Só no frio: moradores de rua explicam por que vão ou não aos abrigos de SP
Há pessoas que preferem enfrentar as gélidas noites paulistanas na rua a buscar acolhimento nos abrigos municipais. As razões para tal atitude, mesmo em meio a uma onda de frio que assola São Paulo, são várias: de inadequação às regras dos albergues a condições supostamente insalubres de alguns desses locais.
Mesmo quem busca uma vaga tem reclamações a fazer sobre os abrigos municipais: eles dizem que os banheiros e as roupas de cama estão em más condições e se queixam de tratamento desrespeitoso por parte de alguns funcionários.
Em meio a isso, cinco moradores de rua foram encontrados mortos nos últimos dias. Para a Pastoral do Povo de Rua, da Igreja Católica, há uma relação direta entre as mortes e a queda brusca de temperatura na capital paulista.
As ocorrências motivaram a abertura de uma investigação da Promotoria de Direitos Humanos, que apura se houve omissão por parte da gestão do prefeito Fernando Haddad (PT). Estimularam também um aumento na demanda por uma cama nos abrigos municipais que acolhem pessoas em situação de rua, apesar da rejeição de alguns.
Nos últimos dois dias, o UOL ouviu moradores de rua em vários pontos da capital paulista. Eles explicam suas razões para buscar ou não um lugar nos abrigos paulistanos. (leia mais abaixo).
Procurada, a Prefeitura de São Paulo informou que os casos citados pela reportagem "serão apurados e se, constatada irregularidade, a secretaria tomará as devidas providências junto à entidade parceira".
A prefeitura afirma ainda que oferece 11.517 vagas de acolhimento em 79 centros de acolhida e 13 abrigos emergenciais. Nos últimos dias, foram abrigadas cerca de 11 mil pessoas; desde o dia 15 de maio, a soma supera os 250 mil acolhimentos. (Leia a nota na íntegra aqui)
POR QUE NÃO VOU AO ABRIGO MUNICIPAL
Chris "Priscila", 42 anos - "Parece um quartel"
"Não gosto de dormir em abrigo, é tudo muito certinho, parece um quartel. E tem outra coisa: aquelas camas tudo juntinhas uma da outra me incomoda bastante. Não gosto de dormir com gente estranha ao meu lado, a gente nunca sabe o que se passa na cabeça, se vão querer fazer alguma coisa. Como é que vou tomar banho com gente que não conheço perto de mim?
E tem a Menina Bonita, minha cachorra. Nem todo abrigo aceita que a gente leve. Teve um que aceitou, mas ficava perto da Cracolândia e eu não quero voltar para aquele ambiente.
Estou há tanto tempo na rua que não sei mais dizer quantos anos. Eu saí de casa aos 18 anos. Já me casei quatro vezes. Meu último marido foi assassinado a facadas aqui no centro. Ele me protegia, cuidava de mim. Outro dia, tive cinco convulsões em um dia só, tem menos de uma semana. Caí e machuquei a boca. Tenho dois filhos, mas não quero que eles vejam a situação que estou. Nesta semana que foi muito fria, roubaram uma das minha mantas. Se você vive na rua tem sempre que ficar de olho."
João Vitor Gomes, 19 - "Eles não respeitam as regras"
"Eu até iria, mas o problema é que não tem vaga. A gente liga para o pessoal dos abrigos, dizendo onde está, eles respondem dizendo que vão buscar e nunca aparecem. Fiquei em uma fila desde as 13h no abrigo Arsenal da Esperança (no bairro da Mooca), e eles me disseram que só tinha cinco senhas para gente que não era cadastrada.
O maior problema nos abrigos é que eles colocam regras e eles mesmo não a respeitam. Os funcionários gostam de tirar uma de nós, gostam de tratar como se tudo fosse ladrão, vagabundo. Eu não sou.
Eu sou de Piracicaba, passei por Santos, e cheguei a São Paulo para trabalhar. Tenho uma filha pequena, e a mãe só vai deixar vê-la se eu ajudar com a pensão. Por isso que deixei de usar drogas, de beber. Não quero passar minha vida na cadeia igual ao meu pai. Não quero que minha filha tenha a infância que eu tive.
Então estou atrás de emprego, mas como vou conseguir se eu não tenho como deixar minhas coisas, minha mala? Os abrigos acolhem a gente por dois ou três dias, não nos ajudam a procurar emprego, e depois colocam a gente para fora."
Érica Amorim, 20 - "Albergue fica longe"
"Nos albergues, eles obrigam a gente a levantar muito cedo. Eles nos acordam às 6h e mandam a gente embora. Às vezes, a gente não tem para onde ir porque o albergue fica longe. Não temos dinheiro para o ônibus.
Outra coisa que eu não gosto é que os funcionários nos tratam como se a gente fosse inferior. Não são todos, mas tem uns que não demonstram respeito pela gente, e eu não admito ser maltratada. Estou há seis anos na rua, desde que meu pai morreu. Não dá para conviver com minha mãe, no Capão Redondo. Ela é muito mandona, autoritária. Eu sei que ela fala para meu bem, mas eu prefiro minha liberdade.
Esta semana tem sido difícil de aguentar com todo esse frio, mas a gente vai se virando. Hoje mesmo apareceu umas pessoas para ajudar, me deram um cobertor. Eu sei que minha vida vai melhorar, que eu vou sair dessa. Eu sinto."
Gleimárcio Nunes da Silva, 33 - "Há panelinhas"
"No albergue é meio molhado. Você tem que se acertar com as panelinhas do pessoal mais antigo, às vezes eles pedem para levar drogas para dentro. Tem outros que jogam mandinga na gente, ou gostam de bater. Eu prefiro dormir na rua, aqui na Sé. Quando chega a meia-noite, eu durmo numa caixa perto da grade do metrô. Ninguém me incomoda. Prefiro ficar no frio.
Eu sou operador de máquina, preciso tirar um curso de qualificação, mas todo mundo pede comprovante de residência. Eu queria ter direito ao Bolsa Aluguel porque eu poderia alugar um quartinho e finalmente conseguir meu emprego. Eu não quero ficar na rua. Na rua, batem na gente, os policiais e os guardas nos maltratam, tomam nossa mercadoria. Eu mesmo vendia brinquedo, mas levaram, e agora eu vendo chocolate.
Quando dá para eu comer, eu como, gosto de comprar minha comida. O pessoal gosta de dar comida estragada para morador de rua."
POR QUE VOU AO ABRIGO MUNICIPAL
José Júlio dos Santos, 55 - "É a única solução"
"Quando está frio assim, o albergue é a única solução. Mas quando fica quente é até melhor ficar na rua. Fica um calor desgraçado dentro do abrigo. O abrigo é uma imundície só, os banheiros são todos sujos, os lençóis soltam pelo, mas não tem outro jeito quando está frio demais.
Morei no Rio de Janeiro por 25 anos, sempre tive trabalho como carpinteiro, na construção. Depois voltei para minha cidade, Itambé (PE), fiquei uns quatro anos, deixei meus filhos para outros criarem no Rio [risos]. Vim para São Paulo. Tem oito anos que eu vivo na rua e durmo nos abrigos. Quando cheguei, me roubaram logo no primeiro dia, na Sé. Eu bebi e o pessoal aproveitou e levou meus documentos, minhas ferramentas. Saio para trabalhar em eventos, carregando coisa. Mesmo o abrigo sendo essa sujeira só, eu tento me manter limpo, compro meu sabonete, meu xampu, toda vez que ganho meu dinheiro.
Tomo minha cachacinha de vez em quando, mas não tenho vícios. A pessoa nunca pode ficar desanimada, as coisas sempre podem melhorar, né?"
Edinuza Duarte, 52 - "Só vou no frio"
"No abrigo só dá para ir quando está frio, como foi essa semana. Quando está quente aquele lugar é insuportável. Eu fico sem respirar direito, naquele ar abafado. Então eu só vou quando está muito frio, igual a esta semana. Fui três vezes nesta semana porque não tinha condição de ficar na rua.
Eu morava com meu filho, mas saí de casa, porque a mulher dele batia em mim. E ela gostava de ligar televisão e o rádio em um volume muito alto, e eu não gosto de barulho. Por isso eu prefiro o silêncio da rua quando está de noite.
Já fui varredora de rua, já fui empregada doméstica. Eu queria ter meu canto, mas voltar para minha família eu não volto. Gosto de ficar sozinha"
Jeferson José Barbosa, 32 - "Lá tem jantar"
"No abrigo você tem jantar: feijão com arroz, e alguma mistura. E café da manhã, pão e café com leite. Às vezes você bebe o que eles te dão e tem que ir correndo para o banheiro por causa da diarreia. Mas não dá para dormir na rua, você fica sujeito a acontecer qualquer tipo de coisa ruim. Também não dá para dizer que é bom ficar no abrigo. Mas pelo menos a gente não fica congelando.
A maioria dos funcionários trata o pessoal com arrogância, só porque a gente está por baixo. E sempre tem os valentões entre o pessoal que dorme nos abrigos. Eu tento ficar na minha. Na rua, você não tem amizade verdadeira. Você conversa, todo mundo conta sua história, bebe pinga, mas é cada um por si. Eu sempre dormi em abrigos, desde que eu saí da casa de minha mãe.
Eu cheirava cocaína, mas era só de vez de quando, mas o que atrapalhou a vida foi mesmo álcool. Minha mãe pede para voltar, mas não dá. Eu quero ter minha casa, minha família, meu trabalho. Tem quatro anos que eu vivo na rua."
Roberval Araújo dos Santos, 30 - "Para não congelar"
"A pessoa em situação de rua só vai para o albergue quando está frio para evitar morrer congelado. Não porque gosta de ficar em lugares como esse. Aqui nós somos tratados de maneira muita desumana. Muitas vezes nós não recebemos a doação de roupas que chegam nos abrigos, a comida nem sempre é de boa qualidade, os banheiros ficam muito sujos. Os lençóis também. E se você reclamar corre o risco de ser expulso pelos seguranças. A gente sofre muita discriminação.
Eu fui escolhido por meus companheiros para ser o representante deles. Eu estou lutando para que a gente seja respeitado. Eu sou de Salvador, vim para São Paulo tocar com várias bandas, eu era percussionista e dançarino, mas viciei em cocaína e já tem seis anos que moro nas ruas. Estou me recuperando.
Eu estou trabalhando no Bom Prato, recebo uma ajuda a cada 15 dias. Já é alguma coisa. Quando não tenho nada para fazer, eu vou para biblioteca escrever minhas músicas, meus versos. Leio Alan Kardec, Monteiro Lobato, Shakespeare. Só volto para minha família quando eu estiver curado."
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