Não sou homem, sou a Kelly, diz trans que quer mudar de nome; veja relatos
Um grupo de transexuais formalizou conjuntamente, no dia 9, em São Paulo, processo para a retificação do nome. O objetivo é fazer constar nos registros civis —como a cédula de identidade— o nome social de sua escolha, condizente com o gênero com o qual se identificam e não com o sexo com o qual nasceram.
A mudança do nome para transexuais e travestis é hoje no Brasil um processo judicial longo, que inclui a apresentação de uma série de documentos, como lista com três testemunhas que validem a demanda e parecer psicológico, além da concordância de um juiz.
O pedido de mudança apoia-se em brechas na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), uma vez que não há legislação específica sobre o tema. Um projeto sobre identidade de gênero, que cria a Lei João W. Nery (símbolo da luta trans no Brasil), está parado no Congresso, à espera de votação.
Para os transexuais e travestis, não se trata de algo acessório. Para eles, ter o nome social oficialmente reconhecido encerra um ciclo longo de constrangimentos, privações e até humilhações. Devido à discrepância entre o registro civil e a forma com que se apresentam ao mundo, muitos já chegaram a ser acusados de falsidade ideológica e têm vergonha de trabalhar ou estudar formalmente.
O mutirão para a formalização da ação judicial, na sede da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, obteve gratuitamente as certidões necessárias para os trans e travestis mudarem de nome.
A maioria dos participantes está no programa Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, que visa proteger e resgatar a cidadania da população LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). O projeto, hoje com 200 inscritos, contempla medidas nas áreas de educação, trabalho e saúde, incluindo uma bolsa de R$ 924 mensais para quem cumprir o cronograma de atividades. Veja alguns relatos dessa luta por um novo nome.
'Eu sou eu'
"Eu me sinto mal quando me tratam como homem, com nome de homem, porque não sou homem. Eu sou eu. Eu sou a Kelly."
Kelly Shield ("não coloca minha idade, hein? Tô velha!") ficou sabendo do mutirão pelo Facebook e recebeu um primeiro atendimento para mudar de nome. Vai retornar em março para continuar o processo.
Natural de Salvador, de onde veio há sete anos com o objetivo "de ser dançarina e fazer balé", hoje é camareira em hotel que, segundo ela, oferece hospedagem e sexo com transexuais.
Kelly participa de um programa para mudança de sexo e está na fila do Hospital Santa Cruz, via SUS (Sistema Único de Saúde), já faz dois anos. "Meu sonho é também ter um filho meu, mas está difícil, porque não tenho relação com mulheres."
'É constrangedor ser chamada pelo nome de homem'
Milena Vila Nova, 29, diz que o nome é a maneira com a qual se apresenta ao mundo e mais do que um mero registro. "Significa dignidade e respeito", diz.
"É constrangedor ser chamada pelo nome de homem", conta, citando como exemplo o caso de um atendimento na Santa Casa, "quando chamaram Sicrano e apareceu Beltrana", loira, de longos cabelos, já transformada fisicamente em mulher pela terapia hormonal e pelas cirurgias plásticas.
Originária do bairro da Penha, na zona leste, diz ter descoberto que era menina logo cedo. "Desde os seis anos, vestia as roupas da minha mãe." Mas só assumiu mesmo quando virou adolescente.
Pelo Transcidadania, Milena, que hoje ganha a vida como "autônoma e profissional do sexo", concluiu o ensino fundamental e agora vai para o ensino médio. Descobriu o valor da educação e já faz planos para o futuro. "Quero fazer curso de radiologia ou, quem sabe, de medicina."
'Nome social significa tudo'
Para Adryelly Venturelly, 35, ser chamada assim "significa tudo", enquanto que ser chamada pelo nome civil é "muito constrangedor". Único filho homem de uma família com outras seis irmãs, diz que disputava as roupas de menina da casa. "Gostava de vestir as roupas delas."
Apenas depois da morte da mãe, há dez anos, se assumiu. Já foi "drag queen" e se apresentou "em tudo quanto foi casa de São Paulo". Hoje trabalha como cabeleireira, atendendo em domicílio vizinhos do Parque Bristol, bairro pobre na zona sul de São Paulo. Tem planos de reabrir o salão e diz estar de bem com a vida: "Eu sou muito feliz e saudável".
'Só entendi quando eu cresci'
A paulistana Ashley Any Gonçalves, 25, lembra que desde os sete anos se identificava "com coisas de menina". "No começo não entendia muito bem, só entendi mesmo quando cresci."
Já obteve a autorização para retificar o nome da Justiça e agora aguarda o novo registro civil. "A gente sofre um enorme constrangimento por causa do nome", desabafa.
Para sua trajetória, aponta a família como ponto de apoio essencial: "Eles [a mãe e os cinco irmãos] me aceitaram. Se não fossem por eles, poderia ter me perdido. Minha trajetória é totalmente diferente [da de outras trans]: não precisei ir para a rua".
'Preconceito é uma ignorância'
A maranhense Izadora Venturine, 23, tem uma certeza: "O preconceito é nada mais, nada menos que uma ignorância".
"[As pessoas] Ficam criticando, falando mal [de homossexuais, trans etc.], mas não pensam no filho, no neto, no sobrinho que poderão ser. Vão acabar pagando com a língua. É devido ao preconceito que o mundo está ficando cada vez mais cheio de homossexuais."
Izadora mudou-se de São Luís para São Paulo há quatro anos, em "busca de oportunidades": "Vim para fazer plástica e estudar, fazer cursos". Ela concluiu agora o sexto ano do ensino fundamental, dentro do Transcidadania.
Com um irmão travesti e duas outras irmãs, diz que sabia ser mulher desde os oito, nove anos, mas que só veio a "se libertar de vez" aos 13, 14. "Por ter mais entendimento da vida, finalmente pude assumir o que eu era de verdade."
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