Bolsonaro reduz vagas e murcha participação social em conselhos
O posicionamento do presidente Jair Bolsonaro (PSL) em relação à participação social por meio de conselhos consultivos e comitês tem sido clara: quanto menos gente opinando ou interferindo nas ações de governo, melhor.
Nos últimos meses, o mandatário tem acelerado a extinção desses colegiados sob a premissa de que, dessa forma, o governo vai "funcionar" e estará livre de "ideologia travestida de posicionamentos técnicos" --processo que se convencionou chamar de "despetização".
A postura também é observada na recriação dos conselhos que, desde abril, buscam se enquadrar nas novas regras da Presidência depois que todos foram extintos. O número de vagas destinadas a membros da sociedade civil caiu praticamente pela metade.
O primeiro movimento para eliminar os colegiados da administração pública federal ocorreu em abril. À época, salvo conjunto de exceções, foram extintos todos aqueles instituídos por decreto ou ato normativo inferior. Além disso, o governo fixou diretrizes e normas para os que desejavam sobreviver ao expurgo.
Segundo levantamento da Secretaria-Geral da Presidência da República, 74 grupos haviam sido recriados até ontem a pedido dos ministérios responsáveis (clique aqui para ver a relação), sendo a maioria com função técnica. Nem todos tinham sido totalmente extintos, de acordo com a secretaria, mas foram atualizados em cumprimento aos requisitos estabelecidos em abril.
A reportagem do UOL analisou a lista e selecionou os 17 que demandam participação social mais efetiva devido à natureza de suas discussões e decisões, como o Conselho Nacional de Política Cultural, o Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Comitê Intersetorial da População em Situação de Rua, entre outros (veja a lista completa ao fim do texto).
Antes da extinção, esses 17 colegiados somavam 201 vagas a título de cooperação, isto é, pessoas físicas ou jurídicas que eram membros e ajudavam a formular, fiscalizar ou deliberar sobre políticas públicas. Os decretos de recriação reduziram a janela de participação social para 104 vagas.
O conselho que mais perdeu cadeiras antes reservadas à sociedade civil foi o do meio ambiente (Conama), que passou por um amplo enxugamento. Antes, como cada estado da federação e cada ministério tinham direito a representação, o total de membros podia passar de 90. Agora, são apenas 23 definidos por decreto, sendo que o poder federal ocupa praticamente a metade.
A sociedade civil, que tinha direito a até 29 representantes no Conama, hoje tem apenas seis, sendo quatro de entidades ambientalistas e dois do setor empresarial.
Além disso, os nomes são sorteados e precisam de designação do ministro da pasta, Ricardo Salles, que tem uma relação conflituosa com as organizações não governamentais ligadas ao tema. A composição atual ainda exclui o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e a ANA (Agência Nacional de Águas).
O Conselho Nacional Política Cultural também foi drenado pelo governo com o corte de 17 cadeiras antes destinadas à colaboração social. O número passou de 36 para 18 membros, sendo apenas três vinculados a expressões artísticas específicas (antes eram 14), como dança, música etc. As manifestações culturais indígenas, populares e afro-brasileiras têm direito a um representante cada uma.
O fotógrafo Davy Alexandrisky, que era conselheiro de Política Cultural até 2016, afirmou que o decreto do governo Bolsonaro segue um modelo que já tinha sido desenhado pela gestão anterior, do presidente Michel Temer (MDB) e do ex-ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão. Na prática, segundo ele, o enxugamento da participação da sociedade torna o colegiado meramente protocolar, com forte presença do estado e sem nenhuma representatividade para os segmentos culturais.
"O governo já tinha descaracterizado totalmente o conselho e, agora, ele surge pelo Ministério da Cidadania com uma proposta praticamente igual. O que o Bolsonaro está fazendo agora é basicamente oficializar a extinção do conselho. Você não tem muita clareza de nada do que vai acontecer lá", afirmou.
A Secretaria-Geral da Presidência disse que outros grupos ainda poderão ser recriados, o que pode acontecer por meio de decreto "a qualquer momento", "por interesse da pasta ministerial". "Basta apenas que sigam as determinações do decreto, que visam, especialmente, à maior eficiência no uso dos recursos públicos."
O UOL solicitou posicionamento da Secretaria de Imprensa da Presidência da República, que direcionou o pedido para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A pasta respondeu que "a redução da participação da sociedade civil não afetou os trabalhos dos órgãos colegiados, no que compete aos organismos ligados" à sua estrutura. O governo não comentou a situação dos conselhos vinculados a outros ministérios.
"O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos propõe reformulações que diminuam os custos aos cofres públicos, de forma a atingir os objetivos sem trazer ônus."
Mudanças afetam população LGBT
O Conselho Nacional de Combate à Discriminação foi um dos recriados pelo governo após o decreto que, em abril, extinguiu os colegiados da administração federal. No entanto, o retorno se deu sem que a população LGBT, um dos grupos que mais sofrem com a intolerância, tivessem direito à representação.
Anteriormente, a composição estabelecia critérios específicos para "promoção e defesa de direitos da população LGBT". Entre os membros da sociedade civil aptos a fazer parte do grupo, havia estudiosos na área e ativistas com trabalhos reconhecidos nesse tema. Atualmente, além de reduzir a participação social de 15 para três vagas, o colegiado não tem qualquer referência a grupos vulneráveis.
Fim do Consea
Entre os órgãos consultivos expurgados por Bolsonaro e não retomados até o momento está o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), grupo que foi elogiado pela ONU (Organização das Nações Unidas) pela atuação no combate à fome no país. O Congresso chegou a deliberar a recriação conselho durante a tramitação da MP (medida provisória) 870, que definiu o número de ministérios. O presidente, no entanto, usou o poder de veto e brecou o intento.
Ao Consea cabia mediar o diálogo com a sociedade civil e acompanhar e fiscalizar as políticas públicas referentes ao tema. Hoje, segundo especialistas ouvidos pelo UOL, essa estrutura inexiste na prática.
A nutricionista, professora e pesquisadora Elizabetta Recine, ex-presidente do colegiado, afirmou à reportagem que o governo Bolsonaro tem "desmontado" todas as políticas setoriais relacionadas ao tema, não só as mais "imediatas", baseadas em transferência de renda, como também as "estruturais". "O que está ocorrendo, de fato, é uma paralisação desses programas, para ser até modesta. É um desmonte das principais políticas públicas que tinham tirado um contingente de milhões de famílias da situação de fome."
O Brasil deixou em 2014 o chamado "Mapa da Fome", levantamento da ONU que elenca os países em que a insegurança alimentar é alarmante. O Consea foi um dos protagonistas desse avanço obtido à época. Com a crise econômica dos últimos anos e o crescimento da pobreza, o Brasil passou a flertar novamente com o Mapa da Fome desde 2017.
"Os números mostram que a fome é o resultado de um processo complexo de empobrecimento. Não é ter ou não ter comida. Lógico que, no final do processo, é ter ou não ter comida. Mas o problema maior é a falta das condições que geram a viabilidade em um país que está empobrecendo. Os dados mostram isso", comentou Elizabetta.
"Falar que o problema não existe não faz com que ele desapareça", completou a pesquisadora, em referência às declarações de Bolsonaro de que não existe fome no Brasil.
Os 17 conselhos analisados
- Conselho Nacional de Política Cultural - Passou de 68 membros para 36. Entre as vagas da sociedade de civil, passou de 36 para 19.
- Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo - Passou de 18 membros para 8. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 9 para 4.
- Conselho Nacional de Combate à Discriminação - Passou de 30 membros para 7. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 15 para 3.
- Conselho Nacional de Combate à Pirataria e aos Delitos Contra a Propriedade Intelectual - Manteve em 18 membros. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 7 para 5.
- Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa - Passou de 28 membros para 6. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 14 para 3.
- Comitê Intersetorial da População em Situação de Rua - Passou de 18 membros para 12. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 9 para 6.
- Conselho Nacional de Imigração - Passou de 19 membros para 14. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 11 para 7.
- Comissão Permanente Para o Aperfeiçoamento da Gestão Coletiva - Passou de 21 membros para 13. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 10 para 6.
- Comitê de Orientação Estratégica do Programa Brasil Mais Produtivo - Passou de 10 membros para 8. Antes, não havia definição de vagas para a sociedade civil. Agora são duas fixadas por decreto.
- Comitê Gestor de Indicadores e Níveis de Eficiência Energética - Manteve em 7 membros, assim como continuam duas vagas para a sociedade civil.
- Conselho Nacional de Segurança e Defesa Social - Manteve em 40 membros, no total, e 13 vagas para a sociedade civil.
- Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil para a Classificação Indicativa - Passou de 13 membros para 7. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 10 para 6.
- Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - Passou de 26 membros para 7. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 9 para 3.
- Conselho Nacional de Meio Ambiente - Passou de até 92 membros para 23. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 29 para 6.
- Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia - Manteve em 7 membros, no total, e duas vagas para a sociedade civil.
- Conselho Superior de Cinema - Passou de 18 membros para 12. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 9 para 5.
- Conselho do Programa Nacional do Voluntariado - Passou de 32 membros para 24. Entre as vagas da sociedade civil, passou de 16 para 12.
- Totais: Antes eram 465 membros, no total, e hoje são 249. O número de vagas para participação social caiu de 201 para 104.
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