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Sob 'cerco' evangélico, pajés evitam rituais tradicionais indígenas

Cena do filme "Ex-Pajé", de Luiz Bolognesi - Divulgação/Ex-Pajé
Cena do filme "Ex-Pajé", de Luiz Bolognesi Imagem: Divulgação/Ex-Pajé

Diego Toledo

Colaboração para o UOL, em São Paulo

24/02/2018 04h00

Perpera Suruí tem cerca de 65 anos de idade. O número exato é um mistério até mesmo para ele, que viveu até 1969 em uma aldeia indígena isolada, no trecho da floresta amazônica entre os Estados de Rondônia e Mato Grosso. Ainda na juventude, Perpera se tornou pajé e viveu assim por muitos anos.

Agora, ele é o protagonista de um filme exibido no Festival de Berlim: "Ex-Pajé", do diretor Luiz Bolognesi, que retrata o conflito interno de um líder espiritual indígena com a nova realidade de sua aldeia, hoje de maioria evangélica.

Assim como boa parte dos paiter-suruís, grupo com cerca de 1.400 habitantes que ocupa pouco mais de dez aldeias na Terra Indígena Sete de Setembro, Perpera se tornou evangélico há alguns anos e deixou de atuar como pajé. Mas o filme de Bolognesi sugere que a conversão não foi resultado de um processo dos mais espontâneos.

Em uma das cenas, Perpera é questionado sobre a possibilidade de voltar a ser pajé. Ele responde que essa chance não existe. "Depois que o pastor disse que pajés são do inferno, ninguém falava comigo. Eles me ignoravam", afirma, no trecho do filme. "Só voltaram a falar comigo depois que eu fui à igreja."

"Eu me apaixonei por essa história, por esse homem, e me sensibilizei demais com esse drama", conta Bolognesi. "Eu já tinha ouvido falar de ex-gerente de banco, ex-jogador de futebol, mas nunca de ex-pajé. Fiquei chocado com aquilo."

Ex-pajé lendo - Divulgação/Ex-Pajé - Divulgação/Ex-Pajé
Perpera Suruí em cena do filme exibido em Berlim
Imagem: Divulgação/Ex-Pajé

Perpera não fala português e se comunica apenas na língua dos paiter-suruís, que pertence à família linguística mondé, do grupo tupi. Por meio de um intérprete, em uma das conversas com Bolognesi, contou ao diretor do filme que dorme de luz acesa. Caso contrário, teme apanhar dos espíritos da floresta, que estariam bravos porque o ex-pajé não dá mais atenção a eles.

"Ora, se ele vê os espíritos, e os espíritos ameaçam bater nele, ele não deixou de ser pajé", argumenta Bolognesi. "Eu sinto que eles não se desligaram do conhecimento do pajé, porque, quando a coisa aperta, eles procuram o pajé, quase que escondidos. Mas é uma coisa que não pode ser feita em público, porque vai ferir o dogma evangélico."

Pajé quando ninguém vê

Sócia-fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, a indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo foi casada por mais de 20 anos com um dos principais líderes dos suruís. Durante o tempo em que viveu com o grupo, testemunhou a angústia de Perpera e a pressão evangélica sobre os pajés.

"Ele não é ex-pajé, ele é pajé", diz a ativista, mais conhecida como Neidinha. "Quando o povo que faz a vigilância lá não está controlando, eu já vi ele fazendo cura."

Ivaneide cita como exemplo um caso ocorrido com a cantora canadense Grace Young, da banda Grace & The Victory Riders, que esteve com os suruís por algumas vezes entre 2010 e 2011. "O marido dela, Jérôme [Degey], teve uma reação alérgica a algo dentro da aldeia, andando no mato. O Perpera fez um ritual de cura, quando ninguém estava olhando."

A cantora canadense confirma a história. "Ele cuidou de algumas feridas na boca do Jérôme que não tinham melhorado com a medicina convencional. Nós o seguimos pela floresta, ele cortou uma casca vermelha de uma árvore e disse para Jérôme mastigar", recorda Grace. "Logo depois, Jérôme sentiu um alívio imediato e as feridas se fecharam rapidamente."

Pajé Grace - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Almir Suruí (à esq.) e a cantora canadense Grace Young
Imagem: Arquivo pessoal

Neidinha e Bolognesi contam que a intimidação sofrida pelos pajés é sutil. A indigenista diz que o conflito não é visível e só é perceptível para quem convive por muito tempo com os suruís. "Se você for fazer uma prática de pajelança, a maioria olha e diz que aquilo não é de Deus. Ou pelo menos não é do Deus que eles acreditam, do novo Deus que chegou lá."

"O que mais me chamou a atenção é que a violência acaba sendo sutil e acaba sendo cometida pelos próprios indígenas", afirma Bolognesi. "Na medida em que se tornam evangélicos, eles são os primeiros a reprimir, porque assumem o dogma fundamentalista de que tudo o que o pajé faz é ligado ao demônio. E aí eles são os primeiros a isolar o pajé, persegui-lo."

"Rituais são antibíblicos", diz missionário

Apesar de criticar a perseguição a pajés, Neidinha diz que a presença evangélica em terras indígenas também tem um impacto positivo. "O lado bom é que as pessoas envolvidas com álcool deixam de beber", afirma a indigenista.

"Os indígenas procuram as missões evangélicas porque elas dão uma série de garantias", avalia a antropóloga Marta Amoroso, da USP (Universidade de São Paulo). "Elas têm um apelo muito forte para dramas, crises. Tem muitos casos documentados de suicídios, alcoolismo, drogas. Muitas vezes, a missão evangélica entra aí. O apelo dela é reorganizar as relações, dar um sentido para isso tudo."

Pajé Betty - Betty Mindlin - Betty Mindlin
O pajé paiter-suruí Perpera em foto registrada pela antropóloga Betty Mindlin, em 1979
Imagem: Betty Mindlin

O missionário Cícero Simões, mais conhecido como Bacana, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, começou a frequentar as aldeias suruís por volta de 2002. Ele diz que os rituais tradicionais da cultura indígena são respeitados pelos evangélicos, mas não deixa de manifestar sua opinião sobre eles.

"[Os rituais] São antibíblicos. Tem espiritismo nisso. Pajé, você sabe que é tudo espiritismo. Não há apoio bíblico para isso", diz Bacana. "Mas a gente respeita. É o aprendizado deles da vida toda."

Para ajudar no trabalho de conversão, os missionários traduzem hinos evangélicos para a língua dos paiter-suruís e procuram engajar os indígenas em atividades de lazer, com música, brincadeiras e refeições coletivas.

"Eu tiro um momento pra gente assistir a filmes, fazer ação social. A gente leva outras pessoas pra brincar junto, se divertir, tomar suco, comer pipoca e a gente sempre vai conversando", conta Bacana. "A gente tenta criar uma dinâmica para cativar o pessoal, e as portas se abrem."

No início de seu trabalho junto aos suruís, Bacana diz que havia uma resistência grande a outras religiões e sua presença chegou a provocar grande revolta entre os caciques.

Eu arrisquei a vida. Muitas vezes, me cercaram na estrada, à noite, para me bater. Hoje, está tudo bem. Devagarzinho, a gente conseguiu falar sobre a Bíblia

Cícero Simões, o Bacana, missionário evangélico

Mesmo assim, Bacana diz que a entrada dos missionários em algumas aldeias ainda não é permitida. "Mas, na maioria, a gente é conhecido de bastante pessoas e vai tranquilo", acrescenta. "Os mais novos entendem mais fácil. Com os mais velhos, foi mais difícil. Eles queriam expulsar a gente."

A Funai (Fundação Nacional do Índio) é responsável pelas autorizações para a entrada em terras indígenas. Em nota, o órgão diz que "prima pelo respeito e cumprimento dos direitos dos povos indígenas" e que "o proselitismo como objetivo de atuação de instituições religiosas em terras indígenas sempre foi coibido".

Discussão polêmica

Desde os primeiros contatos com o homem branco, em 1969, as terras dos paiter-suruís passaram a receber visitas frequentes de missionários de diferentes religiões.

Hoje, as aldeias contam com a presença das igrejas batista, católica, luterana, Assembleia de Deus e Adventista do Sétimo Dia. Diferentemente da maioria da população local, Almir Suruí, o principal líder do grupo, diz que não é evangélico e segue a religião cultural de seu povo.

Almir se tornou uma celebridade internacional graças ao trabalho na defesa da floresta. Na década passada, sob sua liderança, os suruís ganharam notoriedade graças a uma parceria com o Google para mapear as terras indígenas e denunciar as ações ilegais de madeireiros e garimpeiros na região.

Os suruís também foram pioneiros em projetos para a arrecadação de recursos para preservar a floresta e para a colheita sustentável de castanhas e café para exportação.

Almir reconhece que os novos hábitos adquiridos com o aumento da população evangélica são um desafio para o seu povo. E teme o risco de que o conhecimento praticado e transmitido pelos pajés possa ser prejudicado pelas novas religiões dos suruís.

"Esperamos que essa história do filme traga uma grande reflexão. Existe uma discussão bem profunda dentro das aldeias. Uma parte diz que a atuação do pajé não é bem-vinda", diz o líder indígena. "Quando os suruís começaram a atuar bastante dentro da religião, os pajés deixaram mesmo de fazer alguns rituais. Hoje, os próprios suruís comandam as igrejas dentro do território."

Apesar de reconhecer a importância do debate, Almir diz que o assunto não está entre suas maiores preocupações.

"Quando a gente começou a discutir isso, foi muito polêmico. Então, a gente deixou de falar muito sobre isso para não criar conflitos dentro do território suruí", afirma. "Não é uma prioridade nossa. Nós temos hoje outras prioridades que nos preocupam aqui, que são a floresta e o desmatamento."

Saúde indígena é dominada por ONGs evangélicas

O dilema sobre a evangelização e a preservação da cultura tradicional dos povos indígenas não se limita aos paiter-suruí. Um outro documentário, "Monocultura da Fé", lançado no ano passado, também tratou da intolerância religiosa entre os guarani-kaiowás, no Mato Grosso do Sul.

"Esse contato com os evangélicos é muito antigo", diz a antropóloga Marta Amoroso. "O fenômeno novo é essa intervenção violenta, impositiva, que não dá espaço para outras práticas. Isso é muito recente, é do século 21."

A professora da USP cita como exemplo os relatos de casas de reza incendiadas nas terras dos kaiowás e vê uma relação direta entre o avanço de religiões cristãs e um vazio deixado pelo Estado brasileiro no atendimento às populações indígenas.

"Esses atores políticos, que são os pastores, ocupam um lugar que era ocupado pelo Estado", diz Marta Amoroso. "A gente sente a presença deles no atendimento à saúde indígena, na mediação dos negócios. O Estado se recolhe, diminui, e esse espaço passa a ser terceirizado para ONGs evangélicas."

A antropóloga observa uma ação política em que, com o apoio da bancada ruralista, os serviços de amparo às populações indígenas deixam de ser oferecidos pelo Estado leigo e passam para entidades como a Missão Evangélica Caiuá.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, é responsável pelas ações de atenção básica de saúde nos territórios indígenas. O órgão atua em um modelo descentralizado, dividido em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) espalhados pelo país.

A atuação da Sesai inclui a contratação, por meio de convênios, de ONGs que trabalham junto aos distritos indígenas. Atualmente, a Missão Caiuá, da Igreja Presbiteriana, atua em 19 dos 34 DSEIs.

"É uma ONG que hoje atende 64% da saúde indígena", diz Marta Amoroso. "Na maioria das aldeias, o dinheiro que o Estado brasileiro destina para o atendimento da saúde indígena é mediado pelos evangélicos."

Por meio de nota, o Ministério da Saúde afirma que "o trabalho realizado pelas entidades que prestam assistência à saúde nas localidades indígenas não tem nenhuma relação com credos ou religião".

"Os convênios formalizados com a Missão Evangélica Caiuá, assim como os demais, têm como único objetivo a execução de serviços complementares de atenção básica à saúde, respeitando integralmente as características étnicas e culturais dos povos atendidos, sem qualquer tipo de intervenção religiosa", acrescenta a nota.