Justiça manda família pagar R$ 1 milhão a mulher que viveu como escrava
A Justiça do Trabalho determinou que uma família indenize em R$ 1 milhão uma mulher que viveu em condições análogas à escravidão por cerca de 30 anos. Entre 1987 e 2016, ela morou na casa de uma família em São Paulo, onde prestou serviços domésticos. A decisão é de segunda instância e cabe recurso ao TST (Tribunal Superior do Trabalho).
Em 1987, a mãe da mulher --na época, uma criança de sete anos-- permitiu que ela deixasse Curitiba e fosse viver em São Paulo com uma família que lhe prometeu dar cuidados e acesso à educação.
"Sob a falsa promessa de 'adoção', ela teve a incumbência servil para a família, perdendo toda a infância, adolescência e parte adulta nos serviços domésticos", traz argumentação da vítima à Justiça.
Os serviços eram de faxina, lavagem de roupas, preparo de refeições, cuidados com animais de estimação, idosos enfermos e de crianças.
A família que a recebeu nunca formalizou a adoção, segundo a sentença. As rés condenadas no processão são mãe e suas duas filhas.
"Nesses quase 30 anos de convivência, [ela] permaneceu sem frequentar escolas, sem receber --ao menos em certa parte desse período-- dinheiro pelos serviços que realizava, e trabalhando desde muito jovem em serviços domésticos que favoreciam as rés", escreveu o desembargador Paulo Sérgio Jakutis, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em acórdão publicado no último dia 4.
"A reclamante esteve submetida a condições degradantes de trabalho, configurando-se, por isso mesmo, a hipótese do trabalho em condições análogas à do escravo".
A defesa da família pretende recorrer da decisão. Em pronunciamento à Justiça, as rés alegam que a mulher "sempre esteve inserida no seio familiar". "Tanto é verdade que todos os eventos de família --aniversários, casamentos, batizados e qualquer evento realizado na residência-- contava com a presença natural da reclamante".
Os advogados da mulher ainda estudam com sua cliente quais são os próximos passos, disse o advogado Rodolfo Carlos Weigand Neto ao UOL.
Contratada aos 18, mas com descontos
Quando a menina completou 18 anos, em 1998, a família com a qual ela viveu assinou sua carteira de trabalho. A mulher teria direito a um salário de R$ 200, mas os familiares faziam descontos.
"Os descontos envolvem não apenas roupas, mas também remédios, plano de saúde, valor da previdência e, além disso, coisas curiosas como cabides, rádios, panelas e até fogões", apontou Jakutis.
Provas apontam que, entre agosto e outubro de 2001, ela não recebeu valor algum da família, e ainda teve de pagar integralmente a contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro e Social), o que deveria ser repartido com os empregadores.
Por esse motivo, a Justiça determinou que a família pague R$ 1 milhão à mulher por danos morais, além de 40% sobre o valor do FGTS, indenização de seguro desemprego e aviso prévio proporcional ao tempo de trabalho. O cálculo total do valor a ser pago ainda não foi feito pelo escritório de advocacia que defende a mulher.
Como o valor da indenização é de R$ 1 milhão, Jakutis determinou que o pagamento seja feito de maneira parcelada por cerca de 21 anos, nesta ordem:
- 60 parcelas de R$ 3.000,00;
- 60 parcelas de R$ 3.500,00;
- 60 parcelas de R$ 4.000,00;
- 74 parcelas de R$ 5.000,00.
De acordo com o desembargador, a família com a qual vivia "foi todo o universo que a reclamante teve consigo, por quase trinta anos de vida". "Eram os pais, a família, os amigos e os senhores da demandante, tudo ao mesmo tempo".
Uma testemunha disse à Justiça que conheceu a mulher como "empregada da casa, encarregada de atender a porta, e servir café às visitas".
Para Jakutis, "infelizmente, no quesito trabalhista, a relação nunca transcendeu a fronteira da severa ilegalidade, aproximando-se, como dito acima, da utilização mais cruel da mão de obra". Ele aponta que a mulher "esteve à mercê da direção do empregador não apenas no mister [trabalho] que desenvolvia, mas na própria e precária vida que conseguiu viver".
Privada não apenas de condições econômicas mínimas, mas também de informações e conhecimento que pudessem permitir a ela um grau ínfimo de autonomia na sociedade contemporânea, restou, a autora, limitada a manter-se servindo aos empregadores, como única forma conhecida por ela para assegurar a própria sobrevivência
Paulo Sérgio Jakutis, desembargador do TRT-2
O desembargador diz que a situação pela qual a mulher passou "submeteram-na a uma espécie tão aguda de prejuízo intelectual".
Para Jakutis, não se sabe se ela "conseguirá, de alguma forma, adquirir condições de desenvolver qualquer tipo de atividade legal que venha a garantir a ela condições de, com independência, sobreviver na nossa sociedade contemporânea".
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