Promotoria investiga bloco de carnaval em SP que celebra órgão da ditadura militar
O Ministério Público de São Paulo abriu procedimento para investigar a criação de um bloco de carnaval, na capital paulista, denominado “Porão do Dops 2018”. O evento foi divulgado pelo perfil do movimento “Direita São Paulo”, mês passado, ilustrado com uma foto de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Dops de São Paulo entre as décadas de 1960 e 1970 e morto em 1979.
O Dops é a sigla do Departamento Estadual de Ordem Política e social, um órgão do regime militar brasileiro. Fleury foi acusado por diversas testemunhas de implementar um regime de tortura durante os interrogatórios que comandava no Departamento.
O procedimento no Ministério Público foi aberto nessa segunda-feira (15) pelos promotores Beatriz Budin Fonseca e Eduardo Ferreira Valerio, para os quais a criação do bloco representa apologia ao crime de tortura. Eles ainda requisitaram à Polícia Civil a instauração de inquérito que apure o caso.
O UOL tentou entrar em contato com representantes do "Direita São Paulo" para comentar as acusações da Promotoria, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Apesar das ponderações do Ministério Público e da presença da imagem de Fleury no material de divulgação, o texto do evento, em si, não faz a defesa da prática de tortura.
No evento propagado pela rede social, o movimento anuncia o bloco para próximo dia 10, sábado de carnaval, com ingressos a R$ 10 e a promessa de “cerveja, opressão, carne, opressão e marchinhas opressoras”. “Se você é anticomunista, não pode perder! Venham à caça, soldados!”, dizia a descrição ainda nesta terça-feira (16).
Inicialmente, os organizadores previam que o evento fosse realizado em um restaurante no bairro da Água Branca, zona oeste de São Paulo. Após a repercussão nas redes sociais, semana passada, contudo, o dono do estabelecimento teria desistido de abrigar o bloco. O evento foi mantido, segundo o movimento, mas sua localização só será divulgada “poucos dias antes”, apenas para interessados que se inscreverem previamente.
Grupo se afirma vítima de intolerância
Em vídeo postado na página do “Direita Brasil” no último dia 9, o vice-presidente do grupo, Douglas Garcia, comentou a desistência do restaurante, mas garantiu que o bloco será “na rua, em lugar público” e “fixo”, o que, na avaliação dele, não demandaria “toda aquela burocracia da Prefeitura”.
“Infelizmente a intolerância venceu”, disse Garcia. “O Brasil não é um pais democrático. Pode ter bloco soviético, mas não pode para o Dops”, disse.
O Bloco Soviético a que o ativista se referiu, entretanto, anunciou no final do ano passado que não desfilará no carnaval de rua paulistano nesta edição por conta da “burocracia” da atual gestão municipal. Conhecido por seu viés político, o Soviético chegou a reunir 20 mil pessoas no Carnaval de 2017. "Vamos pra Cuba, como todo mundo acha que gente de esquerda deve fazer. Vamos. Mas voltaremos. 2019 estaremos de volta!", escreveram os organizadores na página do bloco nas redes sociais.
O UOL tentou contato com Garcia, do "Direita São Paulo", mas ele não foi localizado.
Bloco “excede a liberdade de expressão”, diz Promotoria
Os promotores ponderaram que, embora “a liberdade de expressão seja direito previsto no inciso IX, artigo 5º da Constituição Federal”, não há “garantia constitucional absoluta, de modo que as liberdades públicas devem ser exercidas de maneira harmônica, respeitando seus limites explícitos e implícitos. É evidente que o exercício da liberdade de expressão deve observar os princípios que visam à manutenção da ordem pública e dos direitos humanos fundamentais”, escreveram no procedimento.
“No presente caso, o que excede a liberdade de expressão não é a existência de um bloco carnavalesco que exalte posicionamentos políticos ligados à direita, seus símbolos ou mesmo pensadores que justificam este posicionamento político; isto é legítimo e insere-se nas garantias constitucionais. O excesso que deve ser coibido e que viola direitos fundamentais se relaciona à divulgação e à apologia da tortura, que se expressa, dentre outras maneiras, na nomenclatura do bloco, que exalta o espaço físico (porão do DOPS) onde a Comissão Nacional da Verdade apontou que aconteciam sessões de tortura contra opositores ao governo militar e que deixou de existir ao final do regime de exceção”, justificaram os promotores na portaria que instaura o inquérito preparatório.
O MP pede ainda que sejam retiradas referências ao Dops e ao delegado Fleury. "Em especial, recomenda-se que sejam removidas da divulgação do bloco carnavalesco as expressões 'Porões do DOPS' e a menção a nomes e imagens de notórios torturadores, tais como o Coronel Ustra ou outros, como o Delegado Sérgio Fleury. Tudo de modo a se garantir a liberdade de expressão do pensamento dos adeptos do bloco, mas assegurando-se o respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal".
Em entrevista o UOL, o promotor Eduardo Valerio declarou que o anúncio do movimento de que o evento será realizado em via pública reforçou outro encaminhamento do Ministério PúblicoP: a recomendação, à Prefeitura de São Paulo, de que “não conceda alvará” a esse tipo de bloco.
“Não há como ser realizado um evento desse no espaço público sem a disciplina do poder municipal. Um grupo, seja qual for o viés ideológico, não pode fazer apologia e publicidade enaltecendo a tortura – e como isso é crime, até por uma questão de coerência, pedimos à Polícia Civil que também investigue”, declarou o promotor.
Até esta terça, pouco mais de 2 mil pessoas, por meio da página do evento no Facebook, haviam manifestado interesse ou confirmado presença no bloco.
Prefeitura diz que não há autorização a bloco
Procurada, a Prefeitura de São Paulo, por intermédio da assessoria de imprensa da Secretaria Municipal das Prefeituras Regionais --pasta responsável pela organização dos blocos de carnaval em São Paulo --, informou que o bloco não está inscrito e, portanto, não pode participar do carnaval de rua da cidade.
A secretaria ressalvou, no entanto, que não há impedimento, por parte da prefeitura, de que o evento seja realizado em ambiente fechado caso o estabelecimento possua alvará que permita a realização da festa. A Prefeitura afirmou ainda que não fiscaliza temas de blocos e que essa tarefa cabe ao Ministério Público.
* Colaborou Mirthyani Bezerra, em São Paulo
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