Dependente tem total desprezo pelo corpo, diz "Drauzio Varella do crack"
Pela janela do automóvel as imagens vão se sucedendo, na periferia da zona leste da cidade de São Paulo: o garoto salta e vai se equilibrando sobre a tubulação metálica que vai levar ao outro lado do rio, ali embaixo, cheio de lixo; a mulher estende as roupas coloridas na laje, sob o céu azul; o bar da Arlete (com o mesmo nome da mãe do repórter, já morta) identificado pela inscrição da fachada; a face de Tim Maia (o cantor e compositor, também já morto) estampada no grafite do muro.
A reportagem caminha para dentro do universo das histórias dos personagens que habitam o livro "Crônicas do Crack" (Hedra, 2017, 215 páginas), do médico clínico e psiquiatra Luis Marra, 67.
Em elegante desalinho, paletó e sapatênis marrons, barba por fazer, óculos de grau com lentes fotossensíveis que mudam de cor, ele surge na recepção do Caps (Centro de Atenção Psicossocial, órgão da Prefeitura de São Paulo) de Guaianases, onde atende dependentes de álcool e drogas ilegais, como o crack. Pede para esperar um pouco: "Vou comer um pastel ali e já volto". Será o seu almoço.
Em nosso giro pelas ruas de Guaianases, bairro pobre de periferia, e áreas locais de consumo de crack, algumas pessoas vão surgindo e se entremostrando espontaneamente. Sobre a passarela, sobre os automóveis e os coletivos, mais perto das nuvens, surge o primeiro, alcoolizado e emotivo, cantando uma canção da banda de rock Ira!: "Mas essa vida é passageira / Chorar eu sei que é besteira / Mas, meu amigo / Não dá pra segurar".
O homem, que se chama Márcio, só diz não gostar muito do Edgard Scandurra, guitarrista e também letrista da banda. Em seguida faz um pedido singelo: "Você me dá um abraço?". E ele abraça forte, demorado, um a um de nós, e parte, outra vez cantando, quase chorando. "Essa vida é passageira..."
As inscrições nos muros vão lançando enigmas com jeito de Esfinge, decifra-me ou devoro-te: "O sistema é para dividir os iguais"; "Onde tá escrito que é pra atacar pedra na gente?".
Agora, no mercado municipal convertido em teatro grego, Marra se senta à mesa para discorrer sobre seu "Crônicas do Crack", que reúne relatos de dependentes de crack em narrativas literárias com uma pegada ensaística. Perfaz uma trajetória de atendimentos com cerca de 15 anos.
Na entrevista a seguir, o médico-autor fala também sobre o tratamento de dependentes e suas características próprias. Um bate-papo que contribui com informação contra os preconceitos que enfumaçam a correta abordagem do crack, essa droga hoje em evidência problemática.
UOL - O crack vai acabar algum dia?
Luis Marra - Não acredito. Droga sempre houve no mundo e sempre vai haver. Para mim, as drogas fazem parte da humanidade. O crack é apenas uma onda agora, está em evidência. Acho que o crack traz uma série de problemas para a sociedade, sim, mas não é o pior problema que a gente tem de saúde pública. Se você olhar para o álcool, o estrago dele no Brasil é muito maior do que o do crack. Mortes, doenças, muito pior.
Existe alguma particularidade do crack?
A particularidade do crack é que vicia muito rápido, alguns ficam viciados em dois ou três meses, o que não acontece com o álcool, que demora dois ou três anos. O crack vicia em menos tempo, mas em uma única vez de uso não. Isso não existe. Mas, como o crack possui uma fissura muito grande, os usuários, quando realmente são dependentes, deixam qualquer prazer de lado, o que buscam é algo que está sempre além de todos os limites.
Quando se entende a viagem do adicto grave de crack, percebe-se que é mais radical ainda do que a do alcoolista. Também pode ser comparada com a daqueles filósofos do início da era cristã, que aniquilavam o próprio corpo. Os primeiros monges que se autoflagelavam. O adicto grave tem total desprezo pelo corpo. O que ele deseja no fundo é se aniquilar.
A medicina banaliza demais. O crivo dela coloca todo mundo como uma mesma coisa, quer engessar a questão dentro dos parâmetros médicos. Tudo bem, existe a doença, mas além dela existe o símbolo. Quando alguém está nessa busca frenética pelo pote de ouro no fim do arco-íris, está transitando por símbolos do inconsciente, numa viagem que pode ir para a loucura.
Tivemos agora dois modelos no tratamento de crack em choque em São Paulo: o programa De Braços Abertos, que foi abandonado [programa da gestão do prefeito anterior, Fernando Haddad, PT], e o programa Redenção [adotado pelo novo prefeito, João Doria Jr., do PSDB]. Como você avalia as duas políticas?
O programa do Haddad foi muito bem-intencionado. Chegou a funcionar, sim, ajudou bastante gente. Mas há algumas falhas. A maior delas é colocar os caras [dependentes] em hoteizinhos muito próximos do local de ativa. Isso não deve ser feito, porque o adicto, como necessita de rituais, fica muito inquieto e isso desperta muito a vontade de uso. Não foi bem pensado.
Agora, o programa Redenção. Em tese, não sou contra querer internar dependente de crack. Se é que tem lugares bons para acomodar essas pessoas. O que acho absurdo é aquela tentativa do Doria de colocar o pessoal à força nas internações. É uma medida populista, para aparecer e não resolve. Mas, se é para internar pessoas voluntariamente, não posso dizer que é ruim. Muitos dependentes de crack precisam de internação.
A gente precisa de mais lucidez e um pouco mais de bom senso para entender que esse radicalismo não está funcionando. O que se vê é briguinha, picuinha política, é sectarismo.
A gente sabe que o PCC e outras facções proíbem o consumo de crack por seus integrantes, mas ao mesmo tempo são eles que comandam a venda. E a gente vê que o impacto social do uso de crack é muito brutal, gera problemas muito graves. Será que não deveria haver alguma ética do crime em relação ao aspecto destrutivo do crack?
Não, não existe ética nenhuma. O PCC não está nem um pouco preocupado com isso. Eles estão querendo é vender mesmo e ganhar dinheiro. É um negócio bem capitalista, só que do lado da ilegalidade.
A proibição do consumo do crack [entre integrantes da facção] se deu por dois motivos. Um deles é que, nas cadeias, como o crack é aditivo, desorganiza muito os usuários e faz com que o comando perca o controle das pessoas. Inclusive, das rebeliões.
Só que existe um outro motivo, que é mais social. O próprio crime precisa ter uma classe inferior à deles. Assim como o capitalista tem o proletariado, o bandido também precisa ter o que é inferior a ele.
Vender é perfeitamente ético para o PCC e dá muito, muito lucro, porque o crack é caro e custa relativamente muito pouco para ser produzido. E como em crack as pessoas se viciam rapidamente, e é raro alguém morrer de crack, então vai se criando um mercado imenso.
No seu livro, a mitologia serve como exercício de compreensão humana, de fatos modernos e pessoas contemporâneas. Por que a mitologia é necessária hoje em geral e também no tratamento dos dependentes de crack?
A mitologia é uma forma simbólica de a gente falar sobre nós mesmos, nossos complexos, nossa psique, nossa natureza. A relação que o adicto estabelece com a droga é semelhante à vida mítica de Dionísio, ou Baco. É como se o adicto fosse possuído simbolicamente por Dionísio. As próprias fantasias dos adictos remetem a um estado de possessão. Isso, inclusive, é banalizado de forma indevida, como se a droga fosse um demônio, as igrejas evangélicas fazem isso.
Você também aproxima o dependente da própria arte de atuar, do teatro.
Sim, porque, quando a gente fala em atuar, fala de ser o outro, basicamente isso. Você atua quando quer ser o outro, sendo que o outro é você mesmo. Você sai de si, se desloca e assume algum personagem ou algum outro lado teu. O grande prazer na atuação é o de você ser outro. Na drogadição também ocorre movimento semelhante. Só que esse deslocamento para ser o outro na drogadição se dá através da droga, é ela que permite esse afastamento que inebria. No fundo, todo adicto representa, mesmo sem o saber. Ser adicto implica saber atuar até na malandragem, na sacanagem, para conseguir uma dose.
Acredito que foi esse universo simbólico que te atraiu. O combate também ao reducionismo da medicina, a observação da complexidade humana.
Sim, sim. Em "O Canto da Noia" [história que abre o livro "Crônicas do Crack"], você encontra, por exemplo, um personagem romântico. Ele pode morrer? Pode. Ele está doente? Está, mas e daí? Muitos de nossos poetas românticos morriam de absinto, de alcoolismo. Naquela época era até elegante e chique morrer jovem. Os poetas românticos não cuidavam da saúde. Eles se autoflagelavam de outra maneira, não religiosa, mas profana. O adicto se autoflagela também. Ele se distancia do próprio corpo.
Por isso que o teatro é extremamente terapêutico. Através do teatro, você aproxima o cara da realidade usando o mito. Por exemplo, o adicto despreza o corpo, então a gente vai fazer trabalhos corporais, de conscientização corporal, relaxamento, massagem, trabalhos de educação física que façam com que esse cara vá recuperando a consciência corporal.
Alguns dependentes de crack dizem isso de ser possuído, de "virei um monstro", e também uma outra coisa que ouvi, na voz de uma senhora, que estava havia muitos anos na região da cracolândia no centro de São Paulo: "Hoje sou uma pessoa melhor". Pessoa melhor, como?
Se pegar o álcool, por exemplo. Não existe nenhuma possibilidade de um governante baixar a Lei Seca no Brasil, porque o álcool está intimamente ligado à nossa identidade cultural. Então é muito fácil ver positividade no álcool: propicia reuniões, encontros, a gente curte, elege as nossas bebidas prediletas e ninguém vai ser contra isso. Quer dizer, tem um lado bom. E tem um outro lado também que pode levar à doença do alcoolismo. Acontece que o mesmo ocorre para outras drogas, inclusive a cocaína e até o crack.
Nem todo mundo que usa crack se arrebenta. Nem todo mundo que usa crack vai para o fundo do poço. Isso é preconceito, é ignorância. Tem gente que acha que todo mundo que usa crack vira viciado. Mentira. É uma minoria que fica viciada. [O lado negativo] foi conferido pela ilegalidade, só que é uma bobagem: o legal ou ilegal é indiferente, é tudo a mesma coisa. Agora, tem diferenças específicas. O crack é mais viciante, então é mais perigoso, os cuidados têm de ser grandes.
É muita mentira que é dita o tempo todo. Até os próprios adictos contam mentiras a respeito deles mesmos. O nível de preconceito é tão grande que se introjeta no próprio usuário e dependente. Trabalhar com drogadição, hoje, é lutar contra preconceitos. Trabalhar terapeuticamente com adictos é criar condições para vencer essas barreiras.
A droga acaba atraindo mais esse tipo de perfil? Faz algum recorte entre as pessoas?
É uma irresponsabilidade dizer que só fica drogado quem tem uma genética para drogadição. Qualquer pessoa pode ficar. Só que algumas pessoas têm mais predisposição do que outras, são mais propensas e vulneráveis.
Em alguns adictos verdadeiros, a gente encontra um lado criativo, que chamo de buscador de novidades. Pessoas que nunca estão satisfeitas com nada, estão sempre querendo mais. É uma inquietação muito grande.
E o ritual do crack?
Tem um vídeo, de um humorista maravilhoso, o Márcio Américo, que foi usuário de crack e morou na cracolândia [do centro de São Paulo]. No vídeo ele fala da importância do ritual. Não é só ter a sensação da pedra, ele precisa do cachimbo, do entorno, limpar o cachimbo, tem de ficar pensando o tempo todo no cachimbo, trocar gírias com os companheiros, tem de estar naquela "muvuca" toda. Isso tudo é que vai potencializando o prazer. Não é apenas a droga. E cada droga tem um ritual. A maconha e o álcool também. O bar, por exemplo, ritualiza o consumo de álcool. A droga em si não é nada.
Veja "A Real da Cracolândia", por Márcio Américo
A cracolândia como espaço relacional, de diálogo, a constituição de uma sociedade alternativa, isso é fato?
É um excesso romântico também, que não tem fundamento. É uma apropriação indevida. O pessoal ficou politizando a cracolândia.
Mas uma coisa é verdade: existe um sofrimento muito grande nessas pessoas. Ali tem gente se arrebentando mesmo, que vai morrer. De violência, facada, tiro, de doença oportunista. É um problema de saúde muito grave.
Então, a cracolândia, como espaço relacional para uma sociedade alternativa, não funciona. A negatividade é muito grande. Tem um altíssimo risco ali. Não seria o espaço adequado de jeito nenhum.
Eu, como médico, trabalho com a dor e o sofrimento humano e vejo que realmente a drogadição pesada costuma levar muito sofrimento, muito, muito.
A questão de ser médico tem também esse lado de conservação. A sua busca como médico que trata adição, no caso do crack, em específico, como é?
Quando o médico está diante do dependente de crack, tem poucos recursos para tratá-lo em termos médicos. Assim, é muito diferente do que tratar uma doença, como a tuberculose. Se tem alguém que é tuberculoso, receita, toma o antibiótico, beleza, curou. O crack, não.
Não existe remédio que você dê para o cara e ele pare de usar, para que não tenha mais vontade. Para que se trate o indivíduo dependente de crack, precisa de um sistema de tratamento que vá além do modelo médico. Por isso que a gente precisa ter equipes multiprofissionais. A gente usa arte, esporte, terapia de grupo, senão, não consegue nada. Não é uma doença comum.
Às vezes a medicina é muito arrogante. Na área de drogadição todo mundo tem de ser humilde, porque ninguém monopoliza a verdade nem o tratamento definitivo.
A medicina se tornou uma fonte de histórias para você. Seus atendimentos são base também de outros livros [Além de "Crônicas do Crack", também "O Coletivo Aleatório" e "O Diário Perdido do Jardim Maia"].
Qualquer médico, em qualquer lugar do mundo, tem a seu alcance histórias espetaculares. A questão não é a existência dessas histórias, é como você busca, é isso que faz a diferença toda. Porque tem médico que só vê a bitola da medicina, a bitola acadêmica, não enxerga história nenhuma. Banaliza tudo.
Mas tem alguns que veem, o caso do Drauzio Varella [autor de livros, como "Estação Carandiru", sobre presos do antigo complexo do Carandiru], por exemplo, o meu. A gente tem um interesse nas pessoas. Você olha para elas como sendo ricas, porque elas de fato são. Por mais doente e mórbido que o cara seja, tem uma riqueza muito grande. Pode ser um assassino, um bandido, mas por trás tem uma história incrível.
Você tem uma crença na medicina mais clássica, medicamentosa, e também naquilo que é extra medicina, não é?
O extra medicina é que deu um gás para isso. Se fosse só medicina, não escreveria. Esse livro jamais seria escrito por um médico que só pensasse em medicina.
Aliás, um médico não deve pensar só em medicina.
Não. É uma estupidez. Um médico que só sabe medicina é um péssimo médico. Tem de sair dela. Essa é a grande diferença.
O tema da culpa também aparece no livro, como possibilidade de tirar dali a sua própria cura. É isso?
Isso tem a ver com o mito de Quíron. Aliás, o espaço terapêutico que estou montando em Atibaia (SP) se chama Quíron. Ele é o centauro da mitologia grega. E o centauro é o grande curador. O centauro Quíron é quem ensina a arte da medicina para Asclépio, filho de Apolo, que é o primeiro médico mitologicamente falando. Quíron só se tornou um curador porque tem uma ferida incurável. A ferida dele nunca sara. Você cura a dor do outro que você também sente. Tem que sofrer para poder entender o sofrimento do outro.
Você já usou crack?
Não, nunca, mas tenho curiosidade.
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