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Cidadão comum que sai armado tem mais chance de morrer, diz autor do Mapa da Violência

O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz pesquisa violência no Brasil desde os anos 1990 - Leo Caldas / Valor / Folhapress
O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz pesquisa violência no Brasil desde os anos 1990 Imagem: Leo Caldas / Valor / Folhapress

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

03/02/2018 04h00

Tem lugar de relevo, na história dos estudos sobre violência e segurança pública no Brasil, um argentino nascido em Buenos Aires há 79 anos, filho de judeus poloneses que fugiram para a Argentina em 1944 a fim de escapar da perseguição nazista e da morte na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45).

Julio Jacobo Waiselfisz, hoje coordenador de estudos da violência da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e vivendo em Recife, é autor de um trabalho pioneiro de coleta, organização e consolidação de dados de homicídios no Brasil.

É de 1998 a primeira edição do Mapa da Violência, publicação que permitiu a observação (e o estudo para elaboração de políticas), ano a ano, de como e onde se matava e se morria no Brasil. Um espelho que revelava a face hedionda do país, negando a imagem autocriada do homem cordial brasileiro.

Por telefone da capital pernambucana, Waiselfisz, crítico de políticas que incentivem o armamento da população civil, se mostra taxativo sobre o assunto. "O indivíduo comum que sai à rua armado tem 60%, 70% mais chances de morrer em caso de conflito", explica, citando pesquisas.

O sociólogo também se posiciona contra propostas de redução da maioridade penal e diz que o problema é de educação e não de segurança.

Ainda analisa a crise do sistema penitenciário brasileiro e vê o excessivo encarceramento como incentivador do próprio crime organizado. "Se encarceraram 720 mil [total hoje de presos, segundo o Ministério da Justiça], e a violência diminuiu? O tráfico diminuiu? Não é isso que se vê."

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

"Quem sai armado tem 60%, 70% mais chances de morrer em conflito"

Há uma estratégia de mercado, das grandes organizações de fabricantes de armas de fogo, que difunde o mito de mercado de que arma de fogo protege. Há estudos realizados, de organizações sérias, até, por exemplo, da Rand Corporation [entidade com sede nos Estados Unidos que faz estudos na área de Defesa e representa interesses da indústria de armas], que ninguém pode dizer que seja uma organização de esquerda, que chegam mais ou menos a estas conclusões: o indivíduo comum que sai à rua armado tem 60%, 70% mais chances de morrer em caso de conflito.

Isso, por vários motivos. Primeiro, o indivíduo, o cidadão honesto que sai armado à rua não sabe manejar muito bem uma arma de fogo. Não é especialista em armas. Segundo, ele leva a arma no coldre. No tempo que ele demora para abrir o casaco e tirar a arma de fogo, ele já foi morto cinco vezes por um malandro, que chega de arma em punho e não no coldre.

A mim me aconteceu um caso emblemático. Eu estava em um carro com minha mulher e de repente me corta um outro carro e dele descem quatro pessoas. Na hora, eu pensei, não sei de onde que saquei, que eram da polícia, pela forma de abordar. Aí tirei a mão [do volante] para pegar o documento do carro e o cara me botou uma [pistola] .45 na cabeça: "Cuidado com o que vai fazer!".

Quer dizer, os caras descem de arma em punho. Para o criminoso, é matar ou morrer. É o mito do enfrentamento. Arma foi feita para matar, não foi feita para outra coisa. Um martelo foi feito para pregar um prego, mas pode matar? Pode. Até uma cadeira pode matar. Tudo pode matar. Mas uma arma de fogo foi feita exclusivamente para matar e para isso é utilizada. Há um mito de que quem tem arma de fogo se defende, mas na verdade tem muito mais chances de morrer.

Tiroteio na Cidade de Deus interdita a Linha Amarela, no Rio - Roberto Moreyra/Agência O Globo - 31.jan.2018 - Roberto Moreyra/Agência O Globo - 31.jan.2018
Tiroteio na Cidade de Deus interdita a Linha Amarela, no Rio
Imagem: Roberto Moreyra/Agência O Globo - 31.jan.2018
"Nosso problema é de educação e não de maioridade penal"

Também tem um outro mito que circula com pouco fundamento: o da redução da maioridade penal [como forma de combater o crime e aumentar a segurança]. Vamos reduzir a maioridade penal para 16 anos [hoje é de 18 anos], e as organizações criminosas vão começar a recrutar meninos de 15 anos; vamos reduzir para 14 anos, e as organizações criminosas vão começar a reduzir o recrutamento para 13, 12 anos. Até quando vamos fazer isso?

O problema não é se o jovem tem 13, 14, 15, 16 anos, o problema é como educamos o indivíduo para que siga e seja incorporado pela cidadania. Nosso problema é de educação, de controles sociais, de como criamos uma consciência na cidadania de comportamento social. Isso acontece aos 12, aos 14, aos 16, aos 18 anos, não tem prazo marcado.

"Não incorporamos nosso jovem à sociedade"

Nossos jovens estão morrendo mais do que nunca basicamente porque não temos políticas de incorporação deles à sociedade [segundo o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o índice de assassinatos de jovens brasileiros de 12 a 18 anos tem batido recordes históricos e é, segundo o mais recente IHA (Índice de Homicídios na Adolescência), o mais alto da história.]

Apesar de o Brasil ter conseguido universalizar o acesso ao ensino fundamental, que é uma façanha histórica que pouco se comenta, a questão da educação ainda não se resolveu. Foi implementada uma educação com baixo nível de qualidade, que não gerou correspondência entre educação e emprego, não gerou posto de trabalho. Não se garante que um aluno que terminou o segundo grau, por exemplo, vai ter trabalho. A crise econômica e do trabalho acabou resultando num desengajamento da juventude das estruturas formais de trabalho, emprego e renda.

Praticamente não temos hoje evasão escolar no ensino fundamental, é muito baixa, mas extrapola todos os limites no ensino médio. Não temos estrutura de retenção no ensino médio, nem estruturas econômicas, nem de interesse. Já fiz muita pesquisa com os jovens, trabalhava à época na Unesco, [perguntando] por que o jovem abandona a escola. [Abandona] Porque o ensino não interessava. O ensino médio não consegue profissionalizar o jovem. Com o ensino médio, o jovem não faz nada. 

O ensino médio também não é motivador, o jovem quer sair da sala de aula. Se não tem nenhum tipo de estímulo, nem econômico, nem intelectual para seguir estudando, o jovem não vai seguir. Abandona, ou termina de forma ruim no sentido de que não assimila conhecimento fundamental que deveria ter para a vida e o trabalho.

Mapa da Violência, pioneiro: "Até então não havia estatísticas"

Na época da criação do Mapa da Violência [o primeiro saiu em 1998], eu estava estudando a violência no Brasil e não tínhamos indicadores com foco no tipo da violência. Não havia à época nenhuma estatística de violência, nem do Ministério da Justiça, nem da polícia sobre homicídios etc. Os primeiros Mapas tinham o foco em "mortes violentas no Brasil': homicídios, suicídios, acidentes de trânsito e mortes por arma de fogo, dentro do capítulo homicídios. Pegávamos esses dados e os comparávamos com os dados da OMS [Organização Mundial da Saúde], que tem um banco internacional de homicídios. Desde essa época, o Brasil sempre esteve nos primeiros lugares das taxas de homicídio. Isto é, estava em segundo, terceiro, quarto, quinto lugares.

mapa violencia - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução
Isso caracterizava o Brasil como país violento, apesar da prosa, do verso, da canção brasileira, aquilo do "Meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro" [versos de "Aquarela do Brasil", canção de Ary Barroso], do mito que existe do brasileiro bonzinho, boa-praça, pacífico. Os indicadores mostravam que havia um fundo pouco estudado e trabalhado, e a inteligência local, as universidades não estavam produzindo materiais tentando explicar essa violência.

Daí veio o primeiro Mapa, na Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], onde eu trabalhava como coordenador da área de ciências sociais, em convênio com o Ministério da Justiça. Então combinamos que a Unesco produziria as estatísticas da violência para fundamentar ou poder trabalhar políticas públicas de enfrentamento da violência. Depois saí da Unesco e o Mapa mudou [de entidade], porque o estudo era uma questão pessoal e não institucional, não cobrava nada para fazê-los.

[O Mapa da Violência não saiu pela primeira vez em 2017, como decorrência, cita o sociólogo, da publicação do Atlas da Violência, organizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, órgão do governo federal) com os mesmos critérios adotados pelo Mapa. O pesquisador diz que não foi consultado pelo Ipea sobre o estudo e lamenta o fato.]

"Em 30 anos, triplicamos a taxa de homicídios no Brasil"

Em 1980, aproximadamente, registrávamos no Brasil 10, 11 homicídios em 100 mil habitantes por ano e a triplicamos, chegando praticamente a 30 homicídios por 100 mil habitantes [2014, 2015]. São taxas bem insuportáveis para um país. Há uma lógica que se tem de fazer por trás dos homicídios, que é a leitura social deles. Os homicídios impactam a população, nas idas e vindas da cidadania, no enfrentamento da realidade.

Sinteticamente falando: de 0 a 2 homicídios por 100 mil habitantes por ano é uma taxa civilizada. É a taxa de países avançados da Europa, tipo Inglaterra, França. Até aproximadamente 5 homicídios em 100 mil habitantes se cria um panorama de equilíbrio e de confiança. Quer dizer, a cidadania não tem medo da violência, nem de sair à rua. Não tem desconfiança.

De 5 a 10 homicídios por 100 mil habitantes se produz uma quebra. Começa a aparecer o temor, a cidadania começa a criar alguns estereótipos de autolimitação: "Filho, não convém sair à rua a essa hora, é perigoso"; "Não deixa o carro estacionado ali, porque podem roubar". Começa a realidade do medo de estar fora de casa.

De 10 homicídios por 100 mil habitantes para cima, há uma quebra total. Diante de qualquer estranho, começa-se a criar a mitologia do roubo, da agressão etc. Aparecem as primeiras instituições de prevenção à violência, polícia para solucionar homicídios e grandes recursos começam a ser investidos para prevenir essa violência. A cidadania não sai à rua, porque a rua se converteu em elemento perigoso. Só se sai à rua em lugares específicos, bem iluminados e vigiados, ruas centrais. Cria-se um ambiente de psicose sobre a violência.

Nós estamos em 30 homicídios [por 100 mil habitantes por ano], superamos os 5 homicídios [por 100 mil] há muitos anos. Hoje não temos nenhum Estado brasileiro com menos de 10 homicídios em 100 mil habitantes.

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Ação policial em agosto de 2017: contra o crime organizado no Rio
Imagem: REUTERS/Ricardo Moraes

"Não temos plano de segurança em nível nacional"

O que me preocupa enormemente é que nada indica que existam medidas para fazer cair a taxa de homicídios no país. Não se observa, na realidade da política de segurança pública no Brasil, algum plano mais ou menos viável para reduzir esses índices brutais em nível nacional. Também não há investimento. Meu temor, ou minha visão, é de que a violência, os homicídios vão continuar aumentando.

A violência é ubíqua [está em toda parte]. Não vai ficar em lugar onde há muita repressão. Quando as estruturas violentas veem que há muita resistência na Bahia, mudam para o Ceará, Pernambuco, Sergipe etc. Por isso, não pode ser uma política local. Lembro sempre da tomada do morro da Rocinha pela polícia, em que foram mobilizados Exército, Aeronáutica etc. [ação executada em novembro de 2011, no Rio]. Que fizeram os malandros do morro? Foram para outro morro. E ficaram lá esperando, porque o Exército não ocuparia a Rocinha indefinidamente.

Enfim, ou [se lança] um plano nacional de enfrentamento da violência homicida no Brasil, das organizações criminosas, ou se está fadado a ser matéria propagandística para aparecer nos jornais, fotos de policiais, de carros blindados, algo só para a imprensa.

Minha visão é de que os homicídios vão continuar aumentando 

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A favor de políticas, contra o armamento
Imagem: Leo Caldas / Valor / Folhapress
"Interiorização da violência é cálculo de custo-benefício"

O fenômeno da interiorização da violência [para cidades de menor porte, às vezes distantes dos principais centros urbanos] basicamente ocorre porque as estruturas de repressão se ampliam nas grandes regiões metropolitanas, aumentam as polícias etc. As organizações criminais não vão enfrentar o poder do Estado, não pretendem. Assim que o Estado se empodera, essas organizações mudam de território. Se essa cidade ficou proibitiva, avaliam, vamos para outra cidade. Há uma migração criminosa enorme.

A interiorização é um cálculo de custo-benefício, de quanto custa ficar na grande região metropolitana, com lucro maior e elevada repressão, e quanto custa ir ao interior com menos lucro, mas com menos repressão. Menos investimentos em logística. É um cálculo simplesmente econômico. Não decidiram se interiorizar, foram obrigados pela realidade, pela repressão.

"Sim, há vínculo entre pobreza e violência"

Não há relação imediata e automática entre pobreza e violência. Não é entra a crise [econômica] e a pessoa perde o emprego. Passa-se algum tempo e aí se perde o emprego, os ingressos [de recursos] etc. O indivíduo não automaticamente perde o emprego e sai à rua para roubar e matar. Passa-se o tempo, o cara esgota as possibilidades e provavelmente aí, sim, sai à rua, rouba, mata, morre. É uma questão temporal. Mas, depois de algum tempo em situação de crise, sempre surge um pouco de violência. Isso eu comprovei nos estudos que já fiz.

"Grande matança é produzida por organizações criminosas"

O que priva no Brasil não é a violência interpessoal, esse tipo não é hegemônico por aqui. Que temos mortes por ódio, por conflito entre vizinhos, no trânsito, temos, sim, mas a grande matança é produzida por organizações criminosas. Matam dentro e fora dos presídios, por mandato de uma organização criminosa.

São crimes que se cometem ou por território ou por queima de arquivo. E não temos realmente muita estrutura para enfrentar essas grandes organizações criminosas, a polícia não está preparada nesse sentido. O problema está dentro do cárcere, se sabe onde estão [os criminosos, as facções], quem são, não obstante continua existindo, é incrível.

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Integrante do PCC posa com armas
Imagem: Reprodução

"Estamos gerando as estruturas criminais dentro das nossas cadeias"

Temos uma política de encarceramento indiscriminado. Seguimos o modelo norte-americano de encarceramento maciço, tolerância zero, juntamos alhos e bugalhos no cárcere, que se converteu no epicentro das organizações criminosas e na universidade do crime. Temos juntos menino contraventor, pequeno ladrãozinho de rua etc. [junto com líderes criminosos], que entram na cadeia e se convertem em parte de uma grande organização criminosa. Estamos gerando as estruturas criminais dentro das nossas cadeias. É o Estado brasileiro que incentiva essa estrutura.

É uma loucura o que o governo brasileiro está fazendo, a de ter uma população carcerária de 720 mil pessoas [726 mil, segundo o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), com dados até junho de 2016] e em constante aumento. E numa estrutura que sabe que é totalmente obsoleta, medieval, em que não se respeita o mínimo direito do indivíduo. O indivíduo entra contraventor e sai criminoso.

Nos falta uma política de segurança pública que estabeleça o seguinte: quem vai para a cadeia? O pequeno traficante? Aquele que é parado pela polícia? Agora, a polícia tem uma orientação de produtividade, quer dizer, tem que encarcerar. Pega um menino com uma trouxinha no bolso e pá, cárcere. Nós encarceramos meninos de rua com trouxinhas [de droga] no bolso e os grandes criminosos continuam na rua. Não há uma pesquisa criminal, não temos grandes estruturas técnicas que permitem avalizar tudo, não temos uma inteligência policial. Não interessa pegar o pequeno malandro, mas o cabeça da organização, a estrutura dela. Se encarceraram 720 mil, e a violência diminuiu? O tráfico diminuiu? Não é isso que se vê.

Se encarceraram 720 mil, e a violência diminuiu? O tráfico diminuiu? Não é isso que se vê
Julio Jacobo Waiselfisz

"Organizações criminosas são hoje o poder"

As organizações criminosas não são um poder paralelo, elas são o próprio poder. Paralelo é o poder que as enfrenta. Elas são o poder na cadeia, decidem sobre o encarceramento, sobre quem sai, quem não sai, o que faz o indivíduo quando sai e o indivíduo que entrou, se não for da organização, vai morrer provavelmente. Ora, uma vez que entrou, não sai mais. Por isso estamos criando grandes organizações criminosas dentro da cadeia e fora dela.

Elas são grandes organizações, não são mais pequenos grupos, como antigamente. Com divisões de tarefas, funções, estruturas etc., com níveis de comando, que dominam um território. A guerra que estamos vendo agora, quando há matanças, é por domínio territorial determinado, onde traficam, têm estrutura, refúgio. São grandes organizações que temos de enfrentar agora que inicialmente se criaram pela inatividade das forças de segurança e às vezes em conúbio com elas. Porque cooptaram o poder público.