Nos moldes da milícia, grileiros tensionam disputa e levam pânico a índios
Articulados como milícias, grupos criminosos se instalaram em terras indígenas pelo país e estão levando pânico a comunidades tradicionais na tentativa de lotear ilegalmente essas áreas ou patrocinar a exploração clandestina de garimpeiros e madeireiros.
A grilagem (ocupação irregular de terras) é histórica no Brasil e ocorre desde a promulgação da Lei de Terras de 1850. Mas a violência que acompanha essa atividade criminosa, sobretudo em áreas indígenas da região amazônica, tem ficado cada vez mais robusta e sofisticada.
Espingardas deram lugar a metralhadoras de grosso calibre, e os veículos que caíam aos pedaços foram substituídos por um vaivém de picapes com tração nas quatro rodas. Esses e outros relatos foram ouvidos pelo UOL em conversas com lideranças de ao menos quatro etnias que estão sob constante ameaça. Até mesmo sistemas de georreferenciamento têm sido usados em demarcações ilegais.
Posteriormente, os lotes clandestinos são colocados à venda, como se fossem terrenos comuns --as terras indígenas são protegidas pela Constituição e não podem ser comercializadas.
Nos arredores das aldeias dos Karipuna, no noroeste de Rondônia, por exemplo, criminosos chegaram a anunciar a venda de 4.000 lotes, segundo o líder Adriano Karipuna. O fato foi denunciado às autoridades e à ONU (Organização das Nações Unidas).
"O que a gente observa é que, nessa violência contra os povos indígenas, há uma incidência muito grande de estruturas milicianas", afirmou o subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, titular da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Ministério Público Federal).
Não é mais aquela violência romântica do passado, de um discurso entre lindeiros [pessoas que vivem em linhas fronteiriças], alguém que quer avançar uma cerca. É um conflito estruturado com forças muito bem equipadas, preparadas e articuladas. São grupos paramilitares Antônio Carlos Bigonha, subprocurador-geral da República
Em junho, uma força-tarefa liderada pela Polícia Federal realizou operações na Terra Indígena Karipuna, localizada a 280 km da capital Porto Velho, e constatou a venda ilegal de glebas (porções de terra) no interior da reserva.
Os investigadores descobriram que a organização criminosa utilizava tecnologia GPS avançada, por meio de uma empresa subsidiária, e chegou a usar uma falsa associação fundiária para iludir os supostos compradores com a promessa de que os terrenos poderiam ser regularizados. A Justiça bloqueou bens do grupo que somam R$ 46 milhões.
"Essa é uma novidade, por assim dizer, para muitas etnias como os Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau. Sempre tivemos um histórico de invasões mais relacionadas à mineração ilegal ou à retirada de madeira, ainda não tínhamos nesse cenário a presença tão forte de posse e loteamento", comentou o secretário-adjunto do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Gilberto Vieira dos Santos.
Clima de medo
"Os invasores estão a menos de três quilômetros. Não queremos confusão com esses caras porque vai haver derramamento de sangue." O relato de Adriano Karipuna dá luz ao sentimento de medo e terror que impera hoje em muitas aldeias pelo país, como mostrou ontem reportagem do UOL.
Segundo ele, os indígenas da etnia vêm sofrendo ameaças desde 2015, mas a situação piorou no ano passado. Os nativos já não podem mais transitar livremente pela região.
"A floresta vem sendo destruída desde 2015. Mas a ação desses invasores tem aumentado desde que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) começou a fazer discursos de ódio na campanha do ano passado, jogando a sociedade contra os povos indígenas. Já ameaçaram a gente de morte, eu e meu irmão [um dos caciques da etnia], já mandaram recado que eles sabem por onde a gente anda e que podemos ser executados a qualquer momento", conta.
Adriano relatou que, além de destruírem os campos de colheita de castanha e açaí com a retirada ilegal de madeira, os criminosos instalaram verdadeiras fazendas, com áreas de pasto, no decorrer dos 153 mil hectares da terra indígena. Nos últimos anos, cerca de 3.000 hectares foram devastados, sendo que 40% desse total ocorreu entre 2015 e 2017, de acordo com o Cimi e o Prodes (Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia).
"Eles prometeram vender 4.000 lotes das nossas terras [a apropriação é clandestina e combatida pelo poder público]. Nesses dois anos e meio, eles derrubaram 1.003 hectares, existe pasto dentro da terra indígena", explicou Adriano. O pasto se forma após a retirada das árvores para extração da madeira, com o que sobra da floresta.
A sensação contínua de medo é compartilhada por Alessandra Mundukuru, líder de seu povo em Itaituba, no Pará, onde estão situadas 12 aldeias da etnia. "A gente tem o cuidado de não ficar mais andando sozinho. Procuramos sempre andar em grupo. Conversamos muito com os caciques e observamos que o número de invasões tem aumentado nesse ano."
Assim como Adriano, Alessandra diz entender que os discursos públicos contrários aos ideais de preservação e focados na abertura para exploração estimulam as ações criminosas. "Eles [os invasores] estão com o poder na mão e não tem mais medo", disse ela em referência à vigilância dos guerreiros Mundukuru.
Comum nos anos 50 e 60
Gilberto Vieira dos Santos destacou que o loteamento é um fenômeno "recente", mas que remete a uma prática que era comum nas décadas de 50 e 60, em especial na região Sul do país.
"
O secretário-adjunto do Cimi explicou que muitas terras que posteriormente foram regularizadas pela União em Santa Catarina e Rio Grande do Sul surgiram de invasões a terras indígenas. "O Estado foi propiciando essas invasões nos anos 50 e 60, e depois os títulos foram cedidos a ocupantes não indígenas."
Santos explicou que a causa indígena foi fortalecida a partir da promulgação da Constituição de 88, que garante o direito à preservação, e por esse motivo o loteamento tornou-se fato incomum durante as últimas décadas. Segundo ele, portanto, o quadro é de retrocesso patrocinado pelo discurso pró exploração do atual governo.
A versão é endossada pelo subprocurador Antônio Carlos Bigonha, que alerta: discursos públicos que contrariam a preservação dos povos indígenas podem "parecer pouca coisa do ponto de vista simbólico", mas acabam por "legitimar atos de violência e empoderar" setores criminosos interessados na exploração dessas terras.
"O agente público tem que ter muita responsabilidade. Mesmo que ele tenha uma opinião controversa, é importante entender que tem que tomar cuidado ao verbalizar isso. Esse mau humor contra os interesses indígenas é um instrumento de legitimação da violência contra esses povos."
Nota da Funai
O UOL enviou na terça-feira um pedido de posicionamento para a Funai sobre as questões abordadas pela reportagem. Ontem, o órgão emitiu nota em que diz que apoiou 444 ações de proteção. Leia a íntegra da nota:
Entre os meses de janeiro e julho de 2019, a Coordenação-Geral de Monitoramento Territorial (CGMT) apoiou o desenvolvimento de 444 ações de Proteção Territorial implementadas pelas Coordenações Regionais, Coordenações Técnicas Locais e Frente de Proteção Etnoambiental da Funai, atendendo 241 Terras Indígenas. Destas, 172 foram ações de fiscalização, enquanto as demais 272 consistiram em ações de Prevenção de Ilícitos e Levantamento de Informações Territoriais.
Para além das ações de Fiscalização e Prevenção de Ilícitos, visando o fortalecimento das ações de Proteção Territorial nas Terras Indígenas mais críticas, a CGMT, apoiada pela Diretoria de Proteção Territorial (DPT), tem buscado ampliar as parcerias da Funai junto aos órgãos estaduais e unidades regionalizadas de órgãos de Segurança Pública e de Polícia Ambiental. Para tal, está sendo realizado um conjunto de reuniões junto ao Ibama, à Polícia Federal, às Secretarias Estaduais de Segurança Pública, entre outros. Tais esforços já foram realizados nos Estados de Rondônia, Roraima, Pará e Mato Grosso.
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