignora o que vinha sendo realizado por meio do PPCDAm, que trata as organizações não governamentais como objeto de controle e não como parceiras, não será bem sucedido na prevenção e no controle do desmatamento e de outros ilícitos ambientais."

Procurada pela coluna por meio do seu escritório em Brasília, a OTCA não havia dado explicações, até o fechamento deste texto, sobre as dívidas brasileiras. Em setembro, em seu site na internet, a OTCA noticiou uma audiência entre Mourão e representantes da OTCA em Brasília, na qual o vice-presidente teria "confirmado compromisso estratégico do governo brasileiro com a OTCA".

Carta da União Europeia pediu uma "interlocução robusta" com governo brasileiro

Trecho da carta enviada pelo Itamaraty à União Europeia sobre os temas de interesse do Conselho da Amazônia, presidido por Mourão - Reprodução - Reprodução
Trecho da carta enviada pelo Itamaraty à União Europeia sobre os temas de interesse do Conselho da Amazônia, presidido por Mourão
Imagem: Reprodução

A carta enviada pelo Brasil em outubro à UE (União Europeia), de quatro páginas, foi uma resposta a uma mensagem de sete páginas entregue, em agosto, pelo embaixador chefe da delegação no Brasil, Ignacio Ybáñez - ambas foram obtidas pelo UOL. A UE fora convidada pelo CNAL a participar de uma reunião do órgão em julho.

Na carta, Ybáñez reafirmou "o entendimento da posição central do CNAL" e de Mourão "para o estabelecimento de quadro institucional propício para a impulsão do pretendido diálogo ampliado sobre políticas sustentáveis e identificação de possibilidades concretas de cooperação entre as partes europeia e brasileira". O embaixador disse que era importante estender as conversas dentro do CNAL para além da Subcomissão de cooperação internacional, envolvendo especialmente "a comissão de desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal."

O chefe da delegação da UE ressaltou "o objetivo de avançar em interlocução robusta e definição de marco de referência pertinente para cooperação em apoio a ações governamentais tangíveis de proteção, preservação e promoção do desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal, bem como de coibição e desmantelamento de atividades ilegais na região".

Ybáñez listou nove programas em curso, muitos dos quais realizados em parcerias com organizações não governamentais, e suas linhas de financiamento e outros 12 "programas em preparação",

Na resposta brasileira, que veio dois meses depois, o CNAL disse que tem a "disposição em desenvolver diálogo ampliado com essa missão diplomática sobre políticas sustentáveis e possibilidades de novas ações de cooperação entre o Brasil e a União Europeia".

A resposta mencionou os seguintes "projetos novos" que o CNAL pretende trabalhar em conjunto com a União Europeia, na íntegra:

"Projeto de Apoio à implementação do Acordo de Paris para mensuração da contribuição do setor privado, inclusive na Amazônia;

Promoção da biodiversidade e da sustentabilidade no setor agrícola e alimentar através da avaliação econômica (Implementação do The Economics of Ecosystems and Biodiversity - Agrifood);

Projeto 'Nova Amazônia Verde';

Apoio a ações que fomentem a colaboração além fronteira entre os países membros da Organização de Cooperação do Tratado Amazônico (OTCA) e do Pacto de Letícia;

Plataforma Regional da Amazônia para os Povos Indígenas e a Plataforma para as Comunidades Locais; Projeto sobre agricultura sustentável e inovadora e cadeias de valor na Amazônia brasileira;

Novo projeto regional para a OTCA (a ser definido);

Colaboração nas áreas da segurança e o combate ao crime na Amazônia;

Iniciativa para o setor privado brasileiro e europeu"

Procurada pela coluna desde a noite deste domingo (6) para que o vice-presidente Mourão comentasse os relatórios e a troca de cartas com a UE, a assessoria da Vice-Presidência não havia se manifestado até o fechamento deste texto. Entre outras dúvidas, foram feitas perguntas sobre as prioridades do CNAL, o uso da expressão "países críticos" para se referir à França e a situação financeira do Brasil perante a OTCA.