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Funai dá aval para mineradora se reunir com indígenas em plena pandemia
Em plena pandemia do novo coronavírus, a Funai (Fundação Nacional do Índio) em Brasília deu sinal verde para que uma mineradora canadense realize reuniões presenciais com cerca de uma centena de indígenas em duas aldeias na Amazônia.
O motivo: a empresa Belo Sun Mining, sediada em Toronto, no Canadá, quer acelerar seus planos de explorar uma mina de ouro que pode afetar duas terras indígenas e comunidades de ribeirinhos que já vivem sob o impacto da construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.
No último dia 9, a DPU (Defensoria Pública da União) recomendou à Funai que rejeite a possibilidade de qualquer reunião presencial durante a pandemia e que suspenda os efeitos de uma "informação técnica" que o órgão indigenista emitiu em 10 de fevereiro.
O documento da Funai dá algumas orientações, mas não veta a iniciativa da mineradora. Chega a sugerir o que a mineradora deve fazer "no caso de haver a confirmação ou a suspeita de algum caso de Covid-19 durante o evento" - "o caso detectado (participante) imediatamente [será] isolado do grupo e terá o devido encaminhamento articulado pelo profissional de saúde presente no local".
A Funai diz ainda que a mineradora deve solicitar "apoio a laboratórios privados, seja agendada antes das reuniões de apresentação do CI-EIA [componente indígena do estudo de impacto ambiental], reuniões por vídeo conferência, preferencialmente com presença de representantes indígenas, para articulação dos preparativos para as reuniões com o DSEI [distrito sanitário de saúde indígena, vinculado ao Ministério da Saúde] da região".
O órgão indigenista sugeriu que, caso não seja possível o apoio do DSEI, a mineradora poderá "solicitar o apoio de laboratórios privados e/ou outros profissionais".
De acordo com os dados apresentados pela própria mineradora, a doença havia matado, até janeiro passado, 7.366 moradores no Pará. Como o estudo trata do panorama da doença até janeiro, não cobriu a grande onda da doença que atinge hoje quase todos os Estados brasileiros. Só no Pará, o número de óbitos passou de 9 mil no último dia 8.
A DPU atacou a iniciativa. "A proposta apresentada [pela mineradora] não garante a segurança de saúde e preservação de vida das pessoas participantes, baseando-se em informações que não são compatíveis com a situação da pandemia na região de Altamira e em outros estados brasileiros e nem com as orientações de órgãos nacionais e internacionais de atenção à saúde, podendo, ainda, onerar órgãos de saúde locais, como o DSEI e a Sesai [órgãos de saúde indígena da União]", afirma a peça da DPU subscrita pelos defensores Wagner Wille Nascimento Vaz, Elisângela Machado Côrtes e Francisco de Assis Nascimento Nóbrega.
A coluna procurou a Belo Sun nesta quarta-feira (10) com as dúvidas sobre a iniciativa das reuniões no meio da pandemia. A mineradora respondeu, por e-mail: "A empresa optou por não atender esta demanda. Agradecemos o interesse".
Mineradora também quer fazer reuniões presenciais em Altamira
A "informação técnica" produzida pela Funai em Brasília analisou um plano encaminhado pela mineradora por meio de uma empresa terceirizada de consultoria ambiental, responsável pelo componente indígena do Estudo de Impacto Ambiental.
A mineradora argumentou, e a Funai concordou, que "foi constatada a inviabilidade técnica da realização de reuniões por vídeo conferência [sic] nas terras indígenas". O plano alega que a empresa seguirá um "protocolo de segurança" sobre a doença.
A Belo Sun disse que são necessárias reuniões em duas terras indígenas, a Arara da Volta Grande do Xingu, com cerca de 45 indígenas, e a Paquiçamba, das etnias arara e juruna, ou Yudjá, com 60 a 66 participantes. Cada evento deverá durar dois dias, com sessões pela manhã e à tarde, e cerca de 5h30 horas somadas em cada uma das aldeias.
Mas a movimentação dos indígenas não termina aí. A mineradora também quer fazer duas reuniões na cidade de Altamira (PA), em dois dias seguidos, com mais de 10 horas somadas. Os indígenas seriam transportados de suas aldeias por barcos ou ônibus e ficariam "hospedados em local exclusivo, evitando contato com terceiros".
A Funai sugeriu uma "reunião com a consultoria por meio de vídeo conferência para discutir as
propostas aqui apresentadas e o eventual agendamento de reunião com o DSEI/SESAI para preparação da
reunião de apresentação do CI-EIA".
Para Amazon Watch, iniciativa da mineradora e da Funai é "inaceitável"
Rosana Miranda, assessora de campanhas da organização não governamental Amazon Watch, disse ser "inaceitável que a Funai e Belo Sun planejem reuniões presenciais no momento que o Brasil vive com relação à pandemia".
"O processo de consulta prévia, livre e informada é um direito das comunidades indígenas, não uma obrigação imposta à revelia de sua saúde e segurança. Se essas reuniões se concretizarem, será mais uma das irregularidades do projeto Volta Grande da mineradora Belo Sun, que tenta apressar o processo para silenciar as evidências de que esse projeto é inviável técnica e ambientalmente", disse Rosana, por meio da assessoria da Amazon Watch.
De acordo com a ONG, os jurunas de terra indígena Paquiçamba "mandaram carta para Funai em dezembro de 2020 dizendo que não abrem mão do protocolo de consulta que afirma que todas as reuniões devem ser presenciais e que só as fariam quando todos os indígenas estivessem vacinados. Afirmam categoricamente que não aceitam reuniões virtuais para falar sobre os impactos de Belo Sun e não aceitariam reuniões presenciais antes de serem todos vacinados".
Na carta, enviada com cópia ao Ministério Público Federal, que também atua no caso desde 2010, os indígenas afirmam: "Nós precisamos entender melhor os impactos desse empreendimento de Belo Sun. Precisamos de calma e atenção sobre esse projeto de mineração. Não queremos mais ser enganados como fomos com Belo Monte. Para a gente entender melhor esses impactos, afirmamos que não queremos apresentação de estudos agora pela internet no meio da pandemia. Vocês podem ver essa carta que está aqui anexada. A pandemia deixou nossos povos fragilizados porque já estávamos sofrendo com a diminuição dos peixes e da vazão do rio desde a construção de Belo Monte. Nossas vidas importam. As vidas das tracajás [espécie de cágado] e peixes importam".
De acordo com petição do MPF de 2014, a canadense Belo Sun "pertence ao grupo Forbes & Manhattan Inc., um banco mercantil de capital privado que desenvolve projetos de mineração em todo o mundo".
O MPF já ajuizou duas ações sobre a mina de ouro. Uma, já vitoriosa na primeira instância da Justiça Federal e no TRF-1 (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, determinou a realização de consulta prévia aos indígenas e ribeirinhas afetados pelo empreendimento. A outra pede que o licenciamento ambiental seja feito na esfera federal, e não na estadual. Já existe uma sentença favorável ao MPF na Justiça Federal.
De acordo com a Amazon Watch, "as comunidades ribeirinhas da Volta Grande do Xingu, área de impacto do projeto de mineração, estão totalmente desconsideradas nesse processo da consulta e não têm ocorrido discussões sobre impacto e ações de mitigação e/ou compensação".
"Assim como ocorreu em Belo Monte, essas comunidades ribeirinhas foram apagadas do processo de licenciamento ambiental de Belo Sun. Em relação aos povos indígenas, existem pelo menos duas situações: a ausência de posicionamento das instituições licenciadoras (Funai e Semas) em relação a quatro pareceres independentes incluídos no processo que questionam, dentre outras coisas, a viabilidade técnica do empreendimento tal como ele se apresenta no EIA CI [estudo de impacto ambiental]. As informações apresentadas por esses pareceres não podem ser ignoradas no processo de licenciamento seja com os povos indígenas ou com as comunidades ribeirinhas. Além disso, existem outras comunidades indígenas na região da Volta Grande do Xingu que pedem para serem incluídas no processo de licenciamento e da consulta livre, prévia e informada. Essas comunidades não foram, até o momento, incluídas nesse processo."
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