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Aluno da USP morreu após quebrar pescoço ao transportar armário, diz laudo

Filipe Leme, estudante da USP encontrado morto na Poli - Instagram
Filipe Leme, estudante da USP encontrado morto na Poli Imagem: Instagram

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

03/07/2019 04h00Atualizada em 04/07/2019 16h39

Aquela terça-feira, 30 de abril, parecia mais um dia de trabalho para o estudante de geografia da USP (Universidade de São Paulo) Filipe Varea Leme quando uma ordem incomum chegou da chefia. O garoto de 21 anos e outro colega, que davam expediente como monitores de informática na Poli (Escola Politécnica da USP), foram orientados a mudar um armário de sala. O corpo de Filipe foi encontrado às 15h40 daquele dia dentro de um elevador, encurralado pelo armário, que, ao se movimentar com o elevador, lhe esmagou o pescoço.

O esmagamento no pescoço consta no laudo pericial concluído no dia 30 de maio pelo IC (Instituto de Criminalística), que descreve como o acidente aconteceu, e é corroborado pela certidão de óbito. A causa conclusiva da morte caberá ao laudo do IML (Instituto Médico Legal), responsável por examinar as lesões internas da vítima. O documento ainda não foi concluído.

Em nota, a Polícia Técnico Científica afirma que o laudo do IC "foi encaminhado à autoridade policial em junho". "O IC não examina lesões internas, mas sim o IML. As causas da morte serão confirmadas somente após a conclusão do laudo do IML que está sendo finalizado."

O inquérito está praticamente no fim. Tanto o laudo do IC sobre as circunstâncias do acidente quanto a determinação da causa da morte pelo IML serão encaminhados para a investigação policial, que está sob sigilo.

Filipe havia começado seu trabalho de monitor neste ano. Em troca de uma bolsa de R$ 530, ele e o colega dedicavam dez horas por semana ao help desk (serviço de apoio a usuários com problemas técnicos) do laboratório de informática da Poli, que fica no prédio administrativo.

Sala no setor de informática em que Filipe Leme deveria permanecer - Wanderley Preite Sobrinho/UOL - Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Sala no setor de informática em que Filipe Leme deveria permanecer
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Em depoimento à polícia, a supervisora da dupla admitiu que partiu dela a ordem para que eles transportassem o armário, embora a Poli conte com serviço interno de manutenção.

Como aconteceu o acidente, segundo o laudo

Um dos professores da faculdade estava mudando seus objetos de sala e precisava de ajuda para transportar um armário de madeira, com divisórias ocupadas por livros e CDs. Foi quando a supervisora dos monitores pediu que eles deixassem suas funções originais e ajudassem no trabalho.

De acordo com os testemunhos à polícia, foi ideia do professor que os garotos carregassem o armário em um carrinho para transporte de carga. Os rapazes esvaziaram parte do armário e transportaram seu conteúdo em caixas. Para evitar a escadaria, preferiram utilizar o elevador de deficientes.

Depois de algumas idas e vindas, havia chegado o momento de carregar o armário, com a última prateleira ainda com livros. Os dois empurraram o carrinho até o pequeno elevador, mas apenas um deles conseguiria entrar com o móvel.

Filipe, então, apoiou o carrinho contra o corpo e entrou no elevador de costas. Sem espaço, ele precisou apoiar a parte de cima do armário, que estava inclinado, com o próprio pescoço. Como Filipe não conseguiu alcançar o botão para fazer descer o elevador, seu colega foi até o térreo, que dá acesso à recepção do prédio, e apertou o botão. Foi quando o acidente aconteceu.

O carrinho entrou completamente no elevador --que não tinha porta própria e, por isso, era fechado por uma porta de vidro que fica no andar--, mas dois parafusos na parte inferior do armário ficaram do lado de fora. Quando o elevador iniciou a descida, os parafusos enroscaram no piso e o armário subiu, esmagando o pescoço de Filipe, o que resultou em sua morte.

Com o imprevisto, o elevador parou entre os andares. O colega, ainda do térreo, estranhou o ocorrido e enviou mensagens de WhatsApp para Filipe, que não respondeu. O rapaz, então, decidiu pedir ajuda.

Em pouco tempo já havia uma aglomeração em torno do elevador. Nesse momento, segundo os depoimentos, uma mulher da diretoria da Poli apareceu gritando que "aquele elevador não era para transporte de carga".

De fato, uma placa ao lado do elevador e outra na parede contígua informam que ele é de "uso exclusivo de pessoas com necessidades especiais". "Proibida a utilização de carga e descarga."

O Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) chegou aproximadamente 50 minutos depois. Encontraram o corpo de Filipe ainda em pé, pressionado pelo armário de madeira. O socorro não chegou a levar o estudante para o hospital, mas caberá ao laudo do IML (Instituto Médico Legal) informar se Filipe de fato morreu na hora.

O laudo do IC, que analisa os dados externos do acidente, atribui a morte à "lesão no pescoço da vítima". O instituto contatou "lesão contusa no pescoço compatível com esmagamento por objeto de seção retangular delgada". A análise vai ao encontro do que informa a certidão de óbito, que menciona "constrição cervical" e "asfixia".

De acordo com o relato de um engenheiro contratado pela família, o elevador operava fora dos padrões. Além da porta de vidro instalada no andar, ele deveria contar com uma porta própria, que não existia e que poderia ter prevenido o acidente. Como o elevador era vazado na parte da frente, os passageiros também poderiam bater a cabeça na laje.

"Não mexer" diz a placa no elevador, interditado desde o acidente que vitimou Filipe Leme - Wanderley Preite Sobrinho/UOL - Wanderley Preite Sobrinho/UOL
"Não mexer" diz a placa no elevador, interditado desde o acidente que vitimou Filipe Leme
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Procurada pela reportagem, a Poli informa que as condições da "plataforma acessível" e suas licenças de funcionamento estavam em dia e foram encaminhadas à perícia no dia do acidente. "O Instituto de Criminalística possui todas as cópias desses documentos, bem como realizou todos os testes, atestando seu funcionamento adequado conforme a norma vigente para plataforma acessível."

Desde então, o elevador está interditado, conforme verificou a reportagem do UOL. Um tapume cobre o único elevador acessível do prédio com uma placa que diz: "Favor não mexer!!!".

Punições

Procurada pelo UOL, a defesa da família de Filipe afirma que o caso deve ser enquadrado como homicídio não intencional. "Diante das provas até aqui levantadas, tudo leva a crer que a morte de Filipe não foi uma mera fatalidade. Houve, ao que parece, negligência e imprudência por parte daqueles que deram a ordem aos meninos. A expectativa é a de que todos os possíveis envolvidos sejam responsabilizados pelo crime de homicídio culposo, sem intenção de matar", afirmou o advogado Euro Maciel Filho.

A pena para o crime é de um a três anos e pode ser cumprida em regime aberto, com imposição de sanções restritivas de direitos, como limitação de fim de semana, prestação pecuniária à família da vítima ou prestação de serviços comunitários.

O advogado diz ter havido "desvio de função, já que Filipe não estava ali para realizar serviço braçal". "Além disso, tudo foi feito sem qualquer orientação ou fiscalização, o que também contribuiu para a tragédia."

O delegado ainda ouvirá o pai de Filipe antes de concluir a investigação e encaminhar o relatório final ao Ministério Público, que vai analisar as provas e decidir se alguém será denunciado à Justiça. A família também deve entrar com uma ação cível, ocasião em que a USP poderá ser responsabilizada.

USP impede família de acompanhar sindicância

Marcada para acontecer no dia 27 de maio, a reunião de uma sindicância interna aberta pela Poli para apurar o acidente nunca aconteceu. No dia 17 de maio, seus membros negaram à família o direito de acompanhar a audiência porque "causaria comoção nas testemunhas".

Prédio administrativo da Poli, onde ocorreu o acidente no dia  - Wanderley Preite Sobrinho/UOL - Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Prédio administrativo da Poli, onde ocorreu o acidente no dia 30 de abril
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL
A audiência foi cancelada dias depois, e seu presidente, o professor de direito criminal do Largo São Francisco Luciano Anderson, renunciou ao cargo "por motivos pessoais". A Poli, então, dissolveu a comissão.

De acordo com a Poli, ela "solicitou à reitoria que uma nova sindicância seja instaurada no âmbito do órgão central, com a participação, inclusive, da Procuradoria-Geral da USP". Procurada, a assessoria da universidade afirma em nota que "foi montada uma nova comissão de sindicância no âmbito da reitoria, que está atuando desde então".

Recomeço

Os pais de Filipe --ela uma professora aposentada, ele um engenheiro hoje dedicado à fabricação de cerveja artesanal-- ainda tentam se recuperar. Eles não se conformam em perder o único filho dentro da maior universidade do Brasil.

Quando o acidente aconteceu, Filipe cursava o nono semestre do bacharelado de geografia e já havia dado entrada nos estudos da licenciatura porque sonhava em ser professor. Considerado garoto prodígio, ele era reconhecido havia muito tempo pelo bom desempenho nos estudos. Em 2008, ainda na sexta série, ganhou medalha de bronze na Olimpíada Brasileira de Robótica, quando estudava no colégio Objetivo.

Mas foi em 2015 que recebeu a notícia de que fora aprovado no vestibular da USP para o curso de geografia. No ano seguinte, aos 19 anos, foi um dos escolhidos pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo para cursar Gestão de Recursos Naturais e Ambientais. No ano passado, deu os primeiros passos na carreira acadêmica ao ficar em 44º lugar, entre 205 candidatos, e receber uma bolsa para iniciação científica na USP.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado no texto, a causa conclusiva da morte de Filipe Leme cabe ao IML (Instituto Médico Legal), e não ao Instituto de Criminalística. O IC examinou apenas as causas externas do acidente. O laudo do IML ainda não ficou pronto. A informação foi corrigida.