Papa é sábio ao aceitar casados, diz padre gaúcho que teve matrimônio anulado
A avenida Monsenhor Paulo Chiaramont percorre por quatro quadras o centro de União da Serra (a 214 km de Porto Alegre). Nenhuma delas, no entanto, tem o poder concentrado na região da praça central. De um lado, a prefeitura do pequeno município. De outro, a Paróquia Santo Antônio.
União da Serra (RS) é o município mais católico do Brasil, segundo o IBGE (99,4% da população). Apenas 12 pessoas se declararam evangélicas em 2010, ano do último Censo, entre seus 1.620 habitantes. Seu pároco, Osmar Burille, 51, também tem um título único: o brasileiro que conseguiu a anulação do casamento para exercer o sacerdócio. Por dez anos ele viveu com uma mulher e tem uma filha, Samara, 24.
Essa autorização do Vaticano, de certa forma, antecedeu uma declaração do papa Francisco dada há duas semanas. O sumo pontífice, na ocasião, disse cogitar permitir que homens mais velhos casados sejam transformados em padres em comunidades isoladas. "Temos que pensar se os 'viri probati' [homens casados, de fé comprovada, que podem se tornar padres] são uma possibilidade. Então depois precisamos determinar quais tarefas eles poderiam assumir, como em áreas isoladas, por exemplo", disse ao jornal alemão “Die Zeit”. O papa, no entanto, descartou abrir o sacerdócio a todos os homens casados ou acabar com o compromisso do celibato entre os padres.
A cidade gaúcha passou pela dificuldade citada pelo argentino. Mesmo em um universo que contempla quase que só católicos, as duas paróquias do município (além da de Santo Antônio, a de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Pulador) estavam vacantes. O padre adoeceu, e outro representante era enviado às igrejas apenas em casos de morte ou de festa de padroeiros.
Burille, separado da mulher desde 1999, só pôde ser ordenado padre dez anos depois da decisão, quando o Tribunal Eclesiástico da Santa Sé declarou nulo seu casamento, o que o deixou livre para o sacerdócio --homens casados podem celebrar rituais da Igreja Católica, mas apenas como diáconos, o que os impedem de celebrar missas e consagrar hóstias.
“O papa Francisco é um sábio”, afirma o pároco de União da Serra. “Portanto, não descarta essa possibilidade. Sou a favor de padres casados por se tratar de uma vocação. Atualmente há uma grande necessidade de sacerdotes no Brasil e no mundo. A igreja não tem de ter medo de correr risco em ordenar homens casados. Somos humanos, e tanto o padre celibatário quanto o padre casado são formados homens de Deus, mas que vivem as circunstâncias do mundo em evolução.”
Samara, recém-formada em políticas públicas pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), compartilha da opinião do pai. "Acho interessante dar oportunidade aos padres casados e espero que, apesar de a Igreja Católica ser conservadora, a adesão das mulheres seja o próximo passo. Acredito que a orientação dele seria a mesma, independentemente de ser padre, pois ele sempre foi muito católico. O que influencia são as pessoas que me caracterizam como a filha do padre, como se eu tivesse feito os mesmos votos que ele, e isso me incomoda um pouco."
Sou a favor de padres casados por se tratar de uma vocação. A Igreja Católica não tem de ter medo de correr risco em ordenar homens casados. Somos humanos
O pároco é de uma família de 13 irmãos. Dois deles optaram pelo sacerdócio. “No tempo de minha infância, o padre vinha uma vez por mês rezar missa e eu gostava de sentar sempre no primeiro banco da frente para escutar o momento da consagração [da hóstia]. Havia decorado o rito”, diz.
Antes de casar, aos 22 anos, Burille trabalhou em uma fábrica de vitrais para igrejas, em outra de calçados, lavou carros e atendeu em um mercadinho. Em 1985, passou a fazer parte formalmente da igreja, ao ser convidado para ser ministro da Comunhão Eucarística, cujo mandato estendeu até 2008, ano em que recebeu a ordenação diaconal, anterior à consagração como padre.
Depois de separação, foi orientado a habilitar o processo de nulidade do matrimônio --pedido que passou pelo bispo da diocese de Passo Fundo, que atende as paróquias de União da Serra.
“Tenho muito respeito e sou feliz porque ela me deu uma filha. É pena que muitos matrimônios possam ser declarados nulos [e], pela falta de interesses e de orientação por parte da igreja, não utilizem essa possibilidade de recomeçar uma relação com a bênção e o acompanhamento espiritual. O casamento é um sacramento e sempre terá seu valor reconhecido. Nem Deus quer que os casais vivam de aparências sociais. É preciso encontrar um caminho menos penoso para cada situação.”
“Vocês estão na minha agenda”
Na outra ponta do país, em São Luís (MA), o português João Tavares, 76, diz nunca ter deixado de ser padre, embora esteja casado desde abril de 1979 e tenha duas filhas --de 32 e 33 anos-- e uma neta, de 10.
“Não abandonamos o sacerdócio que, segundo a teologia católica, é um sacramento que imprime caráter, como o batismo e o crisma e, portanto, é para sempre. Os que decidimos casar deixamos o ministério, o exercício clerical. Não por nossa vontade, mas porque essa era a condição para podermos casar na igreja. Infelizmente, a Igreja Católica do Ocidente ainda liga ministério sacerdotal com o celibato obrigatório. Mas isso vai mudar. Não sei quando, mas vai.”
Membro e ex-presidente do Movimento das Famílias dos Padres Casados do Brasil, Tavares tem mantido contato permanente com os setores da igreja. “Pelo que sei, de fontes oficiais e oficiosas, inclusive de nossos colegas em Buenos Aires, [o papa] Francisco sabe da existência dos grupos de padres casados. E tem mandado recados: ‘Fiquem unidos, vocês estão na minha agenda, mas ainda tenho assuntos muito grandes urgentes a tratar’.”
Segundo o sacerdote, o papa visitou em Roma um grupo de famílias de padres casados e respondeu, em carta manuscrita, a um colega argentino sobre a “sensação de abandono por parte da hierarquia”. “Essa carta deu origem a um livro com mais uma dúzia de cartas de padres casados argentinos ao papa: ‘Querido Hermano’”, diz.
Tavares permaneceu 11 anos celebrando missas, até decidir pelo matrimônio, em 1979. “Sofri por deixar o ministério. Gostava do que fazia. Mas a decisão foi muito bem amadurecida, por dois anos. Aceitei deixar o ministério, não porque não gostasse do sacerdócio e do meu trabalho na pastoral, mas porque o Vaticano, quando dá a dispensa para casar, obriga o padre a deixar o ministério.”
O papa Francisco sabe da existência dos grupos de padres casados. E tem mandado recados: ‘Fiquem unidos, vocês estão na minha agenda'
João Tavares, do Movimento das Famílias dos Padres Casados do Brasil
"Nossa luta é por um celibato opcional"
A Prelazia do Xingu é a maior do país. A área ocupada pela região diocesana é de 368.092 km², equivalente ao território da Alemanha. O tamanho não é a única dificuldade encontrada pela religião na região: é uma área de floresta amazônica, de garimpo, rios de difícil travessia e aldeias indígenas.
Segundo apurou a reportagem, o pedido para que o papa Francisco intercedesse para que homens casados pudessem celebrar missas partiu da prelazia, que passou o recado para o arcebispo emérito de São Paulo, dom Claudio Hummes, que o fez chegar até o Vaticano. A reportagem contatou Hummes e o bispo emérito do Xingu, dom Erwin Krautler, com quem conversou por telefone e enviou, a seu pedido, as perguntas por e-mail, não respondidas até a publicação deste texto.
Membros da prelazia queixaram-se com o papa da falta de padres para cuidarem das inúmeras comunidades e solicitaram a autorização para ordenar homens casados. A resposta foi a de que o assunto seria estudado e que dependeria da pressão dos bispos.
“Infelizmente poucos bispos do Brasil e do mundo se interessam pelos padres casados das suas dioceses. Salvo poucas e honrosas exceções”, diz Tavares, do Movimento das Famílias dos Padres Casados.
“Antes de permitir o casamento dos atuais padres ou o casamento dos que vão se ordenar nestes próximos anos, haveria outras possibilidades mais fáceis e imediatas: readmitir padres que casaram e que estivessem dispostos a voltar ao ministério, ordenar homens casados de boa vivência humana e cristã e bem aceitos em suas comunidades e ordenar padres os diáconos casados. Nossa luta é por um celibato opcional: antes da ordenação, quem quiser casa. Quem não fica solteiro.”
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