"Somos consideradas cúmplices": como é a vida das mães de filhos presos
“Somos reféns de uma sociedade que nos olha da mesma forma como enxerga um criminoso. O fato de nossos filhos estarem presos não significa que não prestamos [...]. Hoje é o meu [filho], amanhã pode ser o seu, o do seu amigo, de alguém conhecido. Isso não torna você, seu amigo ou seu conhecido alguém que não preste.”
O desabafo é da técnica em meio ambiente Marta Amélia Santos Lima, 49, que em 2015 recebeu a notícia da prisão do filho caçula, hoje com 21 anos.
Assim como quatro outras mulheres entrevistadas para esta reportagem (leia os relatos abaixo), essas mães são diariamente condenadas por crimes que não cometeram --apesar de todas reconhecerem os erros dos filhos. No julgamento informal de amigos, familiares e conhecidos, são consideradas cúmplices dos atos criminosos, estivessem ou não cientes daquilo que acontecia fora de suas casas.
E reclamam de essa crença manifestar-se explicitamente na forma como são tratadas pelos agentes penitenciários nos dias de visita, cheios de momentos de mal-estar. Nessas situações, quando enfrentam horas de fila para entregar kits de higiene e comida aos filhos, dizem ser tratadas como bandidas. “Eles procuram nos humilhar de tudo o que é jeito, provocando, constrangendo”, contou Tereza*, 55.
“Um filho infrator representa ele mesmo uma acusação contra seus pais. Os pais cujos filhos fazem tudo certo ficam com o crédito por isso, e o oposto é a recriminação dirigida aos pais de crianças que fazem coisas erradas. Infelizmente, ter pais virtuosos não é garantia contra a criminalidade. No entanto, esses pais se acham diminuídos do ponto de vista moral, e a culpa os torna incapazes de ajudar --às vezes até de amar-- a prole criminosa”, resume o autor Andrew Solomon no livro “Longe da Árvore: Pais, Filhos e a Busca da Identidade”.
Com exceção de Marta Amélia, todas as entrevistadas pediram que seus nomes fossem trocados para não serem identificadas. As cadeias onde seus filhos cumprem pena também não serão especificadas. Confira a seguir seus relatos concedidos por telefone.
“Filhos presos, mães reféns”
Marta Amélia Santos Lima, 49, técnica em meio ambiente
"Na primeira vez em que entrei no presídio, achei que ia me consumir de tanta dor, de tanto chorar. Vi meu filho vindo algemado, vi ratos no pátio, tivemos de estender a coberta em que ele dormia para colocarmos a comida em cima. A primeira coisa que eu fiz foi pedir perdão. Eu me senti culpada. Onde foi que errei? Por que não percebi os sinais? Em que momento meu filho pegou um atalho e soltei sua mão? Mas ele sempre diz que a culpa não é minha, que foi uma escolha dele. Ele tem consciência do erro e sabe que precisa pagar.
Logo que recebi a notícia, achei que era engano. Ele tocava na orquestra da igreja, estudava, queria cursar engenharia elétrica. Deve ser a mesma negação de descobrir que um filho morreu. Depois vêm a dor, a impotência e o medo
Marta Amélia
E essa é uma dor que se enfrenta sozinha. Você fala: ‘Vou visitar meu filho’. Aí [respondem]: ‘Ele está doente? Precisa de alguma coisa?’. Se você diz que está preso, falam: ‘Ah, então tá’. Somos consideradas cúmplices. Viramos prisioneiras da sociedade: filhos presos, mães reféns. É um preço muito alto, porque não criei meu filho para ser bandido, criminoso. Formei ele para o bem, para ser feliz. Toda mãe quer isso.
Meu caçula tem 21 anos e foi preso duas vezes [Marta não autoriza a divulgação das acusações]. Decidi criar um blog contando minha experiência para compartilhar essa dor e enfraquecer a visão de que a sociedade sustenta vagabundos. Os custos divulgados com presos são superfaturados: é preciso levar kits [de higiene e comida], a alimentação é ruim, eles dormem no chão, são tratados sem nenhuma dignidade.
Também é importante criar uma rede de apoio entre os familiares, para que eles consigam mudanças no sistema prisional e tenham forças para ajudar a recuperar os detentos. Quanto mais criminosos nas ruas, pior para todos nós.
O Rodrigo será solto em dezembro, depois de quatro anos, e estamos nos preparando para recebê-lo, sabendo que não vai ser fácil. Ele não vai conseguir emprego, quer estudar e precisamos conversar muito para ele não ficar preso às lembranças, se sentir inferior.
Agora ele está no semiaberto, com direito a alguns dias por ano em casa. Da primeira vez que saiu, passei mal o dia inteiro. Parecia que eu é quem estava presa. Se ele ia até o portão ou à padaria, eu ficava angustiada, com medo de acontecer qualquer coisa com ele.
O que mais me doeu nessa volta para casa foi durante o café da manhã, quando ele pegou um copão cheio de café, que parecia de Coca-Cola, e um pãozinho sem nada: sem queijo, sem presunto, sem manteiga. Levou tudo para a área de serviço, onde foi comer sozinho, agachado. Fui até lá e me agachei para comer com ele. Não era meu filho, era um bicho acuado. Ver isso é muito difícil para uma mãe. Meu Deus, eu preciso do meu filho de volta."
“Acho que estou começando a desistir do meu filho”
Vânia*, 50, autônoma
"Meus dois filhos estão presos. O mais velho, de 31, foi condenado a 16 anos por participar de um tiroteio. Ele jura de pé junto ser inocente, mas, se está preso, é porque alguma coisa tem. O mais novo, de 23, foi detido agora pela quinta vez [seus crimes vão da venda de carro roubado a desvio de carga]: conheci todas as cadeias do Estado por causa dele. É mais um ano que vou passar sem meus filhos dentro de casa, vivendo essa tortura.
Todo final de semana vou ao presídio: a cada 15 dias, visito um filho. Gasto por volta de R$ 150, R$ 200 com kit de higiene e a comida, que preparo na noite anterior: arroz, macarrão, purê de batata, carne, macarrão sem molho. Nesses dias saio de casa às 4h e volto umas 19h. Só não vou ao presídio quando não tenho dinheiro. Aí fico doida.
Eu me viro fazendo bicos, artesanato, faxina. Infelizmente, todo mundo sabe que eles estão presos: outro dia um conhecido me chamou para fazer limpeza e eu estranhei, porque existe muito preconceito. Depois ele disse que não precisava mais, então acho que o sócio descobriu e pediu para me dispensar.
O sofrimento está estampado no meu rosto e eu não tenho como esconder: enfrento uma depressão profunda e tomo remédios para dormir. Não consigo ir à igreja, não tenho tempo nem vontade de sair.
Eu me sinto culpada, me pergunto onde errei, o que poderia ter feito para evitar. Conversado mais? Vigiado mais? Será que errei em não bater? Dei mau exemplo? Depois penso que eles escolheram seu caminho. Cada hora acho uma coisa
Vânia*
A primeira prisão do mais novo foi uma surpresa, porque ele sempre falava que ia cuidar de mim, envelhecer comigo. E que prazer de vida ele está me dando? O que a vida do crime deu para ele? O que ele deixou para o filho, que acabou de nascer? Nada. Eu tenho esperança que ele melhore, agora que esse menino nasceu. Falo: ‘Não queira nunca entrar num lugar desse para visitar seu filho, para ver a dor que estou sentindo’. Mas não sei se tem conserto, não. Às vezes acho que estou começando a desistir dele."
“A gente não escolhe ter filho bandido”
Margarida*, 47, cantineira de escola
"Meu filho tem 28 anos, foi preso por envolvimento com drogas aos 18 e deve cumprir pena até 2022. Vai sair de lá com 32. Vi meu filho envelhecer na cadeia. As pessoas às vezes me confundem com esposa dele, por causa do seu semblante envelhecido. Desde que foi preso, nunca mais tive vida, nunca mais tive paz. Deixei de ser uma pessoa feliz, não sou um décimo do que eu era. Hoje é mais tristeza do que felicidade.
Sempre achei muito constrangedor fazer as visitas, porque existe muita humilhação, grosseria e maus-tratos dos agentes: eles acham que nós, da família, também somos bandidos. Minha barriga sempre dói e sinto constrangimento, mesmo não tendo mais de tirar a roupa para a revista vexatória [substituída em muitos presídios pelo scan corporal]. Se em dez anos de visitas não me acostumei com isso, não me acostumo mais.
Nas visitas eu faço um sacrifício [financeiro] para levar o que ele gosta. Mas muitas vezes os agentes cismam e jogam a comida fora, não deixam entrar. Eles acham que o dinheiro da gente é capim para fazer isso. Simples assim. E dói saber que seu filho está passando frio, está comendo comida azeda e você não pode fazer nada. Você se sente um nada.
A gente não escolhe ter filho bandido. Quando eles nascem, a gente não fala: ‘Vai ser bandido’. A gente traça um caminho, faz planos, leva para a escola. Mas aí eles acham que tudo o que você deu é pouco [e entram para o crime]
Margarida*
O preconceito é muito grande, até mesmo dentro da família. Eles [familiares] me criticam por não ter dado a educação que deveria. Fui condenada por meu ex-marido, para quem a culpa é toda minha. Fiquei com isso na cabeça por muitos anos, mas fiz meu melhor. Eu não recebia pensão, fui mãe e pai, então precisava trabalhar para ninguém morrer de fome. Ou eu vigiava ele ou eu trabalhava. Hoje não me sinto culpada, não acho que tenho culpa de nada."
“A gente fica presa neles porque é burra”
Francisca*, 54, aposentada
"Eu não criei meus filhos para eles irem parar em jaulas, iguais a bichos. Aquilo [cadeia] é escola de bandido: o mais velho vai sair de lá formado na faculdade da bandidagem. Já falei para eles que, se forem presos de novo, eu não volto.
O de 33 anos foi detido aos 18, condenado por roubo e homicídio [Francisca diz que a 2ª acusação não procede]. Ele já ficou foragido dois anos e sai no ano que vem. Quando foi preso, fiquei muito nervosa e desci a mão nele. O policial da delegacia disse que eu não podia bater, mas respondi que galinha não mata pinto. O outro, de 30, pegou sete anos e sai em 2020. Maldito tráfico: o trem já chama ‘droga’, como é que eles não entendem?
Não me sinto culpada. Não falei para eles venderem droga, não falei para roubarem. Eles que deveriam se sentir culpados pela humilhação que me fazem passar quando vou visitar eles. Estão lá porque são safados, não têm vergonha
Francisca*
Sou aposentada e morava no interior, mas tive de mudar para Belo Horizonte para conseguir dinheiro. Com a aposentadoria que recebia não dava para eu sustentar a casa, meus netos e ainda levar os dois kits para as visitas deles. Em BH eu pego faxina, lavo roupas. Hoje estou bem, aprendi a me amar primeiro, mas já caí em depressão e fiquei dois anos sem conseguir andar por ver eles em um buraco sem fundo, sem fim.
A situação é muito triste para uma mãe, que deixa de ter aniversário, Natal, Ano-Novo. A gente fica presa neles, não sai e não vai viajar porque tem o dia de visita. Fica presa porque é burra, deveria largar eles para lá e esquecer que é filho. Estou cansada disso, das visitas, de ser tratada como bandida. Às vezes a gente fica três, quatro horas em pé na fila. Mesmo com os dois no mesmo presídio, já teve épocas que o dia da visita era diferente para cada um. Isso tudo desgasta muito."
“Tem muito preconceito: eu virei a mãe do preso”
Tereza*, 55, decoradora de festas
"Existe muito preconceito: eu virei a mãe do preso. Nos dias de visita, nos tratam como se a gente tivesse culpa e me sentia presa também. Estamos ali justamente para ver se conseguimos melhorar a condição deles, para ajudar a se reabilitarem. Já sofri muito, mas eu sou atrevida, sou muito para cima: levanto a cabeça e continuo. Não dou atenção para as pessoas, porque todos têm telhado de vidro e não sabem o dia de amanhã.
O preconceito é geral: com a mãe, a namorada, a mulher. Mas acho que é ainda pior com o filho, porque a criança acaba virando ‘filho de bandido’. Isso é muito triste
Tereza*
Meu filho tem 20 anos, foi preso duas vezes e agora acabou de ser solto novamente. Para mim foi tudo uma surpresa, porque ele é bom menino, gostava de trabalhar, estava sempre envolvido com o serviço. Nunca imaginei uma coisa dessas na minha vida. A primeira prisão, de um ano e dois meses, foi por causa de drogas e considero injusta. Ele ficou solto um mês, estava revoltado, e logo o pegaram em um assalto. Da segunda vez, achei justo.
Só conhecendo o sistema para saber o que acontece lá dentro. Tem muita mazela, maus-tratos, humilhação, doença. Eles [presos] fizeram coisas erradas e devem ser punidos, mas precisa haver dignidade. Com a família é igual, eles [agentes] procuram humilhar, provocando, constrangendo. Depois que os detentos saem, têm outro desafio complicado, que é a readaptação aqui fora.
Da primeira vez, ele saiu muito revoltado. Considerava tudo o que aconteceu injusto e aí foi fazer [roubar] mesmo, achando que nada aconteceria. Mas aconteceu e ele percebeu que tem consequências, que aquilo tudo [mundo do crime] não presta. Agora ele está mais maduro, fica em casa, se afastou das companhias antigas. É difícil controlar isso. Os amigos vieram chamar, mas já expulsei todo mundo da minha porta. Botei para correr. Quando ele estava preso, ninguém veio dar nem um sabonete. Agora vem dar abraço?
Vai ser complicado ele conseguir trabalhar, porque está difícil até para quem não é fichado. Estamos procurando um curso, porque o importante agora é fazer ele ocupar seu tempo."
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.