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MP: omissão de seguranças diante de espancamento revela "lado mais perverso do racismo"

Diogo Cintra foi espancado depois de pedir socorro a seguranças do terminal Dom Pedro - Danilo Verpa/Folhapress
Diogo Cintra foi espancado depois de pedir socorro a seguranças do terminal Dom Pedro Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

23/11/2017 04h00

O Ministério Público de São Paulo divergiu da Polícia Civil e analisou que a agressão a um jovem negro sob a aparente complacência de funcionários de um terminal de transporte público pode representar crime de injúria racial mesmo que não expressada verbalmente.

O entendimento é do promotor Alfonso Presti, designado nesta quarta-feira (22) pela Procuradoria-Geral de Justiça para acompanhar as investigações sobre o espancamento do ator negro Diogo Cintra, 24, na noite da última sexta (17). Para ele, o caso revelou "o lado mais perverso do racismo", já que o poder público, em vez de proteger o cidadão, teria se omitido em relação à violência contra ele.

Cintra foi espancado na madrugada da última quarta-feira (15) por um grupo que o havia assaltado próximo ao terminal Parque Dom Pedro. Antes das agressões, ele chegou a pedir ajuda a seguranças do terminal, mas eles ouviram do grupo que assaltara Cintra que o rapaz teria sido o assaltante deles. Com isso, permitiram que o jovem fosse arrastado pelo bando para apanhar do lado de fora do Dom Pedro.

Racismo pode ter sido "impressão pessoal", diz delegada

Para a delegada que chefia o inquérito no 1º Distrito Policial, Gabriela Carvalho Pereira, o racismo alegado pelo ator pode ter sido uma “impressão pessoal dele”, uma vez que, segundo a policial, a vítima negou que tivesse sido proferida alguma palavra que exteriorizasse racismo. “A injúria racial tem que ser externada por palavras, mas estamos apurando e ainda não estou dizendo que não teve”, declarou a delegada, na última terça (21), depois de tomar por cerca de seis horas o depoimento de Cintra.

A ação foi flagrada por câmeras de segurança, e os funcionários envolvidos no caso, segundo a Secretaria Municipal de Transportes, foram afastados.

Para o promotor, ainda que a vítima não tenha ouvido xingamentos, a aparente omissão dos seguranças do terminal –tanto ao sugerirem que ele corresse, em vez de chamarem a polícia ante o relato de assalto, quanto ao permitirem que fosse levado, como suposto ladrão, para a sequência de agressões --, por si, já configura a injúria racial por omissão.

“São três situações sob investigação: a própria conduta dos que o agrediram, a conduta da segurança a quem ele pediu ajuda, mas que o mandou correr, ao invés de acionar a polícia – o que trouxe risco não só ao Diogo, como aos demais usuários e mesmo ao patrimônio do terminal –e a omissão dos seguranças diante das agressões contra a vítima. Queremos entender em que medida essas condutas estão eivadas por preconceito em razão da cor da pele”, explicou Presti.

“A algumas pessoas e situações, a lei exige que elas se portem no sentido de evitar esse tipo de discriminação. O rapaz era um usuário do terminal, pouco importa a cor da pele. O que parece crucial entender é que já a não intervenção e a não ação no sentido de não se chamar a polícia podem revelar também questão de discriminação racial – e havendo, será proposta a responsabilização pela omissão desses agentes”, ponderou.

“A exteriorização desse racismo vem não só com o xingamento –o que configuraria a injúria –ou com o impedimento de algum direito em função da cor –seria aí a discriminação racial --, mas mesmo pela maneira como isso é feito. Imagine a seguinte situação: em público, alguém se dirige a um grupo de cinco pessoas. Cumprimenta quatro delas, uma a uma. Na quinta, seja alguém de cor ou condição social diferente da dela ou das demais, se recusa a estender a mão, mesmo não dizendo nada. Essa omissão também é penalizável”, exemplificou.

MP pode responsabilizar também Município

Presti destacou que, no caso de Cintra, a Promotoria considera pedir a responsabilização penal dos seguranças por injúria racial por omissão, bem como pelos danos à integridade da vítima.

Um outro procedimento, na Promotoria de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, deverá cobrar medidas institucionais por parte do Município, a fim de se trabalhar a orientação a funcionários quanto a temas como o racismo.

“Esse tipo de conscientização já é feito, por exemplo, em relação ao combate ao assédio sexual no Metrô e na CPTM [Companhia Paulista de Trens Metropolitanos]. Machismo, racismo e homofobia são três pilares estruturantes de intolerância que a gente pratica, muitas vezes, sem nem saber – por isso é imprescindível entender esse padrão de comportamento e traçar campanhas de sensibilização. Ser agredido sob os olhares e a complacência do Estado é enxergar o lado mais perverso do racismo, mais escancarado – porque é o poder público se negando a intervir, sendo que ele teria a obrigação imediata de evitar essa situação”, concluiu.

Também essa semana, a Polícia Civil cobrou da SPTrans os nomes dos seguranças envolvidos no caso para que, mesmo afastados do trabalho, eles prestem depoimento.

"Ações foram racistas", avalia ator

Ao UOL, depois de depor, Cintra admitiu que não ouviu palavras racistas, mas ponderou que “as ações foram racistas”.

“Não é porque eu não fui xingado em razão da cor da minha pele que não teve racismo na situação: as ações foram racistas, o que, para mim, é até pior. Racismo eu já sofri ao longo da minha vida, mas o que é dito mais me fortalece que me ofende; tudo o que eu sofro eu coloco no meu trabalhado”, disse. “O pior é negarem ajuda para você dentro de um estabelecimento público em que eles são obrigados a nos proteger – mas preferiram achar que eu era o bandido”, completou.

“Os caras me espancaram na frente deles [seguranças]. A ação é racista, sim, porque qualquer outra pessoa branca sairia ilesa, pois os funcionários iriam protegê-la”, relatou.

Sobre o que espera com a exposição do caso e com as investigações, ele diz: “Eu até quero acreditar na nossa Justiça, mas não consigo, porque já vi muita coisa. Por mais que agora eu saiba que estão empenhados, minha desconfiança quanto ao desfecho disso é enorme –porque não tinha nenhuma palavra sobre racismo, não foi racismo? A gente está perdido”, considerou.