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Juízes e promotores blindam suspeitas de tortura por PMs, diz ONG

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Imagem: iStock

Wellington Ramalhoso*

Do UOL, em São Paulo

18/02/2017 04h00

Um estudo sobre audiências de custódia realizadas na cidade de São Paulo mostra que juízes e promotores de Justiça dificultam a investigação de casos suspeitos de tortura e maus-tratos praticados contra pessoas detidas pela polícia. Responsável pela pesquisa, a organização não governamental Conectas Direitos Humanos cobrará nesta segunda-feira (20) providências do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de São Paulo a respeito dessas audiências.

O estudo da Conectas, a que o UOL teve acesso com exclusividade, é decorrente do acompanhamento presencial da atuação dos órgãos do sistema de Justiça de São Paulo em 393 audiências de custódia realizadas entre julho e novembro de 2015.

Como funcionam as audiências e o que é considerado tortura

Elas são consideradas instrumentos de combate e prevenção à tortura e aos maus-tratos em casos de prisões em flagrante. Os detidos têm de ser apresentados a um juiz até 24 horas depois da prisão. O juiz analisa a legalidade da prisão, decide se ela dever ser mantida ou não e verifica se o detido foi vítima de violência.

A realização dessas audiências no país é uma iniciativa do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Elas estão previstas em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil. Na cidade de São Paulo, as audiências acontecem desde fevereiro de 2015, graças a uma parceria do conselho com o Tribunal de Justiça. Em todos os casos analisados, havia, de acordo com a Conectas, indícios de violência cometida no período entre a prisão e a apresentação ao juiz.

Responsável pela condução dos trabalhos, o juiz é o primeiro a ter a palavra na audiência. Depois, é a vez de o promotor de Justiça se pronunciar. Por último, fala o defensor público ou o advogado do detido.

Uma resolução de dezembro de 2015 do CNJ determina que o juiz pergunte ao detido sobre o “tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus-tratos e adotando as providências cabíveis”.

A interpretação do crime de tortura feita pelo conselho inclui atos voltados para a obtenção de informações ou confissões, a aplicação de castigo, intimidação ou coação, além da “aflição deliberada de dor ou sofrimentos físicos e mentais”.

A Constituição prevê reclusão de dois a oito anos para quem comete tortura e detenção de um a quatro anos para quem “se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las”.

Ausência de perguntas e desqualificação das denúncias

No universo das audiências acompanhadas pela Conectas, a maioria dos detidos relatou ter sofrido algum tipo de violência --na maioria dos casos relatados (91%), a violência teria sido praticada por policiais. No entanto, parte dos juízes não tomou a iniciativa de introduzir o tema fazendo perguntas sobre ele. Esta omissão foi verificada em um terço das audiências.

A pesquisa também mostrou que uma parcela dos juízes tratou com desconfiança o relato do detido quando o assunto veio à tona na audiência. O estudo mostrou que os magistrados insinuaram que o preso estava mentindo em 18% dos casos analisados. Em outras audiências, os juízes relativizaram a violência ou a trataram com naturalidade. “Tapa na cara só?”, perguntou um juiz ao detido.

De acordo com o relatório, o combate e a prevenção à tortura acabam dependendo “muito mais da convicção pessoal do juiz do que de um protocolo de atuação institucional da Magistratura”.

O relatório também aponta que as audiências desperdiçam informações fundamentais para as investigações. “Raras vezes são feitas perguntas que (...) tragam elementos de prova relevantes para a apuração da tortura. Quando se narra que há testemunhas da agressão, isto é ignorado, não tendo sido observado um único caso em que os dados destas testemunhas passassem a constar dos autos”, diz o estudo.

“Da mesma forma, imagens de câmeras próximas, ou até mesmo o GPS presente nas viaturas, também não costumam ser considerados ou especificados nos procedimentos. A maioria dos (as) juízes (as) sequer pergunta se o acusado-vítima saberia reconhecer os (as) agressores (as), e poucos perguntaram características dos (as) policiais.”

"Promotores referendaram a violência do Estado"

A Conectas não revelou os nomes de juízes e promotores cujas atuações foram analisadas. O estudo indica que entre os promotores a omissão diante de casos suspeitos de tortura é maior do que entre os magistrados.

Os promotores deixaram de perguntar sobre tortura na grande maioria (91%) das audiências em que receberam a palavra antes que o tema fosse abordado. O promotor de Justiça representa o Ministério Público Estadual, órgão responsável pelo controle externo das atividades das polícias Militar e Civil.

A pesquisa revelou que, além de evitarem o tema, os promotores “contestavam os testemunhos, (...) dando mais peso à palavra dos policiais”. “Em alguns casos, promotores referendaram claramente a violência do Estado”, diz a Conectas no estudo.

“Ficamos muito impressionados, principalmente com a atuação dos promotores, que abrem mão desse dever constitucional [de investigar a polícia] e passam a agir como advogados do policial acusado”, afirmou Rafael Custódio, advogado e coordenador do programa de Justiça da Conectas.

“As forças de segurança estão produzindo um grau de violência que é inaceitável. Quando isso é mostrado ao sistema de Justiça, não há um grande enfrentamento. Isso é tão grave quanto a violência física que as pessoas estão sofrendo nas ruas. Se o policial vê que nada acontece [se não é punido], ele vai continuar a praticar violência”, disse Custódio.

Fórum Barra Funda - Marcelo Pereira/UOL - Marcelo Pereira/UOL
Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste, onde são realizadas as audiências de custódia
Imagem: Marcelo Pereira/UOL
Juiz cita “ritmo ensandecido” e vê falhas ocasionais

Coordenador das audiências de custódia realizadas pelo Tribunal de Justiça na capital paulista, o juiz Antonio Maria Patiño Zorz reconheceu que o juiz tem o dever de verificar se os agentes das forças de segurança policiais cometeram abusos contra os detidos. “Questionar sobre tortura faz parte do espírito da audiência de custódia.”

Zorz classificou como falhas ocasionais os casos em que os juízes deixaram de perguntar sobre eventuais violências cometidas por policiais. Ele atribui essas falhas à “diminuta estrutura” para a realização de uma grande quantidade de audiências.

“Estamos em um ritmo ensandecido. Começamos do zero. Não havia qualquer tipo de modelo. A gente tem uma rotina de realizar em média cem audiências com presos por dia. E já chegamos a ter 170 em um só dia. Passamos de 36 mil audiências em dois anos”, disse o magistrado. “Não tivemos, em dois anos, nenhuma reclamação formal contra juízes em nossa corregedoria.”

O Ministério Público de São Paulo, por sua vez, afirmou em nota que “os promotores tratam o tema da violência policial da mesma forma que tratam de qualquer conduta que infrinja a lei, atuando no sentido de que se observe o que estabelecem a legislação brasileira e os pactos internacionais”.

Pedidos de mudança de conduta

A Conectas enviará nesta segunda-feira (20) representações ao corregedor-geral de Justiça, desembargador Manoel de Queiroz, e ao procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, para exigir mais rigor nas audiências de custódia em São Paulo.

A organização pede que os órgãos questionem juízes e promotores de Justiça sobre as providências tomadas em casos de tortura e maus-tratos. Além disso, cobra o cumprimento, durante as audiências, das recomendações e protocolos do CNJ.

A Conectas também pede que o Tribunal e o Ministério Público criem bancos de dados para analisar os relatos de tortura “a fim de identificar eventual sistematicidade na prática, conforme determinada região, distrito policial e/ou agentes públicos”. A ONG também cobra do Tribunal que disponibilize um espaço privado para que os presos possam conversar com o defensor ou o advogado antes da audiência.

Fundada no Brasil em 2001, a Conectas atua na defesa dos direitos humanos na América do Sul, na África e na Ásia. 

* Colaborou Flavio Costa.