Topo

Rubens Valente

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Voto de Rosa Weber põe em xeque decreto ambiental de Salles e Bolsonaro

Jair Bolsonaro aperta a mão do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em evento de inauguração de uma usina de biogás no interior de São Paulo - Reprodução/Twitter
Jair Bolsonaro aperta a mão do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em evento de inauguração de uma usina de biogás no interior de São Paulo Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

05/03/2021 15h11

O decreto do presidente Jair Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que alterou a composição e o funcionamento do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente) em 2019, sofreu nesta sexta-feira (5) um abalo no STF (Supremo Tribunal Federal).

A ministra do STF Rosa Weber, relatora do processo, em seu voto acolheu o mérito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) ajuizada em setembro 2019 pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e opinou pela nulidade do decreto. O voto de Rosa, como relatora, tem grande peso e poderá definir o futuro da votação, que ainda está em andamento no plenário virtual do tribunal.

Cuidadoso, para que o STF não seja acusado de interferência indevida no Executivo, o voto de Rosa não diz como deve ser a composição do Conama, mas pontua que um novo desenho institucional deve ser criado a partir das "premissas constitucionais que conformam os processos decisórios democráticos e os direitos fundamentais de participação e procedimentais ambientais".

O decreto 9.806/2019, editado por Bolsonaro e Salles em maio de 2019, alterou o decreto que estava em vigor havia quase 30 anos. A nova medida permitiu um controle quase absoluto do governo sobre as atividades do Conselho.

De acordo com a ADPF ajuizada por Raquel Dodge, a representação das entidades ambientalistas caiu de 11 para 4 nomes. O mandato das entidades foi reduzido de dois anos para um, com proibição de recondução. Antes eram escolhidas por voto, agora é por sorteio. Foram extintos cargos de conselheiros sem direito a voto, então ocupados por representantes do MPF (Ministério Público Federal), dos Ministérios Públicos estaduais e da Câmara dos Deputados.

Órgãos de estreita ligação com o meio ambiente, como o ICMBio, a ANA (Agência Nacional de Águas) e o Ministério da Saúde e entidades ligadas à questão indígenas perderam assento no Conselho. Os 27 Estados e o Distrito Federal, que antes podiam indicar 27 conselheiros, agora só têm cinco representantes, um para cada região do país.

Na recomposição do Conselho, o número de vagas destinadas à sociedade civil desabou de 22 para quatro representantes, um decréscimo de 82%. No sentido contrário, o governo federal passou a deter 43,47% dos votos. O bloco governamental, que é a soma dos planos federal, estadual e municipal, atinge agora 74% dos votos.

Raquel Dodge apontou violações à Constituição

Criado em 1981, o Conama se reúne a cada três meses ou extraordinariamente a qualquer momento, por convocação do seu presidente, o ministro do Meio Ambiente. Ele tem uma ampla gama de atribuições, como estabelecer normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pela União, Estados, Distrito Federal e municípios, sob supervisão do Ibama, e estabelecer "normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida".

O Conama atua por meio de resoluções, decisões, proposições, recomendações ou moções. De acordo com um estudo do IPEA de 2011, foram objeto de deliberação no Conama temas bastante variados, entre os quais "o controle da poluição veicular; a regulamentação das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente; o licenciamento ambiental; o estabelecimento de padrões de qualidade das águas; a proteção dos biomas e a definição de critérios visando à preservação de áreas especialmente protegidas; e as regras para a destinação ambientalmente adequada de resíduos, em especial os provenientes dos serviços de saúde, as pilhas e baterias, os pneus e aqueles provenientes da construção civil".

Com o Conama nas mãos, o governo promoveu um "revogaço" em setembro de 2020, extinguindo três regras de proteção ao meio ambiente, manguezais e restingais do litoral brasileiro - uma das resoluções foi suspensa por decisão da própria ministra Rosa Weber.

Em maio de 2019, a procuradora-geral da República Raquel Dodge ajuizou uma ADPF para pedir a anulação do decreto por razões constitucionais. Essa estratégia jurídica passou a ser adotada com mais frequência nos últimos dois anos por partidos políticos e organizações não governamentais que questionam atos e medidas do governo Bolsonaro. Da ADPF sobre o Conama, de número 623, até esta sexta-feira já foram ajuizadas 177 ADPFs no Supremo.

Na ADPF sobre o Conama, a então procuradora-geral da República apontou a violação de "preceitos fundamentais da participação popular direta, da proibição do retrocesso institucional e socioambiental, da igualdade política; e da proteção adequada e efetiva do meio ambiente", todos previstos na Constituição Federal.

Raquel Dodge apontou que a reforma institucional do Conama feita no governo Bolsonaro tinha por objetivo reduzir as instâncias e participação da sociedade civil no processo de formação das ações e políticas públicas na área ambiental. A desconstrução teria por objetivo, assim, favorecer projeto voltado para interesses econômicos e governamentais.

Intimados por ordem de Rosa Weber, o Ministério do Meio Ambiente, a Presidência da República e a AGU (Advocacia Geral da União) argumentaram, em defesa do decreto, "liberdade política e discricionariedade do chefe do Poder Executivo na reestruturação administrativa do Conama; observância do princípio da eficiência e da racionalidade na atividade e gestão administrativa do órgão sem que isso implique um estado de retrocesso institucional ou socioambiental; garantia da representação proporcional, em números absolutos, da sociedade civil na composição do colegiado na relação com a forma prevista em desenho institucional anterior; observância da pluralidade representativa e do acesso democrático às entidades ambientalistas com o método de escolha por sorteio; e dever de deferência do Judiciário ao Executivo em matéria de organização administrativa".

Rosa vê "quadro normativo de aparente retrocesso institucional"

Em seu voto, Rosa Weber pontuou que "ao conferir à coletividade o direito-dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição exigiu a participação popular na administração desse bem de uso comum e de interesse de toda a sociedade".

A ministra observou que "as normas que estabelecem a participação de atores da coletividade e da sociedade civil nos órgãos consultivos e deliberativo que integram o Sistema Nacional do Meio Ambiente, em especial a instância colegiada decisória com função normativa, como o Conama, devem observar o modelo democrático constitucional".

Rosa Weber salientou que a legalidade democrática "é recente na história da política e do constitucionalismo, por isso requer cuidados e constante vigilância".

"A supressão de marcos regulatórios democráticos e procedimentais mínimos, que não se confunde com a sua reformulação, configura quadro normativo de aparente retrocesso institucional no campo da proteção e defesa dos direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e de participação democrática , como afirmei nas decisões de medida cautelar proferidas nas ADPFs 747, 748 e 749 (referendadas à unanimidade pelo Plenário)."

A ministra escreveu que se "provoca a impressão de um efeito cumulativo de decadência dos atributos básicos da democracia constitucional que podem conduzir ao fenômeno da subversão sub-reptícia".

Rosa Weber repudiou a ideia de que o resultado de uma eleição presidencial pode permitir, por si só, todo tipo de atropelo à Constituição.

"A legalidade democrática, em um Estado Constitucional, não se confunde com a legalidade de um projeto governamental, que se identifica com a maioria ocasional, certificadas nas eleições. O projeto governamental tem o lugar de fala preferencial nas deliberações democráticas e seus lugares de liberdade decisória, que devem ser respeitados pela oposição e poderes constituídos. Mas todos esses, governo, oposição, poderes constituídos e sociedade devem na mesma medida observância à legalidade constitucional."

A ministra pontuou "um tom de vigilância e diálogo interinstitucional". "Não se afirma nesta decisão constitucional qual a organização-procedimental a ser adotada, mas a marcação da moldura democrática e dos direitos fundamentais a serem respeitados."

Rosa votou pela declaração de inconstitucionalidade do decreto de Bolsonaro e Salles. No sistema de julgamento virtual, os ministros entregam seus votos na página do STF na internet. Esperava-se que o julgamento terminasse no próximo dia 12. Porém, segundo o site G1, um destaque do ministro Kassio Marques, indicado ao cargo por Bolsonaro, adiará o desfecho e ainda não há prazo para a retomada do julgamento.