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Tatuagem na testa e ofensa em voo: sociólogo aponta ampliação no 'padrão brasileiro' de linchamento

Jovem com a testa tatuada após ser acusado de roubo em São Bernardo (SP) - Reprodução/Twitter
Jovem com a testa tatuada após ser acusado de roubo em São Bernardo (SP) Imagem: Reprodução/Twitter

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

15/06/2017 04h00

Lançado em 2015, o livro “Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil” (editora Contexto) analisa 2.028 casos desse tipo de agressão, que aconteceram durante um período de 60 anos. Com base nas recentes tentativas de pessoas fazerem justiça da sua própria maneira, José de Souza Martins, sociólogo e autor do livro, considera haver uma modificação no “padrão brasileiro” de linchamento. 

Os casos examinados na obra tratam de agressões físicas: pessoas que foram espancadas, atacadas a pauladas, pedradas, pontapés e socos. Há também situações extremas de extração de olho, castração, extirpação das orelhas e cremação da vítima ainda viva. Duas situações recentes de muita repercussão --a tatuagem feita testa de um jovem e o ataque verbal à jornalista Míriam Leitão-- fogem desse modelo tradicional e apontam para novas formas de agressões, segundo especialista.

É sobre isso que fala o professor titular de sociologia e professor emérito da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), em entrevista concedida por e-mail.

UOL - Com tantas notícias sobre linchamento e o caso do jovem tatuado na testa, existe uma sensação de que esse tipo de ação aumentou. É uma sensação ou o aumento é real?

Sociologo - Marcos Santos/USP Imagens - Marcos Santos/USP Imagens
O sociólogo José de Souza Martins é autor do livro ''Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil''
Imagem: Marcos Santos/USP Imagens
José de Souza Martins - É difícil dizer se o número de ocorrências aumentou, pois a estatística é precária. Os indícios, porém, são de que a prática do linchamento vem sofrendo modificações na forma das agressões. O que indica o alargamento dos cenários dessa modalidade de violência e alargamento dos tipos humanos sujeitos a ela.

Na mesma semana dois episódios: o caso da tatuagem na testa do adolescente de São Bernardo do Campo (SP) sob pretexto, não comprovado, de que ele teria tentado roubar a bicicleta de um aleijado; e o caso da agressão verbal de que foi vítima a jornalista Miriam Leitão a bordo de um avião da Avianca num voo entre Brasília e Rio de Janeiro.

O caso de São Bernardo não é propriamente de linchamento, que é forma de justiçamento praticado por multidão. Nesse caso, a agressão foi praticada por duas pessoas, um tatuador profissional e um pedreiro. No entanto, os agressores, mesmo sem o saber, “prepararam” a vítima para o linchamento provável, colocando em sua testa a marca indelével [permanente] não de um crime, mas de uma condição, a de ladrão. É o estigma que, aqui, justificaria qualquer tipo de castigo, inclusive o da morte violenta.

O caso da jornalista tampouco é em si caso de linchamento. No entanto, a violência verbal, discriminatória e ameaçadora por uma turba de cerca de 20 militantes petistas, de que foi vítima, é o comportamento próprio dos dois primeiros momentos de um ato de linchamento. Ninguém pode dizer que não chegariam à violência física. Seguindo o “modelo” dos linchamentos brasileiros, poderia ter chegado.

Como define esse “modelo” de linchamentos brasileiros?

Em diferentes países, os linchamentos seguem um padrão que reflete a cultura e as tradições locais, as concepções que lhe são próprias de crime, justiça e castigo. No Brasil, é evidente, nos muitos casos que estudei, a influência remota das Ordenações Filipinas, no direito privado à vingança, e da Santa Inquisição, na frequência da queima da vítima ainda viva.

Os linchamentos brasileiros se desenrolam num processo que começa na perseguição à vítima, no apedrejamento, no espancamento, na mutilação e na cremação em espaço público. Em grande número, não é raro que o justiçamento seja interrompido nos primeiros momentos desse processo. Aqui, os linchadores se esmeram em impor à vítima o sofrimento lento, mais do que a morte rápida. O que reflete as concepções de castigo da escravidão.

O episódio da tatuagem na testa é diferente de um linchamento “tradicional”?

Sim, apenas no fato de mostrar que nesse caso o padrão brasileiro de linchamento está sendo modificado na direção da ampliação da sua dimensão propriamente ritual. No adolescente, os agressores colocaram a marca do bode expiatório, do condenado ao sacrifício humano. No caso da jornalista, o assédio e a agressão verbal indicam que a cultura do linchamento no Brasil está sendo ampliada por componentes político-ideológicos.

Miriam Leitão - Divulgação/TV Globo - Divulgação/TV Globo
A jornalista Míriam Leitão
Imagem: Divulgação/TV Globo
Sobre o “olho por olho, dente por dente”, o que leva as pessoas a agirem desta forma e por que isso não deve ser feito?

“Olho por olho e dente por dente” é forma arcaica de justiça, limitada ao justiçamento, em que uma suposta agressão é punida com o derramamento do sangue do punido. Nenhum dos dois episódios que menciono envolveu, na origem, agressão física. Mas a reação ocorrida se situa, no caso brasileiro, numa lógica que tem como modelo a agressão física como desfecho provável do processo punitivo.

No mundo moderno, a Justiça preconiza que o julgamento seja feito por um juiz neutro, uma instituição pública, um terceiro, que não é parte no caso julgado. A justiça moderna representa significativa evolução, enquanto o linchamento representa grave retrocesso a formas primitivas de vendeta.

A vingança difusa esteve contida nas duas ocorrências mencionadas, os agressores falando em nome de supostos injustiçados, ainda que a injustiça não tenha sido praticada pelo destinatário da violência punitiva. Os sujeitos supostamente injustiçados são apenas categorias abstratas. Enquanto que os agredidos são pessoas concretas de carne e osso, o típico bode expiatório.

Acredita que as redes sociais reforçam esse desejo por fazer justiça de forma paralela à Justiça tradicional?

No caso de São Bernardo, isso ficou claro. O vídeo feito pelos agressores dentro de uma hora tinha meio milhão de acessos. E já havia sido replicado em dezenas de blogs, com furiosas manifestações em favor do ato violento. Houve, também, manifestações contrárias, de pessoas indignadas com o ato de barbárie. As redes sociais têm tido, em geral, um papel nocivo na formulação e difusão de uma concepção antissocial da vida em sociedade.

Hoje muitos agressores gravam e divulgam os vídeos das ações. Por que acha que fazem isso, considerando que podem identificar os responsáveis pela ação? 

É uma combinação de ignorância e uso primitivo de meios modernos de difusão de informações. Quem age assim acredita na legitimidade da ação violenta e criminosa, que será, portanto, aplaudida pelos “bons”, os justiceiros.

Uma pessoa não considerada violenta pode participar de um linchamento, no calor da situação? Em outras palavras, qualquer um é capaz de fazer isso?

Em princípio, qualquer pessoa pode ser envolvida num ato de justiçamento, a punição de um culpado suposto ou real de um crime qualquer. Há um padrão instintivo de sociabilidade que aflora quando a situação social de circunstância e de emergência coloca os envolvidos em face de um dilema de urgência, movidos pela emoção e não pela razão, no sentido de cercear e até de eliminar o autor de suposto delito ou suposta injustiça.

É possível fazer com que esses atos parem ou pelo menos diminuam? Como?

A polícia tem contribuído significativamente para impedir linchamentos e com isso introduzir um tempo mais lento na reação dos linchadores, o que lhes dá a oportunidade de voltar à razão. Em meu livro, apresento dados sobre a durabilidade do ódio, que pode se estender por largo tempo, algumas horas, meses e até anos.

As interferências mostram que provocar um curto-circuito no processo de linchamento pode demorar de algumas horas a dois ou três dias para produzir o efeito de interromper o processo.

No entanto, há numerosas indicações de que um bairro urbano ou uma localidade interiorana que tenha praticado um linchamento, dentro de algum tempo, tem mais facilidade para praticar um segundo ou um terceiro linchamento. Na medida em que a Justiça formal se tornar mais ágil no julgamento de agressões mais comumente causadoras de linchamentos, a propensão para linchar deve diminuir. Mas não é isso que está acontecendo.

Por outro lado, as ocorrências vêm aumentando, cada vez mais causadas pelo uso impróprio de meios modernos de comunicação: a internet, a televisão, o rádio. Tudo isso pede estudos propriamente científicos e debates com especialistas.