Topo

Ambulantes têm regras, encenam vendas e lucram com trabalho irregular em trens

Igor Augusto deixou o trabalho em uma gráfica, onde ganhava R$ 800 por mês, para se aventurar nos trens vendendo eletrônicos - Clayton Freitas/UOL
Igor Augusto deixou o trabalho em uma gráfica, onde ganhava R$ 800 por mês, para se aventurar nos trens vendendo eletrônicos Imagem: Clayton Freitas/UOL

Clayton Freitas

Colaboração para o UOL, em São Paulo

23/05/2017 04h00

Há seis anos, Gilcione Gonçalves Mendes, 27, resolveu mudar de vida. O pedreiro diz que cansou de receber seu salário com atraso todo mês e da forma hostil de como era tratado na obra onde trabalhava.

Decidiu então vender balas nos trens de São Paulo. O negócio prosperou e ele conseguiu comprar um terreno, erguer sua casa e, desde então, cria os três filhos com o lucro do que vende nos vagões.

No início, trabalhava com a mulher. Em 2012, chegaram a tirar R$ 1.100 por semana cada um. Com esse dinheiro, deu entrada em um terreno em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, financiou o resto e começou ele mesmo a erguer o lugar onde hoje vive com a família. 

A casa, de três cômodos e garagem, foi construída com o que ele ganhou em sete meses de trabalho.

Como não entendia nada de vendas, Mendes conta que pediu ajuda para outros marreteiros, como se denominam os ambulantes dentro dos vagões.

Hoje é ele que dá "aulas" e ajuda os novatos. "O sol nasceu para todo mundo. Desde que tenha respeito, pode vir que é garantido", afirmou.

Ele é apenas um exemplo dos cerca de 30 que a reportagem flagrou em 16 horas de viagens em dias alternados em linhas do Metrô e da CPTM.

Metrô ambulante - Clayton Freitas/UOL - Clayton Freitas/UOL
Gilcione Gonçalves Mendes deixa balas no colo de passageiros no metrô; com o lucro, construiu sua casa
Imagem: Clayton Freitas/UOL
Nesse período, nenhum foi abordado pelos seguranças, apesar de as vendas não serem permitidas dentro dos vagões. Por receio, alguns se negaram a falar, outros saíram correndo quando abordados e oito aceitaram dar entrevista e revelaram como é o esquema dentro dos trens.

Nem todos estão são desempregados. Alguns fazem o serviço para complementar a renda fixa. Outros até tentaram sair e entrar para o mercado formal, mas não conseguiram e voltaram à "marretagem".

Eles dizem que ficam no mínimo de três horas oferecendo os produtos, mas a jornada por chegar a 16 horas nos vagões. Alguns não saem nem para almoçar.

Oferecem os mais variados produtos aos passageiros de todas as linhas, exceto a 4-amarela, privatizada, onde os "urubus" (como chamam os seguranças) viajam embarcados. "Ali [linha 4-amarela] não dá e não tem gentileza, não. O negócio é na azul (1) e na vermelha (3)", diz Igor Augusto, 20.

Há um ano, ele deixou o trabalho em uma gráfica, onde ganhava R$ 800 por mês, para se aventurar nos trens. Conseguiu comprar um carro usado e viu seu rendimento subir para R$ 2.000. "No mínimo. Se tem novidade para vender, aí dá para tirar mais", afirma.

Wesley Ferreira, 23, tentou um emprego formal vendendo coxinhas no bar da mãe, aos 14 anos. 

Foi para o McDonald's, acabou sendo demitido e decidiu usar a experiência de vendas para começar a marretar aos 16 anos, negociando água e chocolate nos trens da CPTM.

"Era no isopor mesmo. Nos trens [da CPTM], não tinha tanto problema", conta. Aos 18, tentou abrir uma loja virtual, mas não conseguiu se manter e, um ano depois, estava de volta aos vagões. Só mudou o local, migrando para o metrô, mais rentável e "seguro", segundo ele diz.

Wesley Ferreira - metrô - Clayton Freitas/UOL - Clayton Freitas/UOL
Wesley Ferreira se pinta de prateado para ganhar mais dinheiro nos trens
Imagem: Clayton Freitas/UOL
Vendedores trocam de roupa e encenam vendas

A tática mais conhecida para vender é colocar o produto no colo ou nas mãos dos passageiros. É o jeito mais "eficaz" segundo os ambulantes, mas também o que mais incomoda os usuários.

"A pessoa fica constrangida e o preço é pequeno, então acaba comprando", diz Gilcione Mendes.

Outros apostam na roupa e no lado sentimental. Rafael dos Santos, 19, tem apenas duas semanas de experiência, mas diz que usa chinelos e roupas surradas como estratégia. Tímido, fixa o olhar nas pessoas com a esperança de atrair compaixão. "Se eu estiver mais relaxado, mostrando que estou precisando, os passageiros ajudam", afirma.

Como o comércio é irregular, os ambulantes vivem com o risco de serem pegos pelos "urubus". Para tentar evitar o "rapa", costumam deixar as caixas de produtos com alguém que fica sentado em um banco da estação.

Também fazem viagens curtas para não dar tempo de serem alvos de denúncias de passageiros. O vaivém pode durar apenas uma estação, minimizando um eventual prejuízo.

Uma manobra também usada é a do "vigarista", que conta com uma encenação entre dois "marreteiros". O primeiro oferece o produto, enquanto o segundo se passa por um passageiro e compra, enaltecendo o produto para estimular as vendas. Os dois descem juntos e dividem o lucro.

Nada substitui a lábia. Alguns usam o flerte como estratégia e mostram uma lista de telefones de passageiras com quem dizem ter já saído. "É a simpatia", gaba-se Igor Augusto. Eles também formam grupos no WhatsApp para avisar da operação dos seguranças.

"Código de conduta" veta produtos roubados

Apesar de ser uma atividade ilegal, os marreteiros seguem uma espécie de "código de conduta".

Entre as regras estão não vender produtos roubados ou que façam sujeira nos vagões; respeitar a vez de cada um; não reduzir o valor do produto se outro fizer o mesmo trecho e avisar os demais em caso de segurança reforçada.

O vagão mais disputado é o segundo, logo depois do carro em que viaja o maquinista, porque já deixa o vendedor perto das escadas ao descer nas estações.

Os entrevistados disseram que os piores dias para trabalhar são entre segunda e quarta-feira, sobretudo antes das 14h, quando os "urubus" entram nos vagões com mais constância e o risco de ter a mercadoria apreendida é maior.

O melhor dia é o sábado, quando, segundo eles, os passageiros estão nos trens por lazer e têm mais disposição em comprar. No domingo, a fiscalização é menor.

O dia de pagamento é tido por eles como o pior para as vendas, porque "ninguém tem dinheiro trocado".

Alguns trechos são evitados, como entre a estação Sé e São Bento, na linha 1-azul. "Todo mundo só entra já pensando em descer. Nem adianta querer vender nada", afirma Igor Augusto.

Flagra de ambulantes inclui vigia sem uniforme

Questionada sobre a presença dos ambulantes, a Secretaria de Transportes Metropolitanos informou em nota que atua para combater o comércio irregular, já que contesta a procedência dos produtos. A infração administrativa é passível de "retirada do usuário do sistema e apreensão da mercadoria". 

O Metrô diz que a quantidade de apreensões em 2016 quase dobrou, chegando a 12.172, 83% acima das 6.664 em 2015. Até abril deste ano, foram 4.188.

A empresa afirma que seu esquema de segurança é composto por 1.100 agentes e a rede é vigiada por 3.000 câmeras. 

Já a CPTM informou usar até seguranças sem o tradicional uniforme preto para flagrar vendas de ambulantes dentro dos trens. Mas não informou o número de apreensões.

Tanto o Metrô quanto a CPTM alertam para que o usuário não fomente esse tipo de atividade, já que pode adquirir "produtos que, em muitos casos, podem estar com o prazo de validade vencido".

As empresas também forneceram números de disque-denúncia. No caso da CPTM, para avisar sobre qualquer irregularidade, é necessário enviar um SMS para o celular 97150-4949 ou pelo 0800-055-0121. Já o número do Metrô é o 97333-2252.

Em ambos os casos, é necessário descrever as características físicas do ambulante ou infrator, a mercadoria que está sendo comercializada, o número do carro (vagão), a linha e a próxima estação.