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RJ: com falha em atendimento em postos, pacientes com HIV ficam sem remédio

O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos) - Wilton Junior/Estadão Conteúdo
O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos) Imagem: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

Pauline Almeida

Colaboração para o UOL, no Rio

22/02/2020 04h00

A Prefeitura do Rio de Janeiro reassumiu ontem a gestão de 75 unidades de saúde que vinham sendo administradas desde 2014 pela organização social (OS) Viva Rio —entre elas, estão centros municipais de saúde, clínicas da família, centros de atenção psicossocial e as UPAs (Unidade de Pronto Atendimento) do Alemão (zona norte) e Rocinha (zona sul). A transição entre os dois sistemas começou com falhas no atendimento e reclamações da população.

O Grupo pela Vidda, de apoio a pessoas com HIV, recebeu denúncias da falta de farmacêutico para a liberação de antirretroviral, medicamento usado tanto como medida preventiva quanto para manter a carga viral indetectável e o sistema imunológico do paciente sadio. Os problemas foram observados em centros municipais de saúde do Catete, Copacabana e Gávea, todas na zona sul carioca.

"É o medicamento que não deixa as pessoas com HIV ficarem doentes. A gente está muito preocupado porque nesta sexta [21] as unidades fecham ao meio-dia. Na quinta [20], algumas pessoas disseram que não conseguiram retirar o medicamento ainda. A gente está preocupado dessas pessoas ficarem sem o medicamento durante o Carnaval", declarou o coordenador do Grupo pela Vidda, Marcio Villard.

Na manhã de ontem, o produtor Felipe Queiroz foi buscar o antirretroviral e não encontrou no Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto, em Copacabana. "Me mandaram ir em Botafogo, parece que ainda tem lá, vou tentar a sorte", afirmou.

Em nota enviada na noite de ontem, a Secretaria Municipal de Saúde informou que os pacientes podem retornar às unidades para "serem orientados sobre a retirada da medicação". Para não deixá-los sem os remédios no carnaval, hoje [22) haverá plantão na farmácia do Centro Municipal de Saúde Dom Hélder Câmara, em Botafogo.

A pasta indicou que a falha se deu pela Viva Rio, que teria reduzido o quadro durante a transição, o que a organização social nega. Apesar da posição da secretaria, o problema também foi registrado ontem, primeiro dia da gestão municipal. A promessa é que a "dificuldade não será encontrada a partir de agora".

Os problemas de atendimento não afetaram somente pacientes com HIV. Moradora da comunidade Pavão-Pavãozinho, em Copacabana (zona sul), Tatiane Rodrigues foi pegar remédios para a filha que está gripada e com febre, mas também encontrou a farmácia do Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto, localizado no mesmo bairro, fechada. "Agora, vou ter que ir à farmácia comprar", lamentou.

Ana Carolaine Assunção buscou consulta médica e não conseguiu em centro em Copacabana - Pauline Almeida/UOL - Pauline Almeida/UOL
Ana Carolaine Assunção buscou consulta médica e não conseguiu em centro em Copacabana
Imagem: Pauline Almeida/UOL

Quem buscou a unidade durante a manhã de ontem foi informado por agentes comunitários que ela estava sem parte dos funcionários, como os farmacêuticos —necessários para a liberação de remédios— e médicos.

A dona de casa Ana Carolaine Assunção, que apresenta manchas roxas pelo corpo e febre, buscou uma consulta médica e não conseguiu. "Falaram que está sem médico, vou tentar a UPA aqui ao lado", disse à reportagem.

No posto João Barros Barreto, um dos poucos serviços que funcionava bem na manhã de ontem, e com grande procura, era a vacinação contra sarampo, destinada a pessoas de até 59 anos.

Prefeitura rompeu contrato com Viva Rio

A Viva Rio tinha contrato com o município até outubro deste ano. Porém, o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) anunciou no dia 20 de janeiro o rompimento unilateral do vínculo e o repasse das unidades para a Rio Saúde, a Empresa de Saúde do Município.

As reclamações de hoje dos pacientes são consequência do déficit de profissionais. A Viva Rio mantinha 5.300 funcionários e a prefeitura ainda não conseguiu repor todas as vagas. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, até o dia 18 de fevereiro, o saldo era de 4.234 contratados.

O subsecretário geral executivo de Saúde do Rio, Jorge Sale Darze, reconhece que, nesta sexta, as unidades ainda não funcionam "a pleno vapor", justamente pela necessidade de preencher 20% dos cargos.

Mas o problema já perdura há alguns dias e gerou protestos em Marechal Hermes e nos complexos do Alemão e Maré durante a semana. Como os funcionários da Viva Rio cumpriam aviso prévio, alguns deixaram o trabalho antes da data final de transição, deixando "buracos" nas escalas.

Jorge Darze diz acreditar que a situação seja normalizada após o feriado prolongado. "Esse é um processo gradativo. O período de Carnaval não é bom para se conciliar a contabilidade dos números. Muitos profissionais acabam viajando, não é o momento ideal para fazer contratação", afirmou.

Ele pontuou que as unidades básicas de saúde já ficariam fechadas para o feriado, por isso, as falhas nas escalas não devem ser tão sentidas, com o atendimento direcionado às UPAs. No entanto, essas unidades também registram reclamações. Moradores denunciaram ontem que a UPA da Rocinha está com o raio-x parado, sem técnico para exames.

Ex-funcionários da Viva Rio cobram contratação

Após anos como técnico em radiologia na Clínica da Família Joãozinho Trinta, em Parada de Lucas, na zona norte do Rio, Ari Sérgio Severino da Silva vive os primeiros dias de desemprego. Aos 47 anos, teme não conseguir se recolocar no mercado apesar da qualificação.

"Já estou desesperado, não estou acostumado a ficar em casa. Um dos nossos pesadelos é ver se a Viva Rio vai pagar realmente a gente. Ainda estamos na esperança de ser recontratados pela Rio Saúde, mas é muito difícil. Técnico em enfermagem, técnico em radiologia e administrativo, ninguém foi contratado", lamentou.

A Viva Rio recebeu cerca de R$ 110 milhões da Prefeitura do Rio para quitar os últimos salários, multas rescisórias e fornecedores. Na manhã de ontem, o diretor jurídico Pablo Siqueira informou que os valores já estavam sendo depositados nas contas dos funcionários.

O rompimento com a prefeitura afeta amplamente a organização social, que terá seu quadro reduzido em aproximadamente 80%.

"A instituição se sentiu um pouco surpreendida com a notícia porque o nosso contrato teria vigência até o final do ano, até outubro. Iniciamos as tratativas da rescisão, foi uma decisão, obviamente, tomada pela administração pública e a gente não tinha muito como contrapor", disse Siqueira.

Dois dias após anunciar o rompimento do contrato da Viva Rio em janeiro, o prefeito chegou a prometer que todos os funcionários teriam seus vínculos estendidos e depois poderiam concorrer a vagas de concursos. Porém, não foi isso que aconteceu.

Segundo os funcionários, grande parte dos médicos e enfermeiros recebeu a opção de ser absorvida pela Rio Saúde, por meio de contrato emergencial temporário, mas com salário menor. Já categorias como farmacêutico, dentista, fisioterapeuta e agente comunitário de saúde foram demitidos para a convocação de nomes dos quadros de reserva do município.

Os médicos chegaram a divulgar uma carta dizendo que não assinariam contratos enquanto todos os profissionais fossem absorvidos com os salários anteriores. "Diante da complexidade e essencialidade do trabalho multiprofissional qualificado na Saúde e do grave ataque aos direitos dos trabalhadores, nós, médicos e médicas da Atenção Primária de Saúde, reivindicamos a contratação de todos os trabalhadores e a recomposição salarial de todas as categorias", diz o documento.

Na quinta-feira, em reunião com representantes da Defensoria Pública, Ministério Público, Rio Saúde e trabalhadores, foi definido que o município preencha emergencialmente as vagas que ainda restam, não ocupadas por concursados, com ex-funcionários da organização social.

Darze declarou que havia realmente a expectativa de incorporar todos os servidores da Viva Rio, mas foi impossível devido à existência do quadro de reserva. Como existiam aprovados em concurso para várias categorias, a lei obriga a convocação.

Ele também argumenta que os salários oferecidos estão dentro do praticado pelo mercado e que os trabalhadores ganham nas condições de trabalho, com a estabilidade dos concursos públicos. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, editais de processos seletivos já estão prontos e devem ser lançados em breve para as vagas atualmente com temporários.

Ex-servidores alegam que a estratégia de Crivella é utilizar as contratações temporárias emergenciais, que são maior parte neste momento, para colocar pessoas de sua confiança nas unidades e garantir a campanha eleitoral, especialmente nas áreas de favelas.

A tese é rechaçada pela Secretaria Municipal de Saúde. "É um absurdo, é proibido por lei. Como é que vamos poder favorecer? Porque senão seria muito fácil documentar, provar, porque as pessoas se conhecem, têm relações próximas", diz o subsecretário Jorge Darze.

Gestão Crivella tenta se opor a de Eduardo Paes

A retomada da gestão municipal por Crivella modifica a opção pelas terceirizações da gestão do ex-prefeito Eduardo Paes (DEM). Os dois podem ser rivais nas eleições municipais de outubro.

Jorge Darze argumenta que o fim da terceirização é um projeto que visa melhor atendimento à população.

"Esse projeto de gestão privada da saúde foi herdada por esse governo, recebido do governo passado. Já encontramos a Secretaria de Saúde com boa parte das suas unidades entregues para as chamadas OSs. Esse projeto sempre foi objeto de crítica por parte da prefeitura, no sentido de buscar algo melhor na assistência à população", defendeu.

Segundo Darze, a iniciativa só foi tomada agora, ano eleitoral, por uma questão orçamentária. No fim do ano passado, a Rio Saúde obteve o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas), que garante imunidade tributária. Assim, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, foi possível baratear os custos para o município e reassumir as unidades.

Ele ainda ressalta que a mudança vai trazer mais eficiência porque as compras passam a ser feitas com base na Lei de Licitações, sempre buscando o melhor preço. "Esse é um processo gradativo mesmo, o projeto é substituir todas as OSs, mas isso não pode ocorrer da noite para o dia".

Errata: este conteúdo foi atualizado
O nome do coordenador do Grupo pela Vidda, Marcio Villard, havia sido grafado de forma incorreta na reportagem. O texto foi corrigido.