Comprador de outro estado encara fila dobrando a esquina na 25 de Março
"Dia lindo, o sol vai sair. É hoje, moça, é hoje que a gente vende!", grita Wesley, 29, na esquina entre as ruas 25 de Março e Cavalheiro Basílio Jafet, no centro de São Paulo. O sorriso largo, intercalado com gargalhadas exauridas, refletiam uma animação que, ele conta, há tempos não aparecia.
"Acordei três da manhã, saí da minha casa, lá em Itaquá, às quatro. Hoje acordei felizão. Acordei, acendi uma vela pra Deus e pedi 'Deus, pelo amor do Senhor, que hoje eu consiga vender. Vai ser hoje, moça, depois de quanto? Dois meses, quase três, né? Olha, se Deus quiser, hoje vende", ria.
Wesley vende roupas e calçados em um prédio na região mais popular do comércio de rua da capital paulista. Desde que começou a pandemia do novo coronavírus e o governador João Doria decretou quarentena em todo o estado, o vendedor começou a vender lanches com a mãe para tentar bancar as contas. "Todo dia, eu acordava triste, mano. E aí essa noite eu nem dormi direito de ansiedade, sabe? Porque vi que iam reabrir tudo. Reza aí por mim".
"É claro que tenho medo desse vírus. E até acho que pode dar ruim. Mas vou rezar pra que não, porque não consigo ver outro jeito". Os gritos animados de Wesley se destacavam no tímido ambiente que marcava a 25 de Março na manhã desta quarta-feira (10), primeiro dia de reabertura do comércio de rua na cidade. A ordem é clara: lojas abrem; shoppings, só amanhã.
Segundo estimativa realizada em 2018, a região recebia antes da pandemia, por dia, cerca de de 400 mil pessoas. Nos dias que antecedem o Natal, o número pode chegar a 1 milhão de compradores.
Cedinho, às sete, mesmo antes de as lojas abrirem, quem anda depressa por ali já precisa desviar o passo. Hoje, foi diferente: "Está muito mais cheio que ontem e que nos outros dias, mas ainda vazio perto de como era antes da pandemia", conta um agente da limpeza urbana da cidade.
Funcionário "nunca mais vai reclamar" do lixo
O funcionário, que pediu para não ser identificado, diz que sentiu medo de perder o emprego porque "nem lixo tinha no chão, acredita?", ri, enquanto junta duas espigas de milho em fiapos e três copos de plástico na pá. "Ih, hoje já encheu. Antes, eu até reclamava dessa porquice. Nunca mais reclamo".
A varredura acontecia em frente à loja matriz da rede Armarinhos Fernando —das mais tradicionais da rua, que, diariamente, recebe gente de todas as regiões do Brasil. Às oito, o entorno do casarão concentrava um aglomerado de pessoas. A fila para entrar —o departamento só abriu às nove— dobrava a esquina.
Próximo à porta principal, faixas amarelas que determinavam distância segura entre as pessoas foram pintadas no chão. Entretanto, como bem observa Silvia, 41, quanto mais a fila cresce, menos as pessoas respeitam a marca.
"Moço, lá atrás tá todo mundo amontoado, não tem ninguém respeitando essa faixa não", reclama a um funcionário da loja, que distribuía comandas de compras aos primeiros clientes —todas besuntadas de álcool em gel. O homem concordava com a cabeça enquanto esfregava o plastiquinho e passava para o próximo.
Fila desanimadora
Silvia estava "puta da vida, braba, mesmo". Ela saiu de madrugada de Peruíbe, no litoral paulista, só para comprar cola escolar para as filhas "que estão me enlouquecendo dentro de casa, vixe maria". Ouviu, de um atendente de uma filial da rede, que fica ali por perto, que a matriz abriria às nove. Próximo do horário, foi até lá e se deparou com a fila. "Não acreditei. Se eu soubesse que iria ficar assim, teria vindo direto pra cá. Inferno", braveja.
Havia centenas de pessoas na frente de Silvia no aguardo do levantar dos portões de ferro. Às 9h30, um funcionário grita para outro, mais de 500 clientes já haviam adentrado o espaço. Segundo um atendente da loja, que falou de forma anônima ao UOL, a matriz abria mesmo antes da ordem de reabertura —dez clientes por vez faziam suas compras às escondidas, por uma portinha lateral.
Quem não sabia das vendas clandestinas era o mineiro Jorge, de 53 anos, que se desloca até o centro da capital paulista mensalmente para comprar "tudo o que você imaginar". Fazia dois meses que ele não viajava até aqui.
"Cheguei aqui às cinco da manhã e já peguei a fila. Sabia que ia lotar, aqui eu conheeeeeeeço —estende o "ê"— faz anos". Jorge é dono de uma lojinha "dessas com um monte de trem" no interior de Minas Gerais. "Minha loja também estava fechada por lá, a coisa tava feia lá em casa.
Bate-papo enquanto espera-se um lugar dentro das lojas
No anseio para que os minutos corressem, ele e o paranaense Sérgio, 47, papeavam de política a "mulherada" e passavam, bem timidamente, pelo tema coronavírus. Os dois se conheceram ali, na fila, quando a manhã ainda era escura.
"E essa pandemia aí, hein? Já deu no saco, né, homem? A galera tá fazendo um drama que não precisa", dizia o mineiro enquanto ajeitava a máscara de pano que sua mulher costurou "lá ainda em março". E o colega desconversava: "Ah, tá feia a coisa, tem gente morrendo adoidado por aí, tu não tá vendo não? Mas, fazer o que né? Se a gente não trabalhar, quem vai?".
As conversas se misturavam ao anúncio do misto quente com presunto fininho do carrinho que se posicionou estrategicamente no meio da fila. Debaixo de um guarda-sol azul, havia quem puxava a máscara um pouquinho para cima a cada mordida na tapioca com leite condensado —e quem pedia, "por favor, guarda meu lugar que vou ali rapidinho ver aquele pen drive?". A galera virava o olho sem muita gentileza.
Os vendedores ambulantes caminham exaltados pelas ruas e tentam fazer do tempo de espera dos clientes, mais uma oportunidade para vender. A 25 de Março concentra mais de 2 mil camelôs —entretanto, menos de 100 são legalizados pela prefeitura. Junto a eles, lojistas, seguranças, policiais e encarregados de limpeza somam 60 mil trabalhadores por ali. São mais de 3 mil estandes, além de 350 lojas e galerias.
A tradicional galeria Pajé, mesmo fechada, estava cercada por dezenas de pessoas. Na porta, três seguranças informavam sobre o horário de reabertura do shopping, a partir das 11h de quinta (11). O público que, ali, aguardava, não escondia a frustração —e lá estavam eles, os ambulantes, prontos para resolver qualquer demanda que eventualmente surgisse. "Cabelo? Tabaco? Tela do celular quebrada? Não? Sem compromisso, a senhorita veio procurar o quê? Garanto que tenho o que quiser".
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