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Guaranis-kaiowás e terenas relatam casos de sucesso e tristeza em aldeias de Mato Grosso do Sul

Celso Bejarano

Do UOL, em Dourados (MS)

08/11/2012 06h00

Catorze mil índios guaranis-kaiowás e terenas vivem nas aldeias Jaguapiru e Bororó, em Dourados (229 km de Campo Grande). Ali, numa área de 3.600 hectares, eles compartilham histórias de vida muito diferentes entre si que são, ao mesmo tempo, bem próximas dos casos de sucesso e tristeza vividos pelos homens brancos que moram do lado de lá das aldeias.

Os guaranis-kaiowás de Dourados são a mesma etnia dos 170 indígenas que há um ano ocupam dois hectares da fazenda Cambará, em Iguatemi, extremo sul do Estado, e que, no último dia 30, receberam permissão da Justiça Federal para continuar naquela região até que a Funai conclua relatório sobre a posse da terra.

Salvador Freitas, 58, terena, comerciante, frequentou a escola por três anos. No passado, desempenhou missão de cabeçante, aquele que “faz a ponte” na contratação de índios para cortarem cana-de-açúcar nas usinas. Possui casa espaçosa, caminhonete na garagem e soja plantada em 53 hectares numa área sua situada na aldeia Jaguapiru.

Lá no fundo do território indígena mora, num barraco fincado em área de dez metros de largura por 15 metros de comprimento, a guarani Brígida Rodrigues Cardoso, 40 anos, e seus cinco filhos. Ela, que estudou um ano só, é viúva e aguarda a indenização trabalhista do marido, que morreu um ano atrás. Sua condição de vida é de extrema pobreza.

Três quarteirões antes da moradia de Brígida mora Aguilera de Souza, 37, sábio entre seus patrícios, como chamam um índio ao outro. Ele completou faculdade, é pós-graduado, ganha a vida como professor, dá palestras na Universidade de Brasília e, de quebra, elegeu-se o primeiro vereador índio de Dourados. Vai ganhar salário de R$ 7.000 mensais e já estacionou um carro novo em frente da casa, simples, mas sólida, construída com tijolos.

Mais adiante, uns 500 metros à esquerda da casa do novo parlamentar, mora o kaiowá Gonçalo Moura, 40 anos de idade, desempregado, pai de cinco filhos. Por falta de dinheiro, em duas ocasiões ele pensou em se matar, e, feito isso, deixaria uma quantia em dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para a família.

“Por um triz”, segundo ele, não acompanhou a ideia de 555 patrícios que se mataram de 2000 a 2011, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade católica que briga pelos direitos dos índios.

Morto não fala

No mundo dos brancos, a história do terena Salvador, o dono de 53 hectares, seria a de um vitorioso na vida. Mas na aldeia, por regra, é proibido negociar terras indígenas. O Ministério Público Federal em Dourados moveu em junho deste ano ação, e a Justiça Federal acatou, contra nove pessoas, três fazendeiros e seis índios, por arrendamento de terra nas aldeias Jaguapiru e Bororó. A área é para usufruto do índio, não para negócio, diz a Constituição. Mas a norma não é posta em prática ao pé da letra.

Salvador disse que para ter o que tem hoje trabalhou desde criança e sempre ajudou os menos favorecidos. “Trabalhei de sol a sol, o que ganhava aplicava na roça. Juntei, comprei um tratorzinho, umas vaquinhas, e hoje cultivo milho, feijão e soja”, disse o terena, acrescentando que foi criado no mato com seis irmãos e o pai, já que a mãe morreu quando tinha apenas seis anos de idade.

Embora tenha dito que sempre ajudou os patrícios pobres, o suicídio, tormento dos moradores da reserva indígena, não lhe diz respeito. “Negócio de suicídio só quem pode falar é quem morre", diz ele. "E morto não fala.” Salvador casou-se três vezes e tem nove filhos, quase todos na faculdade.

Guaranis-kaiowás desmentem suicídio coletivo

Bicicletas por casa

Já Brígida Cardoso casou-se uma vez só, aos 15 anos de idade, com Arceu Garcia, cortador de cana. Cria os cinco filhos pequenos sozinha há um ano, desde que o marido morreu por complicações no fígado. Precisando de dinheiro, ela trocou a casa onde morava por três bicicletas. Foi trapaceada.

As bicicletas estavam estragadas, e hoje estão encostadas para conserto. “Vou pegar quando a indenização vier”, disse ela, sem mencionar que um patrício a enganou. A versão de Brígida é confirmada pela irmã, Silvana Rodrigues Cardoso, 43, e pelo índio guarani Renato de Souza, 62 anos, ex-cacique da aldeia Jaguapiru.

Sem casa, a guarani pediu ajuda da irmã, que cedeu um pedaço do lote onde mora com o marido, também cortador de cana. Hoje, Brígida divide o barraco de um só cômodo com os filhos Júnior, Mirtes, Wellington, Beatriz e Alexandre.

Wellington, o mais velho, com 11 anos de idade, abandonou o terceiro ano do ensino fundamental. “Meu pai morreu e não tenho roupa para estudar, não quero mais nada”, disse o garoto, ao lado da mãe, que retrucou: “Filho, eu não tenho dinheiro, o que fazer?”.

Sábio e jogador

A vida do vereador kaiowá Aguilera de Souza , embora confortável agora, não foi das melhores. Garoto, bom de bola, ele foi levado para São Paulo, onde treinava no Corinthians. Foi bem nas peneiradas, recebeu um dinheiro e retornou para ver os pais, que estavam adoentados. “Como a situação era ruim, gastei o que tinha e fiquei sem nada”, disse.

Resolveu recuperar o tempo perdido arrancando feijão como boia-fria. Juntou dinheiro e voltou, mas o “timão” não o quis mais porque havia estabelecido data para o retorno do índio. Aguillera trocou os campos pelas salas de universidades e formou-se pedagogo. Dá aulas na aldeia e recebe salário de R$ 2.600 por mês. Em janeiro, assume a missão de vereador.

O índio ouve que é preciso estudar para comprar casa, roupa, carro, e acredita. No entanto, ele quer tudo isso rápido, ele não deveria se iludir com isso

Disse que agora quer entender como são gastos os R$ 700 milhões anuais arrecadados pela prefeitura de Dourados. “Quero brigar por projetos para as aldeias, beneficiar a agricultura, o esporte, cultura e saúde”, é o discurso dele.

Para o índio vereador, os suicídios nas aldeias ocorrem por influência da globalização. “O índio ouve que é preciso estudar para comprar casa, roupa, carro e acredita. No entanto, ele quer tudo isso rápido, ele não deveria se iludir com isso.”

Aguilera tinha uma motocicleta até ser eleito. Logo depois de virar vereador, comprou um carro novo e disse que vai pagar em prestações. Boatos de patrícios revelam que ele teria recebido o veículo como agrado do prefeito reeleito.

“Besteira, isso”, disse o guarani, que promete, mesmo com salário de parlamentar, morar na modesta casa ao lado dos três filhos e da mulher, Jucilene, também guarani, manicure.

Suicídio e dinheiro

O kaiowá Gonçalo Moura, que quase se matou duas vezes por falta de dinheiro, disse que, mesmo sem casa, sem emprego e sem dinheiro, tenta se recuperar para dar uma vida boa à família.

Moura disse que aos 23 anos de idade fez um curso de técnico em saúde e mudou-se para a aldeia Lima Campo, em Ponta Porã, perto da fronteira com o Paraguai, onde foi viver com a mulher e os quatro filhos.

Certo dia, quando já tinha seis anos de trabalho na aldeia, viajou para Dourados. Ao retornar, notou que sua casa havia sido roubada. “Perdi tudo, tudo, e também o emprego.” Voltou para a aldeia Jaguapiru, onde moravam os pais, e fez curso para ser guarda municipal.

“Foi um dos piores momentos de minha vida. Fazia curso, comia bem lá [local de treinamento], mas ficava triste quando retornava para a casa e via que nem a mulher nem os filhos tinham comido porque não tinha nada”, disse.

“Cheguei a contar um, dois, três, para me matar, não aguentava mais a situação”, afirmou. Gonçalo Moura passou no concurso, e sua vida melhorou no começo, mas piorou depois. Ele bebia, “ficava feito um louco, andando de motocicleta na aldeia”, e acabou exonerado, sem receber nada.

“Ele faltava muito”, disse Renato Souza, ex-cacique que acompanhou sua trajetória. Antes de demitido, Gonçalo tentou se matar outra vez. Avisou a mulher que a morte seria um meio de salvá-la financeiramente, mas a ideia foi espantada pela companheira. “Tento levantar de novo agora”, disse o kaiowá, que mora hoje na aldeia Jaguapiru graças a ajuda de irmãos.