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MP aponta irregularidades em hospitais de SP conveniados ao programa Redenção

Usuários da cracolândia estão entre pacientes atendidos em hospitais conveniados do programa "Redenção" - Foto: ABr
Usuários da cracolândia estão entre pacientes atendidos em hospitais conveniados do programa "Redenção" Imagem: Foto: ABr

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

03/02/2018 04h00

O Ministério Público de São Paulo e a Defensoria Pública do Estado cobraram da Prefeitura de São Paulo a regularização e a melhoria de serviços prestados a pacientes retirados das ruas para atendimento psiquiátrico em hospitais conveniados do programa Redenção - dedicado ao tratamento de dependentes químicos.

A cobrança tem por base o relatório de uma fiscalização realizada em julho e agosto do ano passado em quatro entidades conveniadas do Redenção: Hospitais Cantareira e Nossa Senhora do Caminho, Casa João de Deus e Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima.

O trabalho foi realizado pelo MP e pela Defensoria em conjunto com conselhos regionais de medicina, psicologia, serviço social e enfermagem, além do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana) e do Comuda (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool).

No TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) apresentado à Secretaria Municipal de Saúde na última quinta-feira (1º), é solicitada a contratação de 27 novos enfermeiros e 11 técnicos de enfermagem para os hospitais conveniados até o final deste ano. Em caso de descumprimento, o TAC prevê uma multa de R$ 50 mil a cada uma das cláusulas do acordo.

Outro ponto cobrado é que a Prefeitura garanta a manutenção de psiquiatras diaristas que deem assistência aos pacientes internados, além de regularizar a utilização do Samu (Serviço de Atendimento de Urgência) a atendimentos exclusivos de urgência e emergência médicas –e não apenas para transporte de pacientes até os hospitais.

Cigarro como moeda de troca e "características prisionais"

O relatório, denominado “Estamos de olho: avaliação conjunta dos hospitais psiquiátricos do projeto Redenção”, concluiu que os órgãos e entidades constaram irregularidades em relação aos recursos humanos e aos recursos para o cuidado das pessoas encaminhadas e internadas nos hospitais psiquiátricos.

Entre as irregularidades, segundo o MP, sobressaiu a “ausência de consentimento prévio, livre e esclarecido das pessoas internadas sobre as condições”, sem que os termos de anuência de internação voluntária dos pacientes tivessem sido encontrados --o que fere dispositivo do CFM (Conselho Federal de Medicina) sobre internação psiquiátrica.

O documento classificou que, de um modo geral, os hospitais que integram o Redenção “violam direitos fundamentais básicos da população usuária de serviço de saúde mental, em uma lógica ultrapassada e contra a lei de submissão dos cidadãos a locais com características asilares e que não realizam atendimento individualizado, desrespeitando formalidades necessárias, bem como sem comunicação com os demais equipamentos de saúde da rede de saúde metal ou assistência social.”

No caso do Hospital Cantareira, na zona norte, a fiscalização apontou a falta de profissionais, de projeto terapêutico individualizado e até um fluxo interno de troca de cigarros por serviços e objetos. Na Casa João de Deus, o trabalho detectou termos de consentimento irregulares e “tratamento baseado na segregação”.

Na Casa Nossa Senhora de Fátima, a situação foi descrita como própria de “características prisionais”, com “desrespeito quanto à utilização de nomes sociais e vestimentas para transexuais, uso de ameaça de alta como punição; cigarro como moeda de troca”. Na mesma unidade, pacientes relataram ao grupo que se submetiam à internação para ter onde morar.

O uso de ambulância do Samu sem necessidade de urgência foi registrado em uma unidade de atendimento já desativada na rua Helvétia, epicentro da cracolândia. Lá, ainda, os fiscais registraram no documento o “oferecimento de lanches para atrair pessoas às internações”.

"Hospitais são caros e de eficácia discutível", diz promotor

Para o promotor de Saúde Pública Arthur Pinto Filho, que subscreve o TAC, o próximo passo da promotoria deverá ser outro acordo para que a Prefeitura não renove os convênios com esses hospitais. “Porque são caros e têm uma eficácia muito discutível. O ideal é que o atendimento seja feito em Caps (Centros de Atenção Psicossocial e as Unidades Básicas de Saúde) do tipo 3 ou 4 “, observou.

De acordo com Pinto Filho, o problema nos hospitais “está desde a porta de entrada até a porta de saída dos pacientes”. “A forma de entrada nesses hospitais, por exemplo, é muito equivocada, ao nosso ver; não é feita uma análise correta para se saber se o paciente terá benefício ou não com aquele tratamento”, afirmou. “E não há dentro dos hospitais um projeto terapêutico individualizado (...). São tratamentos de forma muito mecanizada e muito igual”.

Pela promotoria de Direitos Humanos, o promotor Eduardo Valério cobrou o que chamou de “alta qualificada” – a qual, assegurou, não ocorre hoje nos hospitais conveniados do Redenção. “É preciso adquirir mecanismos para que os pacientes não retornem à realidade de onde saíram para a internação. Não é possível, depois de tanto esforço e tanto gasto público, que ele retorne à cena de uso de drogas”, disse.

A presidente do Comuda, Nathalia Oliveira, analisou que a proposta de atendimento dos hospitais conveniados “representa uma mudança drástica na política de combate às drogas na cidade, porque é pouco diálogo e investimento”.

“A estrutura desses hospitais até que está ok, a questão é que muita gente prefere ir para lá simplesmente como alternativa à violência policial e da GCM nas ruas. E tudo isso sem um projeto terapêutico individual, o que é muito sério”, avaliou Nathalia.

Ação da GCM na cracolândia também será alvo de TAC

Ao menos sete pessoas ficaram machucadas na cracolândia, segundo a ouvidoria da Defensoria Pública do Estado - Divulgação - Divulgação
Ação recente da GCM deixou feridos na cracolândia
Imagem: Divulgação
Segundo os dois promotores, na semana que vem o MP vai apresentar um novo TAC à Prefeitura cobrando mudanças de conduta do Município em relação ao usuário da cracolândia também pela ação da GCM (Guarda Civil Metropolitana).

“Toda política de acolhimento pressupõe um ambiente de confiança postulado pelas equipes de assistência social. Esse trabalho todo se desfaz com a insegurança alimentada pela GCM – a qual, em vários momentos do dia, investe contra os dependentes químicos da região com muita truculência e agressividade”, apontou Valério.

“Temos um inquérito civil instaurado sobre a conduta da GCM na cracolândia desde o final do ano passado. Nele, temos imagens de drones da própria Prefeitura e depoimentos demonstrando que a guarda tem agido de forma ilegal na região: revistas em massa sem necessidade, atiram sem qualquer provocação, lançam bombas que atingem, inclusive, trabalhadores dentro das tendas, crianças e idosos... A recomendação será para que se aja dentro dos marcos legais e de forma imediata, caso contrário, o MP pedirá socorro à Justiça”, avisou o promotor de Saúde Pública.

Prefeitura diz que TAC "não é impositivo"

Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde informou que "o TAC não é um documento impositivo" e foi elaborado pela pasta e demais entidades "visando a possibilidade de cumprimento dentro do prazo previsto". "É importante destacar que a maioria dos itens do documento é resultado de consenso entre todos os órgãos", diz a nota.

"A SMS solicitou adequações em pouquíssimos itens do documento, que segue sob análise do próprio Ministério Público e demais entidades. Em seguida, haverá a devolutiva para a devida análise da Procuradoria Geral do Município (PGM), antes de ir à sanção do prefeito. Da parte da SMS, está prevista a contratação de técnicos de saúde e enfermeiros", complementa a pasta.

Já a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, na mesma nota enviada pela Secom (Secretaria Executiva de Comunicação do Município), defendeu que a GCM na Luz age "em absoluta obediência às leis, prestando apoio às equipes da prefeitura que realizam os serviços diários de limpeza e zeladoria. A média diária de lixo retirado do local é de 4,8 toneladas, entre detritos e pertences abandonados pelos próprios usuários de drogas."

"Em cumprimento ao que estabelece a Lei 13022/2014, a GCM tem realizado também ações coordenadas em conjunto com a Polícia Militar para combater a presença de traficantes e por isso impede a instalação de barracas que esses criminosos usam para esconder a venda de drogas", encerra a nota.