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Em quartel, mulheres de PMs amotinados no CE temem Força Nacional e tráfico

Duas mulheres de policiais amotinados nas imediações do 18º BPM, em Fortaleza - Cristiane Bonfim/ UOL
Duas mulheres de policiais amotinados nas imediações do 18º BPM, em Fortaleza Imagem: Cristiane Bonfim/ UOL

Cristiane Bonfim

Colaboração para o UOL, em Fortaleza

22/02/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Mais de cem famílias, incluindo filhos pequenos, estão no 18º BPM desde terça-feira
  • Temendo desocupação, mulheres formaram cordão humano e rezaram diante do batalhão
  • Colchonetes e alimentos foram doados pela população; cama elástica é usada por crianças
  • Famílias dizem que salário defasado as obrigam a viver em bairros dominado pelo tráfico

As viaturas da Polícia Militar estacionadas com pneus murchos sobre as calçadas fizeram da rua Anário Braga, em Fortaleza (CE), um corredor onde só passa um carro por vez.

É no número 100 da mesma via, no bairro periférico de Antônio Bezerra, onde estão militares amotinados no 18º Batalhão da Polícia Militar (BPM).

Encapuzados, eles não estão sozinhos. Muitos estão com as famílias no local. As mulheres, porém, não usam máscaras.

"Quando a gente esconde o rosto, chamam de vândalo", explicou a vendedora Karine*, 28, ao UOL na noite de ontem.

Muitas crianças permanecem no local, inclusive durante a noite. Há mães que deixaram seus filhos aos cuidados de parentes. Uma das mulheres passou os primeiros três dias sem voltar para casa. Outras, deixam o 18º BPM e retornam no dia seguinte.

Por volta das 19h30, três esposas de policiais amotinados e duas crianças estavam no posto de gasolina na avenida mais próxima do Batalhão aguardando o veículo de aplicativo que levaria uma delas para casa com os filhos.

Carolina*, 32, deixava o local após ter passado o dia com o grupo. Com camisetas iguais reivindicando reestruturação salarial, elas aceitaram receber o UOL para contar por que "abraçaram a causa" dos maridos. A greve de militares é proibida pela Constituição Federal.

"Está todo mundo unido. A gente não vai sair de lá enquanto a anistia não vier", ressaltou Karine enquanto se dirigia ao batalhão.

PMs amotinados e familiares no 18° BPM do bairro Antonio Bezerra, em Fortaleza, uma das unidades com concentração de PMs em motim essa semana no Ceará - Maristela Crispim/Folhapress - Maristela Crispim/Folhapress
PMs amotinados e familiares no 18° BPM do bairro Antonio Bezerra, em Fortaleza
Imagem: Maristela Crispim/Folhapress

Ao longo do dia, há vários momentos em que as mulheres rezam em grupo.

Na noite de quinta (20), apreensivas com a chegada da Força Nacional ao Ceará e com os boatos de desocupação do local, as orações duraram mais tempo.

Diante do batalhão, formaram uma corrente humana enquanto amotinados bradavam "eu não vou embora".

"A gente reza pelo menos três vezes por dia. É todo mundo muito unido", contou a dona de casa Joana*, 41.

Senadores haviam visitado o Batalhão na quinta-feira para tentar intermediar um acordo com os militares amotinados, mas não houve avanço.

Local concentra mais de cem famílias

Na calçada e no pátio, a movimentação já é intensa. No hall, TV ligada em um telejornal atrai a atenção de um grupo de militares, todos de balaclavas. Mulheres e crianças de várias idades, inclusive bebês, transitam pelo local.

Karine e Carolina não pediram autorização para dar entrevista nem para levar a reportagem do UOL batalhão adentro até o local onde outras mulheres estavam reunidas.

Num pátio central, uma cama elástica alugada é usada por algumas crianças. A mesa com frutas está no corredor.

O auditório do 18º BPM é utilizado também para armazenar colchonetes e alimentos, que, segundo elas, foram doados pela população.

Pula-pula alugado por mulheres de policiais amotinados que estão concentrados no 18º BPM, em Fortaleza - Cristiane Bonfim/ UOL - Cristiane Bonfim/ UOL
Pula-pula alugado por mulheres de policiais amotinados que estão concentrados no 18º BPM, em Fortaleza
Imagem: Cristiane Bonfim/ UOL

Karine, Carolina e Maria*, 50, todas casadas com praças (categorias mais baixas da carreira militar), deram entrevista na sala onde há um cartaz "proibida a entrada de homens". Apesar disso, havia uma roda deles conversando na mesma sala.

Cabo Sabino, ex-deputado federal, e Soldado Noélio (PROS), deputado estadual, lideranças entre os policiais militares, estavam numa reunião no mesmo auditório.

Não pararam de falar com a chegada da reportagem e encerraram o diálogo em que comentavam sobre o Judiciário pouco tempo depois.

"Aqui já somos mais de cem", diz Maria quando questionada sobre quantas famílias transitam por lá. Diariamente, são gravados e divulgados vídeos chamando mais militares e familiares para o local.

"Na verdade, (greve de militares) é proibida. Mas em 2011 a gente já fez e foi anistiado. A gente acredita que neste ano seremos amparados novamente", disse. "Não vamos sair daqui sem acordo e sem anistia", garantiu.

Cabo Sabino e Soldado Noélio, assim como o atual deputado federal Capitão Wagner, foram eleitos depois de terem participado da greve realizada entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012.

Viaturas do corpo de bombeiros e da Polícia Militar, algumas com pneus murchos, obstruem a Travessa Seleta, que dá acesso ao 18° BPM do bairro Antonio Bezerra, em Fortaleza - Maristela Crispim/Folhapress - Maristela Crispim/Folhapress
Viaturas do corpo de bombeiros e da Polícia Militar, algumas com pneus murchos, obstruem a Travessa Seleta, que dá acesso ao 18° BPM do bairro Antonio Bezerra, em Fortaleza
Imagem: Maristela Crispim/Folhapress

Recuo e impasse

Maria, que é assistente social, criticou o projeto de lei de reestruturação salarial encaminhado pelo Governo do Estado à Assembleia Legislativa.

"Eles nos ofereceram pouco para que a gente dividisse. A tropa ficou insatisfeita", justificou.

O Governo do Ceará anunciou acordo sobre a nova tabela de reestruturação da carreira militar no Ceará no último dia 13 de fevereiro.

Segundo o Palácio da Abolição, a proposta inicial impactaria o orçamento estadual em R$ 440 milhões. Após negociação com lideranças dos militares, R$ 149 milhões de gratificações variáveis seriam incorporadas à remuneração fixa.

O valor pago a um soldado teria aumentos gradativos até 2022, chegando a R$ 4,5 mil ao final desse período.

Karine criticou o fato de os representantes da categoria não terem retornado para o 18º BPM para discutir e analisar a proposta com os militares.

Ela considera que os salários da categoria ainda estão muito defasados e que os PMs enfrentam dificuldades para conseguir moradia a preços baixos porque sentem-se inseguros em bairros dominados por bandidos.

Há um ano, ela e a família deixaram a casa que haviam financiado por terem sido ameaçados por um traficante. Hoje pagam aluguel.

Perguntada sobre possíveis motivações políticas na ação, Karine nega. "Se não houvesse uma insatisfação muito grande na categoria, você acha que nós sairíamos de nossas casas para vir para cá com nossos filhos?", questiona.

*Os nomes das entrevistadas foram trocados a pedido delas.