Mudança em demarcação é tentativa de genocídio, vamos lutar, diz indígena
A suposta existência de um decreto que altera o processo de demarcação de terras indígenas acirrou no final de 2016 os ânimos do movimento indigenista, que prontamente se posicionou contra o que chama de "retrocesso" e tentativa de genocídio dos índios no Brasil.
O Ministério da Justiça-- que estaria com o documento em mãos-- nega a existência da nova regulamentação, que colocaria em xeque terras já demarcadas e reconhecidas por governos anteriores, permitindo que os locais sejam contestados por "interessados", segundo a "Folha de S. Paulo". Entre as alterações, estaria a adoção do "marco temporal" --apenas indígenas que estavam na terra ou no processo de disputa judicial até outubro de 1988 poderiam ter direito a ela. Na prática, índios que tiveram que deixar suas terras e não puderam voltar até a data estipulada não poderiam mais reivindicá-la.
Ailton Krenak, 63, que nasceu numa aldeia na região do médio rio Doce (MG) --fortemente atingida pela onda de lama e rejeitos da mineradora Samarco, diz que qualquer decreto que defina novos direitos territoriais dos povos indígenas será ilegítimo e, portanto, os índios não vão desistir de lutar:
Estamos vivendo uma verdadeira fábrica de medidas provisórias e decretos que são inconstitucionais, e as pessoas estão sendo obrigadas a engolir os sapos
"Mas, independentemente de quem está no poder, o que acontece é uma mentalidade destrutiva dos três Poderes. Parece que todos têm um interesse coletivo em destruir o patrimônio da nação", disse.
O líder indígena é um dos nomes mais importantes do movimento no Brasil. Ele participou diretamente da Assembleia Nacional Constituinte responsável pela elaboração da Constituição de 1988. Seu protesto ao pintar o rosto com jenipapo, em sinal de luto, e o discurso no plenário do Congresso contra o retrocesso na luta pelos direitos dos índios na época foram marcos na história da defesa dos indígenas.
Ele lembra que a Constituição Federal de 1988 assegura o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. “Ela determina que o Estado brasileiro tem o dever de demarcar as terras em que os índios vivem. É nosso direito. Se a constituinte de 88 tivesse sido concluída [aplicada], nem precisava falar hoje em demarcação de terra”, afirmou.
Krenak reforça ainda que, se o país se preocupasse em desenvolver um programa que fosse sustentável e tivesse vontade política para fazer, os maiores problemas na questão indígena seriam resolvidos.
"Se nós temos terra, a saúde melhora e a violência diminui. Não vai ter violência com os índios se o Estado assegurar que a terra não pode ser disputada. Como não estão claras as fronteiras, as pessoas se fazem de besta. Aí entra desmatamento, mineradoras tomam conta”, defendeu o representante do povo krenak.
'Tentativa de genocídio'
Já Rosivaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como cacique Babau Tupinambá, nascido em uma aldeia no sul da Bahia, considera que, independentemente da existência ou não de uma nova regulamentação, os interesses políticos e financeiros irão sobressair.
Sobre a possibilidade de o decreto ser verdade, ele diz:
Mostra mais a tentativa de genocídio sobre os povos indígenas no país. Os governantes têm que entender que nós não somos submetidos às leis que violam nossos direitos. Nós existimos antes e vamos existir depois [de qualquer lei]
"O problema é que fica essa insegurança total para as famílias indígenas. No país inteiro, estamos sendo assassinados... e ninguém resolve", afirmou.
Para Babau, com as demarcações de terras cada vez mais distantes, a violência contra os povos indígenas vai aumentar. "Vai provocar mais instabilidade, mais morte, mais violência."
"Os povos indígenas não vão parar de lutar pelo seu direito. Nenhum povo vai desistir de lutar para existir. Já ocupamos nossa terra, vivemos o tempo todo aqui, nunca saímos."
Denúncia da ONU
Em novembro de 2015, a ONU denunciou a violência contra os índios no Brasil. Segundo os dados apresentados, os assassinatos contra líderes indígenas subiram de 92 em 2007 para 138 em 2014. Victoria Tauli-Corpuz, relatora da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, esteve no país em março e demonstrou forte preocupação, argumentando que nos últimos oito anos houve retrocesso no processo de demarcações de terras.
Um relatório da CPT (Comissão Pastoral da Terra), ligada à Igreja Católica, calcula que os conflitos no campo (por terra, água e trabalho) em 2015 envolveram mais de 817 mil pessoas. Deste total, 20% eram indígenas. Das 998 disputas por terra, 100 envolveram índios.
De acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio), existem cerca de 562 terras em processo de demarcação e outras 114 em estudo. Em relação às reservas indígenas-- áreas adquiridas pela União e disponibilizadas para os povos indígenas--, existem 31 regularizadas.
Nem a fundação nem o Ministério da Justiça e Cidadania confirmam a existência do decreto.
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